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CAPITALISMO E REVOLUÇÃO BURGUESA  NO BRASIL Nelson W erneck Sodré /OFICINA DE LIVROS
 A formação de capitalismo no Bra sil constitui matéria que os estudiosos   têm abordado de maneiras diversas e   até mesmo contraditórias. Neste senti do, Nélson Werneck Sodré, através de   sua obra historiográfica, aparece co mo um dos autores mais preocupados   com esta questão. Ao mesmo tempo, é de se notar   que, ao longo do tempo, embora suas   análises a este respeito tenham desper tado comentários e avaliações contro vertidas, até mesmo questionadoras,   Nélson Werneck Sodré tem mostrado   coerência e firmeza em tomo de suas   teses, reafirmando suas convicções   teóricas a este respeito. Assim, neste   trabalho que aqui se edita, o eminen te historiador brasileiro procura, uma   vez mais, reforçar —  com novas fun damentações —  os pontos centrais de   suas idéias a respeito da formação do   capitalismo no Brasil.
 Capitalismo e Revolução  Burguesa no Brasil N ossa T erra
 Títulos publicados: A primeira renovação pecebista. Reflexos do X X  Congresso do PCUS   no PCB (1956-1957) Raimundo Santos Breve história do PCB   José Antonio Segatto Comunistas em céu aberto   Michel Zaidan Filho Estado e burguesia no Brasil   Antonio Carlos Mazzeo Capitalismo e revolução burguesa no Brasil   Nélson Werneck Sodré Próximo lançamento: A esquerda e movimento operário 1964-1984  — Vol. 2: A crise do   "milagre brasileiro" Celso Frederico (org.)
 NÉLSON WERNECK SODRÉ Capitalismo e Revolução  Burguesa no Brasil Oficina de Livros   1990 Belo Horizonte
 Capa: Marilda Campagnoli de Vilhena Composição: Linotipadora Expressa Ltda.  — Tel.: (011) 292-2305 N.° de catálogo: 0022 Direitos reservados: OFICINA DE LIVROS LTDA. Rua Tupinambás, 360, 12.° andar, sala 1210  30.120 — Belo Horizonte, MG — Tel. (031) 222-1577  Rua da Quitanda, 113, 10.° andar, conjs. 102/104  01012 — São Paulo, SP — Tel. (011) 37-9872SN-00 1<*61 95-9
 SUMÁRIO A formação do capitalismo no Brasil, 7  Modos de produção, 9  A estrutura colonial, 33  Mercado de trabalho, 59  A revolução burguesa no Brasil, 73 Vargas e o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, 117  Introdução, 119  Endividamento, 123  Crise e mudança, 147  Populismo, 165  A época de Vargas, 183
 A FORMAÇÃO DO CAPITALISMO   NO BRASIL
 MODOS DE PRODUÇÃO Quando apresentei, em minha Formação histórica do Brasil,   o estudo dos modos de produção que a sociedade brasileira conhe ceu, confesso não ter esperado controvérsias a tal respeito. Outros  adotaram esquemas diferentes. Não cabe aqui discuti-los. De minha  parte, posso esclarecer que parti do estudo da sociedade brasileira,  em seu desenvolvimento histórico e confesso que não encontrei,  até agora, motivo para alterar as minhas teses. De outro lado, con vém mencionar que, neste estudo, permaneço assistido pelo método  a que obedeci no meu livro antes citado. Não há, pois, aqui ne nhum ecletismo, mas a fidelidade rigorosa aos apelos históricos.  Persistindo nos estudos, espero encontrar novos motivos para insis tir na posição que adotei. Mas é, também, crença minha que as  teses definitivas — tanto quanto existe tal etapa em ciência — de rivarão do esforço de muitos estudiosos, estando o assunto sempre  em aberto. Esta é apenas a minha contribuição. Preliminarmente,  entretanto, parece oportuno lembrar que só há ciência do geral,  como dizia o mestre. Deixando para tratar adiante das questões que se apresentam  à discussão teórica de problema tão complexo como o dos modos  de produção e formações sociais no Brasil, é interessante, para iní cio e colocação das premissas básicas, distinguir alguns aspectos  que informam a particularidade do caso brasileiro. O primeiro de les, evidentemente já colocado por alguns estudiosos, consiste na quilo que diz respeito ao desenvolvimento desigual, isto é, ao fato  de que o Brasil surge para a história, começa a sua existência  histórica, com o chamado “descobrimento”, quando, no Ocidente  europeu, o feudalismo declinava, com a revolução comercial, as  grandes navegações e a definição do mercado mundial. Há, evi dentemente, distância histórica enorme entre áreas dominadas pelo  feudalismo e áreas dominadas pela comunidade primitiva, este sen do o nosso caso. Essa heterocronia precisa ser levada em conside ração, a todo momento, na discussão dos problemas históricos. Ela  permanece, ao longo dos tempos, sob formas diversas.
 Um dos aspectos que acarreta está no uso, para definir pro cessos e fenômenos brasileiros, de linguagem conceituai surgida em  outros tempos e em outros lugares. Ora, só extremo cuidado na  passagem do universal ao particular, ou do geral ao particular,  pode atenuar o uso dos mesmos conceitos para realidades diferen tes. É indispensável verificar, desde logo, se as diferenças afetam  a forma ou o conteúdo. De maneira alguma, porém, é possível  utilizar paradigmas retirados de realidade diversa. Note-se: para digmas e não métodos. É o uso de raciocínios paradigmáticos que  induz ao erro ou à deformação. O raciocínio dialético exclui o uso  de paradigmas e se estabelece pela obediência ao método, respeita das as relações dialéticas entre universal e particular. O segundo aspecto que precisa ser cuidadosamente considera do no estudo em questão, é aquele que se configura na existência  e vigência, no Brasil, de etapas diferentes da história, ao mesmo  tempo. Melhor dito: a existência de áreas territoriais brasileiras  que vivem etapas diferentes. Em linguagem um pouco pretensiosa,  já se disse, do fenômeno, que se trata de contemporaneidade do  não coetâneo, isto é, da existência, no mesmo tempo, de realidades  sociais diferentes, mas no mesmo país ou colônia. Alguém mencio nou já o fato de que a viagem ao interior brasileiro corresponde  não apenas a uma mudança de fusos horários, mas a uma mudança  de etapas históricas. Muitos já observaram as diferenças, no mesmo  tempo, na mesma época, entre o litoral exposto às influências  externas, em contato com o mundo, e o interior, onde são conser vados — e isto é tanto mais verdade quanto mais se recuar no  tempo — costumes de outra época. O Brasil apresentou, e ainda  apresenta — hoje, com efeitos já bastante atenuados, na verda de —, etapas diversas de desenvolvimento, para usar um conceito  generalizado e aplicado na economia. A uniformidade é, ainda,  entre nós, uma tendência que se vem acentuando, sem dúvida, mas  aquela heterocronia existe e funciona, condicionando comunidades  e sociedades. Trata-se de outro aspecto — agora particular, porque  brasileiro — do desenvolvimento desigual. O terceiro aspecto a considerar é o da transplantação. Enten de-se, como tal, o fato da transferência ao Brasil dos elementos  que aqui lançaram as bases de uma sociedade em tudo diversa  daquela aqui encontrada pelos chamados descobridores. O que isto  representou para a comunidade primitiva indígena, realmente, tem
 sido apreciado de forma insuficiente. O caminho natural, no caso,  teria sido — como aconteceu em outras áreas — a sua tendência  para a criação de um excedente e, conseqüentemente, o surgimento  do mercado, daí podendo — sem nenhum caráter impositivo, como  solução única — evoluir para o escravismo. Nada disso aconteceu  aqui. Muito ao contrário, o escravismo brasileiro foi estruturado à  base da contribuição humana africana. A sociedade brasileira dos primeiros tempos da chamada colo nização nasceu da transplantação dos elementos humanos africanos  e europeus: os primeiros forneceram a massa da classe dominada,  a que concorreu com o trabalho; os segundos forneceram a maio ria absoluta dos que concorreram com a propriedade, a classe do minante. Nada disso existia antes e os indígenas tiveram, no pro cesso, contribuição quase sempre inexpressiva. Quase sempre, se  diz bem, porque funcionaram, sob determinadas circunstâncias, seja  como servos, seja como escravos. Comparada com a contribuição  do negro africano escravizado, a dos indígenas foi insignificante.  Não há, pois, evolução entre a comunidade primitiva e o escravis mo; aquela permanece até hoje, salvo quando o avanço das rela ções capitalistas, como nos nossos dias, ameaça completar a des truição dos stocks  indígenas. A sociedade escravista é formada, no  mesmo território, por elementos provindos do exterior. Os alicerces da sociedade brasileira, pois, foram importados,  transplantados. Nessa transplantação vigoravam, para os indivíduos,  a condição de origem: a existência colonial deles não seria marca da, de início, senão pelas condições vigentes nas sociedades origi nárias. Isto considerando que o negro africano passava a ser escra vo desde que embarcado nos navios negreiros, não importando,  para efeitos sociais, a condição em que viviam em suas tribos ou  “nações”. Vinham como escravos; entravam no Brasil na condição  de escravos. O processo do escravismo não era causa de serem  escravos os que eram transferidos ao Brasil; a causa de serem  escravos, muito ao contrário, era o apresamento pelos negreiros. O escravismo brasileiro Trata-se, portanto, e fundamentalmente, de uma sociedade  transplantada: uns chegam para serem escravos; outros, para serem
 senhores, ou encontrarem condições para tal. Aos que chegam para  serem escravos, importa pouco a tradição, o passado africano. Se  os indígenas, como tem sido referido com freqüência, sofreram des truição cultural, mesmo, e talvez principalmente, quando aldeados  e “protegidos”, essa destruição foi processo idílico se comparado  à destruição cultural sofrida pelo negro africano. O seu esforço  para subsistir foi provavelmente menor do que o seu esforço para  salvar elementos de sua cultura de origem. O grau a que havia  atingido a cultura dos dominados explica, inclusive, o caráter de  suas lutas para se subtraírem à servidão ou à escravidão. Os indígenas se refugiaram no interior e a distância dos focos  de colonização foi o seu meio de defesa. Quando lutaram, preten diam apenas restabelecer, ali onde viviam, as condições vigentes  na comunidade primitiva. Os negros africanos ou nativos, ao se  aquilombarem, pretendiam reconstituir as condições originárias,  aquelas vigentes nas suas tribos ou “nações”. As rebeliões da sen zala jamais pretenderam destruir o regime vigente na colônia, subs tituindo-o. Nem tinham eles, na verdade, noção do que isso pode ria representar. Para eles, a liberdade consistia em fugir ao cativei ro, buscando região afastada e aí se agrupando. A sociedade colonial começa, pois, com os traços que definiam  a sociedade metropolitana, mais o escravismo, que era vigente ali  apenas no Sul e nas ilhas. Os que viviam em comunidade primitiva  eram uns; os que viviam em escravismo eram outros, na maioria  dos casos; não existe a passagem de um modo a outro, de uma  formação a outra. É nova particularidade do caso brasileiro. Não  é aqui o lugar e a oportunidade para descrever e caracterizar a  comunidade primitiva indígena; historicamente, na sociedade bra sileira, fundada em africanos e europeus, ela é secundária. Não é  o caso, também, de estudar as condições vigentes na África, por que tais condições não foram transferidas ao Brasil. Claro está que, visto o problema na dimensão universal, apre senta-se de determinada maneira; visto na dimensão americana,  apresenta-se de outra maneira. Assim, na dimensão universal, trata-  se de processo de acumulação primitiva, quando eram vigentes as  formas pré-capitalistas do capital — no caso, o capital comercial.  Mas, na dimensão continental americana — sul-americana, no  caso —, trata-se de escravismo puro e simples. E aqui coloca-se a  controvérsia relacionada com o que alguns denominam escravismo
 moderno, por oposição ao escravismo antigo, dito clássico. No que  se refere ao problema brasileiro — aspecto parcial do fenômeno  global —, não é aqui o lugar para discutir aquela controvérsia. Realmente, tratava-se, na época, de modo de produção histo ricamente superado e de há muito, pelo menos no que respeitava  ao Ocidente europeu, que marchava na vanguarda das transforma ções sociais e econômicas da humanidade. Ele reaparece, entretan to, na própria Europa, e na área mais interessada na mudança,  Portugal, que capitaneava as conquistas ultramarinas que gera riam o mercado mundial. Para as áreas em que o escravismo rea pareceu, não tinha a mínima importância saber se ele existira antes,  e fora superado. Para tais áreas, e as americanas com absoluto des taque, o escravismo apresentava-se como tal, tão simplesmente.  Essa diferença entre o universal e o particular, derivada do desen volvimento desigual, da heterocronia histórica, é que vem confun dindo a análise do problema. Mas não há como confundí-lo, tanto  mais que, na época da implantação do escravismo brasileiro, no  século XVI, nem sequer o capital comercial, forma precursora do  capitalismo, era dominante, em escala mundial. Marx não fez muitas referências ao escravismo brasileiro; suas  preocupações voltaram-se mais para o escravismo como se apre sentava na América do Norte. As poucas referências que faz ao  escravismo brasileiro, entretanto, são claras, quanto à sua maneira  de conceituar. “A escravidão — diz ele — é a primeira forma de  propriedade que, ademais, corresponde perfeitamente à definição  dos modernos economistas, segundo a qual é o direito de dispor  da mão-de-obra de outros.” 1  Para esclarecer: “Ademais, divisão  do trabalho e propriedade privada são termos idênticos: um deles  diz, referindo-se à escravidão, o mesmo que o outro, referindo-se  ao produto dela.” Mais adiante, refere-se aos países que “não têm  mais premissas naturais que os indivíduos que ali se instalam como  colonos”, lembrando, ainda, o “caso de conquista, quando se trans planta diretamente ao país conquistado a forma de intercâmbio de senvolvida em outro solo”.1  2 Trata-se, realmente, de escravismo. Batizá-lo de moderno ape nas o diferencia, no tempo, do outro, aquele que surgiu da evolu- 1  Karl Marx: A ideologia alemã  (Montevidéu, 1958), p. 32. 2 Ibid.,  p. 33.
 ção da comunidade primitiva. Surge por transplantação, com escra vos trazidos da África, numa atividade comercial em que consti tuíam mercadoria de grande valor. O escravismo foi a forma pela  qual a colonização, no caso brasileiro, venceu as dificuldades ini ciais, quase insuperáveis; sem ele, certamente insuperáveis. Foi eta pa necessária, historicamente. Sem ela, não haveria Brasil. Supor  que isso teria sido escravismo colonial, para distingui-lo do escra vismo clássico, é possível. Mas supô-lo modo de produção diverso,  obedecendo a leis diversas, não passa de fantasia, sem a mais  mínima base. O escravismo brasileiro, que surgiu porque o escravismo já  existia, enquanto moderno, em contraposição ao clássico, era vi gente em outras áreas, presidiu a montagem do sistema produtor  colonial, que nele encontrou uma de suas características básicas.  Mas a outra, que não pode ser esquecida, esteve ligada ao fato de  ser a produção destinada a mercados externos e distantes. A colo nização, em seu início, assentou na particularidade da inexistência  de mercado interno: a produção em larga escala era, finalistica-  mente, destinada à exportação. Ora, desde que enfrentamos o pro blema da sociedade de classes, isto é, a sociedade que ultrapassou  a etapa da comunidade primitiva, onde se produz apenas para o  consumo e se consome tudo o que se produz, trata-se de conhecer,  antes de tudo, quem produz e quem se apropria do excedente da  produção. Isto vai ajudar a caracterização das classes, a dominante e a  dominada. Desde que se inicia uma sociedade de classes, há um  excedente na produção; ela é definida na relação que diferencia  os que produzem, com o trabalho, dos que usufruem dos resulta dos da produção, com o lucro. Em esquema, empobrecedor como  todos os esquemas, mas útil ao entendimento do problema, trata-  se de distinguir entre os que produzem o excedente, para o merca do, e os que se apropriam do excedente, sob todas as suas formas.  Na sociedade brasileira, sob a vigência do escravismo, eram os  escravos que produziam e eram os senhores — de terras e de  escravos — que se apropriavam do excedente. Aqui, evidentemen te, considerado o sistema apenas em sua estrutura interna. Como  ela estava voltada para fora, para o exterior, porque a produção  se destinava a consumo no exterior, havia, naturalmente, os que,
 no exterior, apropriavam-se do excedente. Mas isso não é o que  nos importa, agora. Há que ir além, entretanto. Como é sabido, até nos cursos  colegiais, o escravismo não se estabeleceu em todo o território  brasileiro. Estabeleceu-se nas áreas em que se implantou um siste ma produtor voltado para o exterior e fundado na grande produ ção, tudo de plano, isto é, desde o início, e sem outra saída. E no  resto do território? Que regime teria vigorado na área pastoril ser taneja, na área vicentina, na área amazônica depois, na área sulina,  quando ali se expandiu o pastoreio? Foi o escravismo? Certamen te não foi. Salvo considerando as mudanças subseqüentes — o  algodão que “enegreceu” o Maranhão, por exemplo —, tais áreas  não tiveram no escravismo o suporte da produção. O feudalismo brasileiro A atividade coletora amazônica dominada pelas missões reli giosas, restabelecendo as especiarias, a produção ervateira das re duções jesuíticas missioneiras, são formas de produção que se des tinam em sua maior parte, ao mercado externo como ao mercado  interno. Mas o traço essencial delas é que são de proporções redu zidas, em comparação com a do açúcar. Ora, ainda no início da  dominação colonial, existiram focos ou áreas que não comporta ram o escravismo. A área vicentina, por exemplo. Ali, as tentati vas de estabelecimento da produção açucareira não vingaram. E a  produção ficou limitada ao consumo local ou próximo, o estuário  platino, a zona guanabarina, no início. Quem produzia, isto é, quem  proporcionava o excedente, aquilo que é produzido para ser levado  ao mercado? Os índios aldeados, como se sabe. Eram escravos,  ou eram servos? Aqui, instala-se a controvérsia. Os que produziam especiarias, na economia coletora amazôni ca, eram também os índios. Os que produziam erva-mate e cereais,  nas missões jesuíticas sulinas — que chegaram a constituir um  aparelho produtor de dimensões consideráveis para a época —, eram  escravos ou servos? Aqui se prolonga a controvérsia. Nos dois  casos, existiu a presença do mesmo elemento: a sujeição, por via  da autoridade do religioso, de ordens religiosas. Mas a produção,  no caso sulino, era destinada ao exterior, em grande parte. Está  claro que havia sempre uma produção de subsistência, fora do mer
 cado ou em mercado de dimensões insignificantes. O índio em  liberdade, na sua condição natural de vida, não produzia para o  mercado, não gerava excedentes. Sua subsistência era suprida no  sistema da comunidade primitiva. Ao produzir excedentes, estava  fazendo alguma coisa diferente e sob coação, não importando,  para os fins de caracterização do sistema produtor, se era este ou  aquele o tipo de coação. Nas “missões” amazônicas, como nas  “reduções” sulinas, o que importava era aquilo que se destinava  ao exterior. É possível admitir, nos dois casos, aliás particulares,  formas mistas, aspectos que fogem a uma classificação rigorosa,  nos moldes conhecidos e aceitos. O que parece não admitir dúvi das, entretanto, é que não cabe neles a qualificação de escravismo.  O mesmo acontece, e com maior clareza ainda, no caso da econo mia pastoril. Há mais: quando a mineração faz o seu aparecimento tormen toso, tudo se altera na área em que ela se instala, em relação ao  que vinha acontecendo em outras áreas, particularmente na área  escravista açucareira. No caso, estamos diante de escravismo, sem  a menor dúvida, qualquer fosse a função que a mineração bra sileira viesse a desempenhar face ao Ocidente europeu, como fon te de acumulação capitalista. Cabe, no caso, novamente, sentir  o universal e o particular, distinguindo-os, mostrando suas rela ções dialéticas. No particular brasileiro, trata-se de escravismo, pela  forma de produzir e pela apropriação. Muda a função da terra,  de início, porque ela não é trabalhada para produzir, não é objeto  do trabalho, mas proporciona mercadoria especial — o ouro. Ora, o quadro brasileiro apresenta, então, a singularidade apa rente de desdobrar-se em modos de produção diversos: nas áreas  principais, aquelas que fornecem o grosso da exportação, trata-se  de escravismo, à base do africano importado. Nas áreas secundá rias e subsidiárias — algumas também vinculadas à exportação,  mas em escala menor —, já não se trata de escravismo. Os missio nários, na Amazônia e na zona platina jesuítica, não são proprie tários do índio, não compraram o índio —, usavam o índio. Re ceberam dele contribuições em espécie e em serviços, como senho res que usufruem do trabalho excedente. O mesmo acontece na  área vicentina, desde os primeiros dias. Nela, o escravismo, visan do massas indígenas aldeadas pelos jesuítas sulinos, aparece de pois, não para estabelecer modo de produção escravista mas para
 fornecer força de trabalho a zonas escravistas privadas dos forne cimentos africanos pela intervenção holandesa. A atividade poma-  reira dos primeiros tempos piratininganos e vicentinos difere radi calmente da atividade do bandeirismo de apresamento e este não  se destina a suprir a própria área mas outras, já escravistas. Há quem se espante, ou simule espantar-se, com a simulta neidade de modos de produção diferentes na mesma colônia, o  Brasil, como se isso fosse, na história, algo de singular. Pelo con trário, ocorreu muitas vezes. Não houve nisso nenhuma singulari dade. Desde quando limites políticos ou geográficos interferiram  no sentido de separar áreas de modos de produção diferentes? Pois  a aparente e controversa singularidade, de que o caso brasileiro  foi apenas um dos exemplos, mostra como a realidade escapa das  classificações ligadas a paradigmas adotados e repetidos. Os diver sos modos de produção, como a sucessividade deles, devem ser  estudados à luz dos paradigmas conceituais, mas também à luz da  realidade concreta. O que importa é o método, não o paradigma. Em condições normais, isto z, aquelas próximas do modelo  teórico — que só tem validade conceituai, como sabe qualquer  aprendiz de marxismo —, o feudalismo representa avanço em rela ção ao escravismo e, por isso, vem depois, no tempo. Claro que o  desenvolvimento não é apenas desigual; ele foge, também, à linea-  rilidade, isto é, não obedece a processos constan.,ís e ascensionais,  obrigatoriamente. Ora, acontece no Brasil, e justamente na segun da metade do século XVIII, quando se aproxima a crise da auto nomia, isto é, quando se acumulam os elementos que vão determi nar aquela crise, que culminará no início do século XIX, acontece  que a área escravista mineradora, que atravessara transitória fase  de esplendor, quanto à quantidade do ouro produzido, entra em  progressivo declínio e esse declínio dá motivo e causa as mudanças  que lhe alteram fundamentalmente a fisionomia econômica, social  e política. Trata-se, do ponto de vista da riqueza produzida, de regres são e não de avanço. Ao mesmo tempo, as relações escravistas  passam, sem intermediações atenuadoras — como aconteceu no  modelo clássico —, a relações de novo tipo, que denominamos  feudais. No livro Formação histórica do Brasil , levantamos a tese  da “regressão feudal”, isto é, a passagem de relações de produção  escravistas a feudais, normalmente um avanço, coincide com o
 declínio econômico e todas as suas conseqüências. Claro está que  isso discrepava frontalmente do modelo paradigmático. E só male volência e ignorância poderiam acusar as teses levantadas naquele  livro de esquemáticas. Esquematismo haveria em supor uma su-  cessividade ascensional dos regimes, como o modelo conceituai,  só válido enquanto tal, admite. Aquelas teses poderiam ser tidas  como falsas, mas não como esquemáticas, justamente porque se  caracterizavam por discrepar do referido modelo. Há os que, entre tanto, preferem colocar uma tabuleta onde se deve apenas discutir  e argumentar. Mas a tabuleta, que vive da mera repetição, simpli fica e classifica, dispensando qualquer esforço teórico. Claro está que tudo é passível de discussão e de controvérsia.  As teses a propósito dos modos de produção nas áreas de passado  colonial, o Brasil em particular, estão longe de gerar questões fe chadas, atingindo níveis de definição tão inquestionáveis que dis pensem toda e qualquer discussão. Muito ao contrário, constituem  questões abertas, que só poderão ser assim encaradas e que exigem  o debate e a crítica. O resultado mais próximo da verdade histó rica será alcançado pelo somatório das contribuições; não será,  certamente, resultado de intuição genial de um estudioso ou de  pequeno grupo de estudiosos. Nada mais distante da verdadeira e  fecunda ciência, aquela que faz avançar o conhecimento, do que  a arrogância dos proprietários de chaves absolutas, que abrem to das as portas, mas ficam nas mãos de um ou de uns poucos, os  satélites dos primeiros. Levantamos a tese do escravismo, em determinadas áreas bra sileiras, na época colonial: a área açucareira nordestina, a área  mineradora. Opinamos por definir como escravistas, ainda, as re lações de produção que existiram em outras áreas, menos impor tantes, de lavoura de açúcar e engenho, como a campista, e aque las de lavoura cafeeira em sua fase fluminense e do vale do Paraí ba paulista. Deixemos de lado, para facilidade da análise, as áreas  de importância menor na produção colonial e mesmo posterior à  autonomia, onde admitimos terem vigorado relações feudais. Fi quemos, apenas, para limitar a controvérsia, no que diz respeito  ao escravismo, aqui instalado desde o primeiro século de existência  brasileira. Há quem negue a referida tese: não seria escravismo.  As razões apresentadas são diversas. Muito bem, que teria sido,  então? Capitalismo, respondem alguns. Não estou de modo algum
 de acordo com tal ponto de vista e creio que a maioria dos estu diosos não aceitará como capitalismo o modo de produção brasi leiro quando nem havia capitalismo dominante no próprio Ocidente  europeu. Teríamos sido capitalistas antes do capitalismo? Isto pode  ser considerado simples ponto de vista quando alguém, que defen de tal tese, está descompromissado teoricamente; da parte de mar xistas ou pessoas que afirmam aplicar o método marxista, é inad missível. Está claro, e aqui entra a relação entre o universal e o  particular, que, adiante, quando o capitalismo triunfa no Ocidente  europeu, põe a seu serviço uma variadíssima constelação de formas  de produção não-capitalistas. Rosa Luxemburg, em seu trabalho  sobre a acumulação capitalista, mostra como o capitalismo se vale  das áreas pré-capitalistas. Existe, ainda, uma controvérsia sobre o modo de produção  no Brasil colonial, para uns sendo escravismo; para outros, capita lismo; para terceiros, feudalismo. A controvérsia a propósito do  feudalismo brasileiro, da época colonial e de época posterior, tem  consumido, de alguns anos a esta parte, muito papel. Porque, na  verdade, o problema — ou o falso problema — do feudalismo, no  Brasil, importou sempre numa singular mistura entre ciência e  ideologia. Para ser mais claro: na controvérsia a propósito da exis  tência ou não do feudalismo brasileiro houve motivação mista, a  motivação científica e a motivação política. É interessante lembrar  que os documentos políticos do partido do proletariado brasileiro  sempre se referiam, até algum tempo atrás, a relações feudais ou  semifeudais cuja superação se fazia necessária. Porque divergiam  da formulação, alguns elementos negavam a existência daquelas  relações feudais ou semifeudais aqui. Era tolice, frisavam. Tratava-  se, na verdade, afirmavam categoricamente, de capitalismo, em  uma forma ostensiva, clara, insofismável. Chamar aquelas relações  de pré-capitalistas não passava, afirmavam ainda, de sofisma se mântico. E insistiam em que o capitalismo reinara aqui. Era uma  posição política que se travestia de divergência científica. Aceitar  a existência de relações feudais ou semifeudais, ou a existência de  restos feudais, era errôneo. Como errônea era a afirmação da necessidade de praticar uma  política que as eliminasse, como condição preliminar para passar  à nova etapa, mais avançada. Parecia errôneo porque importava
 em admitir a necessidade histórica de realizar ou completar a  revolução burguesa aqui, antes de colocar a reivindicação socialis ta. A tese, que foi bandeira de partido, importava, também, na  aceitação da existência e da função de parcela da burguesia, dita  nacional, que poderia desempenhar papel entre as forças interes sadas no acabamento da revolução burguesa e, por isso mesmo,  na superação dos restos feudais ou relações feudais ou relações  semifeudais. A controvérsia — na qual tive posição ostensiva —  tinha razão de ser. Não podia ser colocada no mesmo nível da quela outra que girava em torno de se saber se, na fase colonial,  existira aqui escravismo ou capitalismo. Tese, esta última, intei ramente despropositada. Aquela que girava em torno do feudalis mo continua aberta. Uma das características mais interessantes dos modos de pro dução anteriores ao capitalismo foi a que se expressou na confusão  entre o econômico e o social. As relações econômicas eram expres sas, em regra, por formas não-econômicas. Isso as disfarçava, como  se sabe. É universalmente aceito que o capitalismo tornou as rela ções de classes ostensivas, deixou-as claras, despojou-as de seus  disfarces. Ora, nenhum modo de produção importou em tantos  disfarces quanto o feudalismo. De início, verifica-se, no estudo da  história, que o feudalismo não importou na configuração de um  modelo por assim dizer clássico. Isso aconteceu com o escravismo:  na Antigüidade romana e grega, em períodos de tempos muito co nhecidos, sobre os quais existe documentação suficiente, vigorou o  escravismo. Criou o paradigma, o modelo. Conquanto o escravismo  moderno tenha decorrido de condições históricas muito diferentes,  aquele modelo serviu bastante para caracterizá-lo como tal. Mas o feudalismo não teve tal sorte. Houve formas diversas  de feudalismo, com aparências externas diversas. Ora, nessa ausên cia de paradigma infiltrou-se uma forma muito comum do erro,  aquela que consiste em confundir o conceito, que pertence ao geral  ou ao universal, com a forma concreta, que pertence ao particular.  Conquanto não tivesse havido paradigma e isso contribuísse para  confusões, só poderiam essas confusões vigorar ali onde se tomasse  o particular pelo universal, o concreto pelo conceituai. A contro vérsia sobre o feudalismo, assim, não é uma peculiaridade brasi leira. Ela está por toda a parte e tem sido alimentada por extensa  bibliografia.-
 Quanto àquelas formas feudais, segundo as nossas formula ções na Formação histórica do Brasil,  que apareceram e vigoraram  aqui, no primeiro e no segundo séculos — na área vicentina, na  área pastoril sertaneja, na área amazônica, na área pastoril sulina,  na área mineradora, depois da derrocada da economia aurífera —,  haveria que considerar, para início de discussão, o fato de que o  trabalhador, aquele que fornecia o excedente, não era escravo, e  os que se apropriavam do excedente não eram proprietários dos  índios ou dos negros vinculados às fazendas e lavouras e de tropas e  ofícios após a derrocada do escravismo aurífero — eram senhores  destes. Os missionários das ordens que ocuparam a Amazônia e  montaram a empresa produtora de especiarias, as drogas,  como os  jesuítas das reduções sulinas, como os donos das fazendas sertane jas, não eram proprietários de índios ou não-índios que trabalha vam para eles. Eram senhores. Assim, haveria que considerar, para definir a relação feudal,  não apenas a renda mas o laço de dependência social: os dois  traços a definiam precisamente. Marx dizia que, no medievalismo,  não existia o indivíduo independente, e acrescentava, explicitando: Todos são dependentes: servos e senhores feudais, vassalos e  suzeranos, leigos e clérigos. A dependência pessoal caracteriza  tanto as relações sociais da produção material quanto as outras  esferas da vida baseadas nessa produção. Mas, justamente por que as relações de dependência pessoal constituem o funda mento social incontroverso, não se faz mister que os trabalhos  e os produtos assumam feição fantasmagórica, diversa de sua  realidade. Eles entram na engrenagem social como serviços e  pagamentos em produtos. A forma diretamente social do tra balho é, aqui, a forma concreta do trabalho, sua particularidade  e não sua generalidade abstrata, como ocorre com a, produção  de mercadorias. A corvéia, como o trabalho que produz merca dorias, mede-se pelo tempo, mas cada servo sabe que quanti dade de sua força pessoal de trabalho despende no serviço do  senhor. O dízimo pago ao cura é mais palpável que sua bên ção. No regime feudal, sejam quais forem os papéis que os  homens desempenham, ao se confrontarem, as relações sociais  entre as pessoas, na realização de seus trabalhos, revelam-se  como suas próprias relações pessoais, não se dissimulando em  relações entre coisas, entre produtos do trabalho.3 3 Karl Marx: Oeuvres,  I (Paris, 19631, p. 611.
 A existência de relações feudais, predominantes no campo até  dias bem próximos dos atuais, senão agora, é um fato que se pode ria dizer ostensivo, tão claras as suas manifestações e tão variadas,  não fossem as confusões conceituais que o empirismo dos fatos con cretos não tem condições para desmentir. A dependência em que  ficaram os escravos, assim que a abolição derrogou os direitos dos  senhores sobre eles — apresentada, às vezes, em livros e depoi mentos, como denunciadora do caráter benigno do escravismo bra sileiro, tornando os escravos afeiçoados aos senhores —, foi uma  das formas que assumiram as novas relações. As múltiplas formas  de prestação de serviços e de renda que se apresentaram, na vasti dão territorial brasileira, denunciaram sempre, ao longo do tempo,  a presença daquelas relações. A servidão apresentou aspectos os mais diversos, quase sem pre mistos, de sorte a confundir os observadores. Quem percorreu  o interior brasileiro sabe, entretanto, como aqueles aspectos de nunciavam uma forma de exploração que contrastava, no século  XX, com as relações capitalistas estabelecidas e predominantes em  extensas áreas do litoral e mesmo algumas do interior. Responsável  pelas relações feudais, atenuadas em alguns casos e áreas e por  isso mesmo denominadas semifeudais, o latifúndio configurou a  moldura natural em que se desenvolveram. A disparidade entre a  vastidão territorial e o monopólio da terra, cedo estabelecido, foi  a base em que elas vicejaram. Frutos delas foram algumas das ma nifestações mais notórias da vida brasileira no interior: as lutas de  famílias, o direito exercido pelos proprietários da terra sobre o  destino de seus moradores, as formas patológicas que proliferaram  em disfarces como o banditismo endêmico, a arregimentação das  forças paramilitares nas grandes fazendas, os currais eleito rais que constituíram o pano de fundo da chamada “política dos  governadores”, o fanatismo religioso e as manifestações de re beldia a que deu lugar, como heréticas. Tudo denunciando um feudalismo não-codificado, mas expres so na renda de forma clara, inclusive nas relações de trabalho  que lhe davam expressão. A existência das oligarquias provinciais  e estaduais, controladoras do poder político, alicerçava-se nessa  forma particular de relação feudal que foi sempre presente: o mo-
 nopólio da terra. Mesmo em manifestações artísticas — peças de  teatro, romances, contos, crônicas —, as relações feudais aparece ram, de velhos tempos. Elementos comuns à temática medieval,  conseqüentemente, repontam na ficção brasileira: a mulher que se  disfarça em homem para combater ou exercer vingança, os amores  contrariados pela rivalidade familiar, as gestas de bandos armados  varando os sertões. No fundo do amplíssimo painel das guerrilhas  narradas em Grande sertão: veredas  está o latifúndio feudal, em  seu esplendor. A passagem E aqui surge a questão: como se teria processado a passagem  das relações escravistas às relações feudais? Teria acompanhado,  aqui, aquelas normas advindas do modelo forjado na Antigüidade?  Como é sabido, o modo de produção feudal derivou, em Roma, da  estagnação causada pelo escravismo; evoluiu através da forma tran sitória do colonato, quando os antigos escravos continuavam na  terra mas começavam a ganhar certa liberdade de movimentos. As  formas feudais não surgiram, ali, entretanto, apenas de tais con dições endógenas; houve também condições exógenas, configura das na presença da comunidade gentílica dos povos ditos bárbaros.  Não é necessário demorarmos na reconstituição daquele processo  de mudança, de passagem de uma formação social a outra, com  diversidades muito grandes, geradas pelas particularidades de cada  caso e área. Não é preciso ir mais longe para verificar como, no Brasil,  não poderia ocorrer identidade de processo, o que não significa  que tenha havido ausência de processo. Os casos apresentaram,  ainda aqui, diversidades, conforme a área e o tipo de produção.  De modo mais amplo, é possível distinguir as relações feudais ori ginárias, isto é, datadas dos primeiros tempos, e aquelas que sur giram da decomposição do escravismo, a partir do simples povoa mento da área, que permaneceram mais ou menos estáveis ao longo  dos tempos, até o quadro já complexo derivado de alterações sig nificativas.
 As mais antigas, estabelecidas por força da tradição íusa, que  os primeiros povoadores trouxeram e impuseram, e condicionadas  pelas imposições do meio social e até do meio geográfico, quando  conciliavam as suas características com as que derivavam da causa-  ção econômica, ainda que em moldes rudimentares. As segundas,  as posteriores, resultantes do desabamento do escravismo, antes e  depois do ato oficial da abolição, processando-se nas áreas em  que aquele dominou, e variando com a marcha territorial da rique za, que importava em deslocamento de força de trabalho de uma  área para outra. Da zona mineradora para a zona cafeeira, por  exemplo, e ruindo ali pela decadência da mineração aurífera e  aqui pela maicha dos cafezais para outra zona e pelo aparecimento  do colono. Assim, não apenas os modos de produção se apresentam, aqui,  com formas particulares, que os distinguem do modelo conceituai,  como não podia deixar de ser, mas também do modelo empírico  do Ocidente europeu; também são diferentes as formas de passa gem de um a outro modo de produção, de uma a outra formação  social. Acoimar de esquemática uma visão que aponta aquelas  diferenças, pois, é repetir um chavão e colocar a tabuleta conve niente, quase sempre ligada à luta ideológica. E, realmente, pro blemas ideológicos do presente interferem indevidamente na dis cussão científica, alguns examinando as posições de outros para  dissentirem deles por razões inteiramente distantes do terreno pró prio e natural. A controvérsia a propósito da existência ou não-  existência de feudalismo no desenvolvimento histórico brasileiro  deriva, em boa parte, de divergências de orientação política con temporânea, e este não é o único exemplo, no âmbito do tema  aqui tratado. Via de regra, os que negam a existência de feudalismo no Bra sil preferem definir como capitalistas as relações aqui vigentes,  desde o primeiro século — o que nos parece inteiramente falso e  mesmo despropositado — , enquanto outros tão simplesmente ne gam a existência de feudalismo mas não se preocupam em definir  o que existiu. O mesmo ocorre, ainda, em relação ao processo de  passagem de um a outro modo de produção, do escravismo ao  feudalismo, no caso. Não tendo aqui existido a comunidade gen tílica dos povos ditos bárbaros, nem conhecendo nós o colo-
 nato, claro está que a transição mencionada foi inteiramente di versa aqui. O fato de ter sido diversa não significa que não tenha  ocorrido. Negar a existência de feudalismo, inclusive, é uma forma  mais ou menos cômoda de tergiversar o problema da transição,  ignorando-o. A controvérsia reacende-se quando se trata de apreciar as  origens do capitalismo brasileiro e do processo que, normalmente,  o envolve, o da chamada revolução burguesa. Para os que admitem  ter existido aqui, mesmo na época colonial, capitalismo, não há  como discutir. Pois se foi sempre capitalismo, não há que consi derar as suas origens nem a transição que levou ao capitalismo,  que já era, segundo essa concepção singular. Para os que admitem  ter havido aqui escravismo, passamos deste ao capitalismo sem  intermediação. Claro está que não se nega, de plano, a possibili dade de passagem de um modo a outro de produção sem interme diação da seqüência clássica. É uma falsa acusação a Stálin atirar-  lhe as culpas da negação desse caso. Numa exposição meramente didática, destinada a principiantes,  o antigo chefe do governo soviético — cujo nome batiza, hoje,  tudo o que se aprecia como erro ou heresia — apresentou os modos  de produção na seqüência natural, isto é, aquela ocorrida, concre tamente, no Ocidente europeu, que foi, em suma, aquela que ficou  estabelecida no nível conceituai. Stálin já é, realmente, responsá vel por muitas coisas, e não há como fazê-lo responsável pelo que  não disse. Mas o fato é que, no Brasil, no nosso modo de ver,  tanto houve escravismo e passagem ao feudalismo, quanto feuda lismo e passagem ao capitalismo. Esta seqüência, por assim dizer  normal, porque acompanha o modelo conceituai e o esquema stali-  nista, decorre da análise do particular brasileiro e não de simples  adoção de uma fórmula como se fora universal e obrigatória. A revolução burguesa sanciona, normalmente, o primado po lítico da burguesia e, portanto, da classe que define a existência  de capitalismo, quando dominante. Esse primado pode suceder ao  primado econômico; isto é, a burguesia, no Ocidente europeu, foi  primeiro predominante na economia e só depois se tornou predo minante na política. Essa mudança é que ficou conhecida como  revolução burguesa. Seus exemplos mais conhecidos são o inglês,  com duas etapas, e o francês, na etapa decisiva que culminou com
 os Estados Gerais e com as guerras napoleônicas, encerrando uma  fase tormentosa com os movimentos da passagem da primeira à  segunda metade do século XIX. A particularidade de terem sido  tais casos, o inglês e o francês, marcados por episódios que ficaram  na memória popular motivou o aparecimento de um estereótipo,  o de que uma revolução se caracteriza por episódios destacados e  importa em mudança mais ou menos rápida, com radicais alte rações institucionais. Na verdade, os casos de revolução burguesa  que a história assinala caracterizam-se pela extrema variedade. En tre os casos alinhados na referida variedade estão aqueles em que  a burguesia passa a classe dominante política tão logo se torna  classe dominante econômica. Como os modos de produção — salvo o último, como se  sabe —, nascem uns no ventre dos outros, surgindo os seus ele mentos pouco a pouco, o momento de ruptura oferece, por vezes,  dificuldade para ser assinalado. A confusão deriva, em grande  parte, do fato de se procurar as analogias e as interpretações mais  na área empírica, isto é, nos fatos, no concreto, no particular, do  que no nível conceituai. Nem toda revolução burguesa, natural mente, pode apresentar episódio como o da queda da Bastilha.  Toda revolução burguesa, entretanto, qualquer seja a diversida de que apresente em relação a modelos empíricos, acontece, in dependente de tempo e espaço, quando determinadas relações pas sam a determinantes. Ora, entre nós, a busca afanosa de analogia  com modelo empírico consagrado e marcante, tem trazido mais  confusão do que esclarecimento. É viável colocar-se a questão,  assim: já passamos pela revolução burguesa, estamos passando por  ela, estamos próximos dela? Como ocorreu o processo de mudan ça, como situar as origens dessa mudança, que consagra o capita lismo como modo de produção dominante? Em torno dessas per guntas giram as controvérsias. Como o dinheiro, o salário é muito antigo. Marx dizia, a  propósito de conceituações, que nem todo negro é escravo e nem  todo dinheiro é capital. Os seus leitores sabem que o capital é  uma relação e não uma coisa. Quando o salário se torna a forma  normal de compra da força de trabalho, existe capitalismo. Sua  lei fundamental — para lembrar uma expressão cara a Stálin — é  a mais-valia. Quando isso aconteceu no Brasil? Marx, passando  do lógico ao histórico, em O capital,  depois da apresentação do
 modelo conceituai, passou à apresentação do caso particular euro peu. Para isso, reportou-se ao processo que batizou de acumulação  primitiva, isto é, a acumulação inicial, que deu origem ao processo  histórico da reprodução, no capitalismo, do capital. Tratava-se de  saber a partir de quando determinado montante de dinheiro se fa zia capital — era mais do que coisa porque era relação. Ele descreveu, com rigor de mestre que ficou tão admirado,  como surgiu então o capital. Mas a sua exposição referia-se, na turalmente, a um processo determinado, o processo que ocorreu no  Ocidente europeu. Claro está que, a partir daí, para o estudo da  revolução burguesa, para o estudo da origem do modo de produ ção capitalista, tratava-se sempre de um caso novo, com as suas  particularidades. Assim, os pesquisadores italianos, alemães, búl garos, russos, norte-americanos tiveram de apreciar as condições  em que o fenômeno ocorreu em seus países, quando procuraram  desvendá-lo e chegar ao descobrimento das origens do referido  modo de produção. Note-se: a acumulação primitiva é acrescida, nos  países de passado colonial, como o Brasil, das dificuldades já men cionadas, ligadas ao desenvolvimento desigual. Aqui, a particularidade apresenta um traço singularíssimo: en quanto, normalmente, trata-se de verificar o crescimento quantita tivo que acaba por se transmudar em qualitativo, numa acumulação  que se processa apenas dentro do país em estudo, aqui, muito  diversamente, como a acumulação era comprometida pelo fato de  existir um fluxo constante da renda para o exterior, não podia ser  pesquisada com esquecimento de tal característica. A acumulação  primitiva, nos casos de economia colonial, como nos casos de eco nomia dependente — sempre pela existência daquele fluxo desa-  cumulador —, não pode ser estudada e compreendida quando não  vista como particular do processo de que Marx, em sua obra fun damental, apreciou no nível universal. Daí o fato de poder o processo ser apreciado de dois planos  diferentes: quando tomado isoladamente e quando inserido no qua dro geral da época. Neste, praticamente tudo o que acontece nas  áreas coloniais e dependentes pode ser entendido como acumulação  primitiva. No Brasil, essa etapa, de há muito ultrapassada no Oci dente europeu, onde se forjaram os modelos empíricos, a acumu lação primitiva está ocorrendo ainda hoje. Como acontece aqui,  realmente, a expropriação que deixa na arena o trabalhador intei-
 ramente despojado, nas condições de, para subsistir, ter de vender  unicamente força de trabalho, o único bem de que dispõe. Acontece de formas as mais variadas, inclusive aquelas que  abrangem os imigrantes. Estes, como já foi observado, ingressam  no mercado brasileiro já despossuídos; foram expropriados antes  de aqui chegar. Mas no Brasil, antes e hoje, as formas se apresen tam travestidas e são, via de regra, mistas. Assim, cabe aqui a  categoria de semiproletariado, diga-se de passagem. Mas funciona,  evidentemente, um processo em que antigos servos ou elementos  mantidos em semi-servidão, como pequenos proprietários de ter ras e de instrumentos de produção, são despojados do que possuem,  para se interporem num proletariado recente. O processo não acon tece em todo o Brasil. Muito ao contrário — e aqui temos aquela  outra desigualdade de desenvolvimento já mencionada —, antecipa-  se em algumas áreas e se retarda em outras, em terceiras não  começou ainda. O nosso país é um mosaico e não se distingue nele, senão por  força de fantasia, processos puros e uniformes, generalizados. Cla ro está que, ao longo da história, todas essas desigualdades, todas  essas particularidades, acabam por apresentar aspectos confusos  e complexos. Há vários Brasis e não dois apenas, como na tese  conhecida. De qualquer forma, aquela confusão e aquela comple xidade não significam ausência do processo. Se a persistência de  um fluxo de renda para o exterior é fator importante na pesquisa  do capitalismo brasileiro, a persistência de formas mistas de re muneração do trabalho é fator importante na pesquisa não só do  nosso capitalismo como da formação do proletariado. Como se  sabe, não temos, a rigor, proletariado de terceira geração; são pou cos os operários de segunda geração. Há, permanentemente, o flu xo de trabalhadores expropriados no sentido das áreas capitalistas,  onde comparecem para se incorporarem à massa assalariada. Esse  fenômeno ocorre todos os dias, diante de nossos olhos. E ganha aquela dimensão trágica configurada no excesso de  oferta, na existência de gigantesco exército de reserva, um dos  maiores do mundo, que tanto concorre para aviltar o salário e  para possibilitar aos proprietários as condições favoráveis de ma nutenção do salário, aviltando o nível da força de trabalho. No  passado, a vizinhança do trabalho escravo e do trabalho servil,  isto é, daqueles que viviam em condições feudais, concorreu, po
 derosa e longamente, para fazer difícil a existência do assalariado  brasileiro. Isto está ancorado em velhos tempos e os colonos tra zidos por Vergueiro para Ibicaba, exemplo conhecido e escandalo so, não foram os primeiros nem os únicos a sofrer de tal vizinhança  com formas superadas de trabalho, além do peso de sua tradição  na forma de comportamento dos senhores e até na exigüidade do  pagamento. Quando, pois, num quadro geral de tamanha complexidade e  variedade, admitimos como existindo capitalismo no Brasil? Claro  que tudo leva a considerar o país como aquele arquipélago a que  se referia um economista, exigindo exame de áreas diferentes para  chegar a conclusões diferentes. Mas o próprio Brasil gera os seus  modelos e os seus paradigmas. O mais fácil, porque o mais co nhecido, foi aquele surgido no centro-sul, hoje região Sudeste, isto  é, a área compreendida pelos estados do Rio de Janeiro e de São  Paulo, com uma região vizinha e apendicular, o Sul mineiro. O fato de ter havido nessa área uma certa continuidade no  desenvolvimento material contribuiu para que nela surgissem as  primeiras condições para a mudança qualitativa que definiu, a cer ta altura, o aparecimento do capitalismo. A mineração, depois o  avanço cafeeiro, finalmente a indústria, assinalam etapas que cau saram, nesse área, pela continuidade no crescimento da riqueza,  desprezadas as crises naturais, o aparecimento das condições pré vias que permitiram e impuseram aquela mudança. A passagem  da economia colonial à economia dependente, por outro lado —  em que tal área teve papel preponderante —, permitiu que a acumu lação, parca na etapa colonial, lenta na etapa dependente, confi gurasse o germe do capitalismo e que este se desenvolvesse. A  rigor, como antecedentes históricos, Vergueiro foi um burguês pio neiro, Mauá foi um burguês típico. Um e outro, este principalmen te, vencidos pela resistência do meio predominantemente feudal e  escravista. As reformas do fim do século XIX, particularmente a do re gime de trabalho e a do regime político, com as suas implicações  no sistema financeiro, de que o encilhamento  foi episódio caracte rístico, como o funding  negociado por Campos Sales o foi, de  outra forma, as reformas assinalam os primeiros vagidos de um  capitalismo nascido de parto dificílimo. Ao longo da fase republi cana, o panorama político esconde, na verdade, atrás de aconteci-
 mentos às vezes apenas pitorescos, a luta do capitalismo brasileiro,  na sua infância, para subsistir em face dos obstáculos com que se  defronta. A controvérsia sobre o protecionismo assinala aspecto  interessante dessa luta. A acumulação interna, entretanto, encon tra, em dois momentos, oportunidade para um salto à frente: o  primeiro foi a guerra mundial que durou de 1914 a 1918; o  segundo foi a crise iniciada no mundo em 1929. Existindo as con dições, as oportunidades foram aproveitadas e as relações capita listas alastraram-se. Dois outros episódios, adiante, mas já sob condições diferen tes, assinalaram o avanço dessas relações: o movimento de 1930,  com a derrocada política das velhas oligarquias, que traduziam a  dominação feudal e semifeudal, e a guerra mundial de 1939-1945.  O Estado Novo, a rigor, foi um episódio da revolução burguesa no  Brasil, na seqüência do movimento de 1930 e das reformas que  uma nova ordem política impunha. Ora, aqui não há fatos rele vantes a marcar um momento em que as relações passam a capita listas. Não há nenhum Cromwell, não se impôs ao povo brasileiro  nenhuma Magna Carta, não há nenhuma queda da Bastilha e não  tivemos nem Marat nem Napoleão. O processo brasileiro difere  inteiramente do modelo do Ocidente europeu, que é o modelo  clássico. O capitalismo brasileiro avança devagar, aproveita as brechas  para avanços mais rápidos, transige sempre com as relações polí ticas mais atrasadas e as econômicas que as asseguram, manobra,  recua, compõe-se. Gera uma burguesia tímida, que prefere tran sigir a lutar, débil e por isso tímida, que não ousa apoiar-se nas  forças populares senão episodicamente, que sente a pressão do  imperialismo mas receia enfrentá-la, pois receia mais a pressão  proletária. Os episódios de avanço são como patamares, duramen te alcançados às vezes. Não há os episódios históricos de destaque,  aqueles que vão para os compêndios, depois ensinados nas escolas  e objeto de celebrações cívicas. Isto não significa que o processo  não funcione, não avance — embora o avanço não seja uniforme e  linear —, não seja marcado por conquistas. Tal processo se asse melha mais aos movimentos de uma roda quadrada, que vai se  tornando redonda na medida em que rola, primeiro aos tombos,  abalando as estruturas, depois mais suavemente. Nossa revolução  burguesa não tornou ainda redonda essa roda gigantesca. Estamos
 dentro dela, fazendo parte dela, somos testemunhas e protagonis tas. Mas a heterogeneidade persiste: o Brasil arcaico nos cerca  por todos os lados; o latifúndio persiste, resiste, abalado mas so brevivendo a tudo. As alterações agrárias processam-se pela durís sima via prussiana: todos os dias estamos assistindo episódios, cho ques e escândalos dessa via tortuosa, que inflinge sofrimento e  miséria às massas camponesas, mantidas em secular atraso, ainda  nos primeiros esforços de organização e nas primeiras lutas da  tomada de consciência. É uma revolução burguesa peculiar a nação de passado colo nial recente e de economia dependente. Revolução burguesa difí cil, pois o imperialismo, que preside a dependência, coloca todos  os obstáculos à união entre burguesia e proletariado-campesi nato para o avanço efetivo. Na época da revolução burguesa clás sica, a do Ocidente europeu, a burguesia podia aliar-se ao proleta riado incipiente para derrotar os senhores feudais e derrubar seus  direitos e privilégios. Era senhora do seu destino e suficientemente  forte para, passada a luta, reservar-se as vantagens da vitória.  Hoje, isso não acontece. A burguesia, nos países de economia  dependente, teme a aliança com as classes dominadas, pois estas  estão suficientemente fortes para reivindicar a participação nas  vantagens da vitória. Vamos, então, pelos trancos e barrancos de  uma revolução burguesa que se desenvolve por patamares, sacudi da de crises e acompanhada pelo imperialismo, que intervém no  processo a cada passo. Essa revolução burguesa desprovida de lances espetaculares,  singular em suas manifestações, gera sempre figuras destacadas no  plano empresarial — os sucessores de Vergueiro e de Mauá — e  no plano político. Não é preciso demorar demasiado na análise  histórica para apontar, entre os primeiros, a Roberto Simonsen;  entre os segundos, a Getúlio Vargas. Os recuos a formas ditato riais e a regimes de tipo fascista são os recursos de que se vale a  burguesia, pressionada pelo imperialismo, para assegurar a via prus siana e a exploração cômoda e pacífica da força de trabalho: o  Estado Novo, como a “redentora”, são exemplos dessa acomodação  com o atraso. Isso não representa fatalidade, porém, mas resulta  da correlação de forças. Na medida em que o proletariado brasileiro consegue tomar  consciência e organizar-se e ajuda as massas camponesas a avançar,
 a burguesia sente necessidade de compor a sua força com eles,  para enfrentar o imperialismo e introduzir na estrutura do país as  reformas indispensáveis ao progresso harmonioso, não esse cresci mento numérico de índices que sonega a realidade cruel mas aque le que se define pelas vantagens que são extensivas às mais amplas  camadas da sociedade brasileira. De qualquer forma, completar as tarefas peculiares à revolu ção burguesa, ainda não alcançadas, no Brasil, pelas próprias ca racterísticas de que esta se tem revestido, é indispensável. A bur guesia brasileira tem perspectivas para decidir de seu destino e  completar a sua revolução. Que terá, de qualquer forma, no Brasil,  características completamente diversas, mesmo quando acabada, não  se assemelhando senão conceitualmente — isto é, por ser uma  revolução burguesa —, aos modelos empíricos clássicos. Porque,  entre outras coisas, é de outra fase histórica.
 A ESTRUTURA COLONIAL O Brasil aparece na história quando da formação do mercado  mundial, na etapa que alguns estudiosos convencionaram conhe cer como revolução comercial, talvez para estabelecer e frisar  suas diferenças em relação a outra etapa, aquela que ficou conheci da como revolução industrial, de época posterior. Sem o enten dimento do quadro em que aconteceu, pois, o que os compêndios  denominam “descobrimento”, é impossível distinguir o que carac terizou a colonização, regime que teve início com o ingresso do  Brasil na história e que ficou encerrado, no nível político, com a  autonomia. O próprio “descobrimento” decorre, não do acaso, mas  das condições e das motivações que definiram a formação do mer cado mundial. As grandes navegações e as ditas “descobertas” ou  “descobrimentos”, que dão configuração ao chamado “mundo co nhecido”, são manifestações essenciais da expansão das trocas que  assinalam a passagem do medievalismo à Idade Moderna, para men cionar outra categoria da história comumente aceita, quando o  feudalismo declina e surgem as primeiras condições para o apare cimento do capitalismo. O declínio da estrutura feudal, de isolamento e de reduzidas  trocas e contatos, rompe o rígido regime das corporações de ofí cios e os laços de dependência entre os servos e os senhores.  Paralelamente ao processo de centralização de poderes, que dá ao  rei preeminência sobre os demais elementos da nobreza, desenvol-  ve-se o processo em que surgem ou crescem atividades que, inde pendendo da terra, permitem o enriquecimento. As trocas fixam  novas condições de existência, exigindo novas técnicas, novos ins trumentos e até uma nova ética, a ética que lhes retira a inferiori dade anterior de status.  É, pois, a época do capital comercial e  do capital usurário, aquele auferido no movimento das mercado rias, este auferido com o dinheiro encarado enquanto mercadoria. No nível dos acontecimentos, é a época das cruzadas, da uni ficação papal — quando europeu e cristão tornam-se sinônimos —,  das lutas para expulsar os árabes do continente e permitir o resta- sX/lo/QJL
 belecimento da navegação comercial no Mediterrâneo para os cris tãos, da queda de Constantinopla, tomada como marco histórico e,  de modo geral, da unificação real, do alvorecer das nações. No  nível da cultura, do Renascimento e do Humanismo, com o apa recimento dos idiomas nacionais e das literaturas nacionais. No  nível das técnicas, do emprego da pólvora para propelir projéteis,  da letra de câmbio para facilitar a circulação do dinheiro, da na vegação de longo curso, para ampliar os roteiros e permitir o  devassamento dos oceanos. A transformação qualitativa no nível das trocas comerciais  opera-se desde que a quantidade de mercadorias trocadas passa da  etapa das especiarias, cujo consumo ficava limitado às classes mais  afortunadas, via de regra, à etapa dos produtos que encontram  largo consumo e, portanto — porque o comércio domina a pro dução —, devem ser produzidos e consumidos em larga escala.  Essa transformação qualitativa vai afetar, em processo de ritmo  acelerado, produtos até bem pouco de consumo local — como o  açúcar — , tornando-os mercadorias, isto é, aquilo que é produzido  para ser trocado, e deve ser trocado em escala muito maior do  que antes, atingindo mercados distantes. Para o que, no domínio  das técnicas, os meios de transporte se aperfeiçoam e a navegação  cria novos barcos e novos sistemas de orientação. A especialização de regiões na produção de determinadas mer cadorias obedeceu ao determinismo de condições ecológicas, em  primeiro lugar no tempo, para só depois obedecer ao de condições  econômicas. Na referida época, a especialização, via de regra, de pendia de condições fixadas naturalmente, isto é, das condições  ecológicas. As trocas com o Oriente, por roteiros terrestres até os  portos do Mediterrâneo — as rotas das caravanas —, desenvolve ram-se em proporções tais que passaram a exigir maior capacidade  de transporte e tal exigência só poderia ser atendida, ao tempo,  pela navegação. Entre os produtos orientais que, com um passado de espe ciarias, haviam atingido o nível da mercadoria de largo consumo,  destacava-se o açúcar, obtido da cana, planta oriunda das áreas  alagadas de Bengala, fornecendo ali um caldo de consumo local.  Transportado para a Mesopotâmia, ali os árabes criaram a técnica  que permitia transformar o caldo em sólido; só após transformado  em sólido, o açúcar se tornou mercadoria. O largo contato das
 caravanas árabes com os barcos venezianos que freqüentavam os  portos do fundo do Mediterrâneo permitiu aos mercadores italia nos hegemonia no primeiro momento da expansão do consumo do  açúcar na Europa. Eles dominaram não apenas a produção, mas  principalmente a comercialização. Como o açúcar exigia, para ser  transportado, o beneficiamento industrial, era preciso que os pro dutores tivessem acesso à técnica que proporcionava o maquiná-  rio rudimentar das moendas e que os comerciantes tivessem acesso  ou dominassem os meios de transporte. O terceiro termo estava  no que se referia ao consumo: era preciso que se controlasse os  mercados consumidores. Região de passagem obrigatória para a navegação entre a  Europa e o fundo do Mediterrâneo — teatro de largos contatos  entre cristãos e muçulmanos, entre o Ocidente e o Oriente —, Por tugal originou-se de processo comum no declínio feudal, quando  se fragmentavam territórios por força de disputas entre senhores.  Sua autonomia assentou particularmente nos largos contatos ma rítimos, que lhe permitiram resistir às tentativas de reincorporação  ao domínio de origem e enfrentar a prolongada luta contra os  árabes, no sentido de expulsá-los. Nos portos lusos sediaram-se  grupos mercantis, desde cedo, e particularmente aqueles que dei xavam a península italiana. A precocidade da unificação monár quica e a presença ativa e prestígio do grupo mercantil, em parte  adventício, permitiram a Portugal ingressar na etapa nacional antes  de outros povos. Essa antecipação deu a Portugal, também, as  condições para colocar-se na vanguarda da expansão marítima que  ligaria diretamente os mercados produtores do Oriente aos merca dos consumidores da Europa. Antes de lançar-se à etapa das navegações oceânicas, de que  resultaram os chamados “descobrimentos”, Portugal expandiu as  trocas com as regiões africanas e tornou-se ainda herdeiro do mer cantilismo italiano. Dos venezianos, os mercadores sediados em  Portugal receberam os segredos da produção e do comércio do  açúcar, que passaram a dominar muito cedo, tornando-se produto res de açúcar nas ilhas do Atlântico. Não estavam, porém, em  condições de operar a criação de um mercado de consumo capaz  de permitir a expansão tomada depois pela produção açucareira.  Essa operação — a mais importante da fase inicial do mercantilis mo — pertenceu aos holandeses, que detinham desenvolvimento
 manufatureiro que lhes permitia fabricar o maquinário das moen das, desenvolvimento técnico para construir barcos relativamente  grandes, e desenvolvimento econômico que lhes permitia conside rável avanço nas trocas e anteciparia o advento do capitalismo. Como os italianos antes, Portugal, entretanto, exercia o co mércio de intermediação, isto é, não vendia o que era produzido  no reino mas o que comprava em outras áreas. No século XVI,  os portugueses exerceram, praticamente, o monopólio do comércio  do açúcar das ilhas, do algodão e da pimenta da índia, do aloés  de Socotora, das pérolas de Ormuz, da canela e dos rubis do  Ceilão, do sândalo e da cânfora de Sumatra, do cravo e da noz-  moscada das Molucas, das musselinas de Bengala, do chá da índia  e das porcelanas do Japão. Tratava-se, para o grupo mercantil luso,  de obter, por compra, por troca ou pela força, mercadorias nas  áreas produtoras e de vendê-las nas áreas consumidoras, auferindo  a diferença de preço entre a operação inicial e a final. Nisso resi diu o segredo do sucesso português e nisso residiu o seu fracasso,  a sua debilidade fundamental: a economia lusa não era nacional. Origem da colonização O comércio de intermediação era, por característica, desliga do dos extremos, a produção e o consumo, e nada tinha a ver com  a estrutura dos mercados produtor e consumidor. Daí o estabele cimento, no Oriente, de simples feitorias, isto é, praças onde se  operava o embarque das mercadorias. Não se tratava de ocupar a  área produtora. Não se tratava de montar a produção, que existia  antes, que constituía empresa à parte, em que os comerciantes  lusos não interferiam. O desenvolvimento do comércio do açúcar,  entretanto, apresenta aos portugueses, pela primeira vez, a neces sidade de ocupar, de interferir na produção, de povoar — de co lonizar,  em suma. A estrutura portuguesa de Estado não estava  preparada para a tarefa nova que se apresentava, no curso do  desenvolvimento mercantil. A empresa das navegações e do co mércio em escala mundial não previra a eventualidade de ocupar,  povoar, produzir. Ela não era produtora, mas apenas mercantil.  Se a eventualidade de assumir os encargos da produção era arris cada, ainda no caso de já existir produção na área a ser ocupada —
 como acontecia no Oriente — , apresentava-se muito mais difícil  no caso em que não existia produção, tratando-se de iniciá-la. E  este era, precisamente, o caso brasileiro. Desde que se tratava de montar, em região distante, empresa  produtora que atendesse aos interesses do mercantilismo metropo litano, havia que lançar as bases de tal empresa de forma que  ela se inserisse no quadro do tempo. Que produzisse, como con dição eliminatória, mercadorias suscetíveis de entrarem, desde logo,  nas correntes de comércio; que, portanto, tivessem mercado con sumidor assegurado. Aquela mercadoria que tinha já mercado con sumidor amplo e em condições de ser ainda ampliado, que estava  já incorporada à experiência produtora e mercantil lusa e que  tinha condições para proporcionar alta rentabilidade era o açúcar  da cana, que Portugal produzia nas ilhas do Atlântico. Desde que  as condições ecológicas permitissem, a cana-de-açúcar se impunha  como planta adequada. Suas sucessivas transplantações haviam  comprovado a fácil adaptação, dentro de determinados limites de  solo e de clima, em regiões novas. Para produzir, entretanto — satisfeitas as condições ecológi cas e escolhida a mercadoria adequada —, era preciso muito mais.  Era preciso capital (no sentido de determinado montante de di nheiro, tão simplesmente) e era preciso força de trabalho. Quanto  à primeira exigência — sobre o que convencionamos conhecer como  investimento inicial —, grandes obstáculos se apresentavam, pois  a acumulação mercantil era lenta e, não sendo nacional, no caso  português, estava constantemente no giro, fora de alcance do Estado  luso. Duas linhas se apresentaram, na solução do problema: a de  buscar, mais uma vez, a aliança mercantil holandesa, tradicional  na exploração do açúcar, presente nas técnicas, na produção, no  transporte e na distribuição; e a de transferir a particulares, prin cipalmente aqueles enriquecidos no tráfico com o Oriente, os en cargos iniciais. Claro está que, num caso e no outro, pois ambas  as linhas foram adotadas, operava-se uma partilha. Desde logo se  verifica, portanto, que a colonização do Brasil importou, desde ó  início, numa transferência de lucro a mercadores estrangeiros. Ao  particular luso, o donatário, se transfeririam poderes os mais am plos, apelidados majestáticos até, mas exigia-se a condição da dis ponibilidade dos recursos para o investimento inicial.
 Havia que resolver, ainda, o problema da força de trabalho.  Se se tratava de produzir para exportar, e essa condição, por si,  assinala e caracteriza a situação inicial do Brasil, havia que pro duzir em grande escala. Não faria sentido produzir em pequena  escala, em tal distância, e ainda menos produzir para consumo  local ou próximo. A grande produção, nos termos em que a ativi dade da terra estava colocada, na época, demandava força de traba lho numerosa. Como, ao tempo, o trabalho assalariado apenas exis tia isoladamente, a saída espontânea e natural estava no escravismo,  isto é, na coação física de massa de trabalhadores. Poderiam ser  indígenas, se estes se adaptassem ao trabalho sedentário obrigado.  São conhecidas as razões que impediram o aproveitamento do indí gena na montagem da empresa açucareira no Brasil. Daí a saída  da transplantação de massas escravas africanas, uma vez que o  escravismo moderno havia sido já solução para a ocupação do solo  no Sul de Portugal, para a produção de açúcar nas ilhas e para  outros tipos de exploração, sendo o tráfico negreiro uma das gran des empresas do mercantilismo. As grandes peças da estrutura estavam, pois, dispostas: a ter ra, que era virgem e extensa, ecologicamente favorável; o capital,  levantado na área mercantil holandesa e ainda na portuguesa, e  levantado pelo que poderia ter sido, então, conhecido como ini ciativa privada”; a força de trabalho, transferida da África, apro veitando a prática das empresas negreiras, largamente lucrativas. O  Estado doava as terras, de que não havia antecedentes de proprie dade, delegava poderes e reservava-se o monopólio do comércio.  Assim, o particular corria os riscos da empresa, recebia direitos  administrativos e políticos amplos, monopolizava a produção, em  que o Estado só interferia pela tributação, previamente determina da, mas não interferia na comercialização. Foi, portanto, solução  média: se, antes, o Estado mercantil não interferia com os extre mos, a área produtora e a área consumidora, isolado de ambas,  fazendo apenas a intermediação, agora, inovadoramente, continua va ausente da área consumidora e delegava a área da produção.  Atrás da rigorosa montagem da empresa produtora do açúcar bra sileiro — que, no século XVII, se apresenta como a maior empresa  mundial, aquela que concorre, nas correntes de comércio, com o  volume maior de mercadorias — está, pois, o capital comercial do
 Ocidente europeu, a mais avançada das formas pré-capitalistas do  capital. Se é, pois, absurdidade falar em renda imobiliária, na etapa  inicial da vida brasileira, quando ela não impõe limites ao emprego  de capital ou de trabalho sem capital, é, ao contrário, pertinente,  examinar a colonização como gigantesca empresa produtora trans plantada. Ela tem, no Brasil, no caso particular, apenas sede, pois  tudo o que a compõe, menos a terra, vem de fora. Essa transplan tação rompe com o desenvolvimento histórico local, pois destrói,  onde se implanta e onde se alastra, a comunidade primitiva indí gena, interrompendo a sua evolução natural para o escravismo,  envolvendo nessa interrupção a destruição também do patrimônio  cultural dos primitivos habitantes da terra. O que define, conse-  qüentemente, o regime transplantado? O traço essencial está no  trabalho escravo. Trata-se de forma ampla — a mais ampla, no  tempo — do escravismo moderno, proporcionada pela expansão  mercantil, pela constituição do mercado mundial, pela acumulação  primitiva no Ocidente europeu e pelo avanço do mercantilismo que  anuncia a criação de condições para o surgimento do capitalismo.  A exploração colonial — no sentido de colonização  particular mente — constitui pois uma das fontes mais importantes para o  advento do capitalismo, não sendo estabelecida embora em forma  capitalista, antes alinhando, pelas necessidades reais, pelas con dições vigentes, regime de trabalho superado historicamente, o es cravismo. A produção escravista brasileira não se destinava ao mercado  interno, que não existia, mas ao externo, de características inteira mente diferentes; é aqui estabelecida quando a produção de mer cadorias e a sua comercialização haviam atingido, em escala mun dial, uma etapa superior e vai alimentar o seu desenvolvimento;  é aqui estabelecida em extensas áreas, no regime da grande pro priedade, do latifúndio, e vai ser a sua mola propulsora. Trata-se  de regime escravista moderno, inteiramente diverso do escravismo  clássico na forma, aqui apresentando forma não exclusiva mas  gigantesca, que acaba por configurar um modelo de sistema pro dutor aparentemente anômalo, porque original: fechado por den tro, pela ausência de mercado interno; fechado por fora, porque  submetido ao regime de monopólio comercial. Começam a surgir  desse conjunto de características, as grandes linhas definidoras do
 que ficou batizado de colonização:  a especialização ecológica; a  ausência inicial de valor da terra e sua ampla disponibilidade; o  regime de monopólio comercial. A colonização brasileira, assim estruturada, inicialmente, atra vessou as suas primeiras etapas quando do apogeu do desenvolvi mento mercantil português, minado, entretanto, pela debilidade já  indicada; constituiu, no decorrer de um século, a maior empresa  produtora do mundo; mas atravessou as etapas posteriores já na  fase de declínio do mercantilismo luso e de subordinação da me trópole na correlação política de forças no quadro mundial. Se  Portugal, na época de esplendor mercantil e político, fundou sua  expansão na associação com organizações estrangeiras, na fase de  declínio as possibilidades de acumulação se tornaram nele prati camente nulas. Assim, uma acumulação reduzida, de todo despro porcionada ao vulto da empresa e à extensão do apossamento,  reduziu-se ainda mais, de sorte a anular-se. O fluxo de renda que  começava na colônia e levava à metrópole, pois, acaba por apenas  passar por ela, destinando-se a outras áreas. Na medida em que  isso ocorre, a colonização se torna extorsiva, e cada vez mais ex-  torsiva. A economia colonial Isso se torna claro com o advento da mineração. Aparecendo  dois séculos depois do estabelecimento da colonização e quando o  açúcar brasileiro entrara em séria crise, por efeito da concorrência  de outras áreas produtoras, a mineração subverte o esquema então  vigente, obrigando a metrópole a interferir na área da produção  e forçando-a a assumir a totalidade dos poderes, em vez de os  delegar. A acomodação anterior, monopolizando os senhores, na  colônia, a produção, e monopolizando os senhores na metrópole a  comercialização, rompe-se. Não se resume nesse plano, o que seria já grave, o rompimen to e a mudança. Outras são as alterações introduzidas no regime  da colonização. A mineração abre perspectivas — que o açúcar  negava — ao homem livre, porque não exige investimento de vulto.  Ocorre em zona distante do litoral, obrigando à abertura de ca minhos. Leva ao deslocamento de recursos, atraídos de outras
 zonas, particularmente as que declinam. Essencialmente, a mine ração afeta profundamente o sistema por duas vias, a da proprie dade da terra e a do regime escravista: o minerador não procura  um título de propriedade, mas um título para minerar, esgotados  os veios na área concedida, passa adiante, deslocando-se constan temente. O escravo, de sua parte, vê alterado o regime de trabalho,  muito mais apto a proporcionar a alforria e muito menos extenuan te. O preço do escravo sofre considerável alta e a área mineradora  não só recebe massas de escravos da área açucareira como aquelas  proporcionadas por um tráfico em ascensão. A mineração não provoca apenas a ocupação de extensa área  do interior, mas, e principalmente, considerável crescimento de mográfico que, pouco a pouco, gera o mercado interno, antes pra ticamente inexistente na colônia. A estrutura açucareira, realmente,  obedecia a esquema simétrico: concentração majoritária de recur sos na produção para o exterior e dispersão minoritária de recur sos, geralmente sobrantes, na produção de subsistência, quase fora  do mercado, porque destinada à simples manutenção dos habitan tes do latifúndio. Ora, o aparecimento de mercado interno, gerado  pela conjunção entre crescimento demográfico e ascensão da ca pacidade de compra, representa condição nova, na vida colonial,  e sua importância repercute por toda a extensão territorial da  colônia e até mesmo em áreas espanholas. O ouro transforma em  mercadoria, pela extrema especialização que exige e pela concen tração em sua busca de todos os esforços, produtos antes consumi dos no local, produzidos apenas para satisfazer necessidades locais.  Eles passam a ser conservados, transportados e consumidos nesse  mercado interno que se amplia desde o início do século XVIII  até uma ou duas décadas após a sua primeira metade. Além da produção açucareira e da produção aurífera, a colô nia, a partir do século XVII, apresenta duas outras estruturas de  produção: a da economia coletora amazônica, inteiramente desei-  xada e voltada para os mercados externos, e a pastoril, esta com  duas áreas principais, a do sertão nordestino e a das planícies  sulinas, ambas voltadas para o mercado interno; a nordestina, mais  antiga, atendendo as necessidades dos latifúndios açucareiros; a  sulina, posterior, atendendo as necessidades da zona mineradora.  Quando as quatro estruturas estão em funcionamento simultâneo,  embora em ritmo desigual, a colônia atinge sua dimensão territo-
 rial máxima e apresenta um crescimento demográfico acelerado,  com a ocupação ganglionar do território, isto é, com a forma de  arquipélago econômico e demográfico que chega aos nossos dias  e representa sempre sério obstáculo quer à unidade, quer ao de senvolvimento nacional, admitindo que este dependa essencialmen te da existência de extenso mercado interno, a que a dispersão  contraria. Claro está que, nessa dispersão e nessa variedade, torna-se  difícil encontrar os traços universais: a economia açucareira, tra dicional, tendo constituído gigantesca empresa produtora, repousa  sobre o regime escravista, que a condiciona; está voltada para a  exportação e entra em declínio prolongado desde o século XVII,  quando os holandeses se distanciam da área produtora brasileira  e montam sua própria área produtora colonial concorrente; a eco nomia coletora amazônica, fazendo renascer, em terras americanas,  o tráfico de especiarias, repousa sobre a estrutura religiosa das  missões e sobre o trabalho servil dos indígenas que as missões  arrebanham, voltada também para a exportação; a economia aurí fera, atingindo rápido e transitório esplendor, repousa sobre um  tipo de escravismo novo, até o seu declínio, proporcionando, en tretanto, ainda que voltada também para o exterior, as profundas  transformações que acabam por arruinar o regime colonial, parti cularmente gerando o mercado interno; a economia pastoril, subsi diária sempre e com áreas dispersas, repousa sobre o trabalho de  condições feudais e apresenta dupla face: a da carne, voltada para  o mercado interno, e a do couro, voltada para o mercado externo  e atravessando altos e baixos. O ângulo que permite ter do conjunto da economia colonial —  de qualquer economia, de resto, através dos tempos — uma visão  mais exata é o da tributação, que denuncia a forma como fica  regulada a apropriação da renda. Essa tributação — que não foi  ainda convenientemente estudada, tendo as pesquisas e análises se  resumido ao lado apresentado pela legislação, esquecendo o apre sentado pela execução, pela realidade — atende aos interesses das  classes dominantes, na metrópole e na colônia. No estudo da for mação e da apropriação da renda seria importante discriminar,  ainda, a função da terra, que varia de estrutura para estrutura, ao  longo do tempo: começa por deixar de ter função, no início da  empresa açucareira, para assumí-la, a partir do momento em que
 a terra é objeto do trabalho, gerando o latifúndio; apresenta-se  desvaliosa, não entrando em linha de conta, na estrutura coletora  amazônica; mostra-se menos importante do que o gado, nas estru turas pastoris, até a fase em que a carne se torna mercadoria;  aparece como menos importante, também, na mineração ascensio nal, quando o importante é a concessão para procurar ouro, garim par sendo mais importante do que possuir, mas evoluindo, com a  decadência da mineração, para uma importância destacada, com  extensa apropriação. Seria ainda conveniente verificar, na forma ção e na apropriação da renda, que ela se realiza no comércio,  daí a função do comércio interno em sua acumulação. Mas é claro que existe, ao longo da época colonial, e por  força do regime aqui implantado, tíma concentração da renda,  no que diz respeito aos que vivem na colônia, isto é, deixando de  parte os que, apropriando-se da renda, não vivem nela: concen tração máxima na estrutura açucareira e mínima na estrutura mi-  neradora. Enquanto naquela, realmente, a quase totalidade per tence ao senhor de terras e de escravos — note-se: a quase tota lidade da parcela que fica no Brasil — nesta, ao contrário, opera-se  um constante rateio dos lucros, através do mecanismo das trocas.  Se a estrutura açucareira gera um tipo, o senhor de engenho, que  logo se destaca da massa dos habitantes, com singular preeminên cia, a estrutura mineradora destaca uns poucos personagens de  fortuna, na maior parte auferida na área do comércio: o ouro,  praticamente, não enriqueceu nenhum brasileiro. E foi, entretanto,  uma das molas propulsoras do desenvolvimento da acumulação no  Ocidente europeu e, conseqüentemente, do avanço capitalista. A segunda metade do século XVIII, particularmente em suas  três últimas décadas, assinala transformações profundas na econo mia mundial, a que a economia colonial está ligada, em relação  dialética: o capitalismo destrói os últimos obstáculos que se ante põem à sua plena expansão. A exploração colonial, uma das fon tes da acumulação, preparatória para a mudança qualitativa que  então se opera, acentua-se. O ouro brasileiro demonstra esse agra vamento das condições de exploração colonial: acumulado no exte rior, transformado em fundo de reserva ou em salários, torna-se  o impulsionador das transformações em processo. Mas a colônia  recebe, de sua parte, os efeitos daquelas transformações, e tanto  mais que representa já um mercado de proporções consideráveis
 para a época. Recebe-os, entretanto, numa fase de crise, quando  o açúcar, que jamais se recuperara inteiramente dos entraves da  concorrência, declina no fluxo exportador, as especiarias amazôni cas perdem mercados, o tráfico negreiro diminui seus fornecimen tos ao Brasil, e o ouro provoca a utilização de processos de repres são e de extorsão inéditos, em busca de montantes que jamais a  extração atingirá. A renda total anual da colônia descamba de um  montante avaliado em cinco milhões de libras para um montante  estimado em três milhões. Nessa fase de crise, que se prolonga,  constata-se, mais do que nas fases de prosperidade, como se opera  a concentração da renda no exterior. Realmente, o que define  como colonial uma economia, e isso é válido para qualquer época,  é o fluxo da renda para o exterior. Uma economia é colonial quan do a renda que proporciona se concentra no exterior. A sociedade colonial Pelas suas origens, a colonização do Brasil excluiu, de início,  a participação dos elementos melhores e mais ativo da sociedade  portuguesa, os camponeses livres, os artesãos, os pequenos comer ciantes. A estrutura açucareira não permitia tal participação, não  havia nela espaço para elementos de tais qualidades. Poucos são  aqueles que encontram, na empresa produtora de açúcar, perspec tiva de trabalho. Claro está que o reduzido número de trabalhado res livres, no engenho, pouco importa para a caracterização da  estrutura social; os que fazem as caixas para acondicionar o açú car, os que preparam utensílios de couro, os que lidam com a  maquinaria rudimentar das moendas são parcela que se dilui, esma gada entre a massa de escravos e a ínfima minoria de senhores.  Trata-se de uma sociedade definida por duas classes, separadas  por enorme distância social: a dos senhores, que são os proprie tários da terra e dos que nela trabalham, e são poucos, e a dos  escravos, que fornecem o trabalho e estão presos ao engenho. Uma  entidade produtora se constitui de um proprietário, cercado pela  parentela, dele dependente, e de numerosos escravos, que operam,  mantêm, produzem. Os elementos entre uma e outra dessas classes  carecem de significação, para definir a estrutura social. É uma  sociedade originada das condições sob as quais a colonização foi  montada e se desenvolveu, na área açucareira. Se se considera a
 legislação vigente, os escravos estão fora de qualquer classe, uma  vez que são qualificados como animais, objetos do senhor, e não  criaturas, pessoas, gente. Na sociedade articulada em torno da economia coletora ama zônica já os laços não são os mesmos. Os que se apropriam da  maioria da renda, no interior, são os senhores, não importando, no  caso, que sejam religiosos, agindo como representantes de institui ções ou organizações e não como pessoas isoladas, operando em  benefício próprio. Mas os que proporcionam o trabalho não po dem, a rigor, ser qualificados como escravos, ainda que certos tra ços os assemelhem aos escravos; eles estão muito mais próximos  da situação do servo feudal. De qualquer sorte, essa intrusão da  catequese religiosa, mesclada de atividade colonizadora e, portan to, produtora, e produtora colonial, nas organizações tribais, nas  comunidades primitivas indígenas, gera algo de hibrido, cuja qua lificação apresenta, sem dúvida, sentido forçado. Os indígenas que  trabalham, com a prática natural de sua experiência de organiza ção tribal e comunitária, para as ordens religiosas, cujas missões  são grandes unidades produtoras, podem ser muito mais situados  como servos do que como escravos. Outra situação particular é a dos trabalhadores das áreas pas toris que, no Nordeste como no Sul, apresentam, inicialmente,  forte contribuição indígena. Os senhores se destacam nitidamente,  na paisagem social, mas os trabalhadores, também aqui, não são  escravos. Algumas vezes são mesmo de origem africana e provêm  dos latifúndios mais próximos do litoral, mas ainda assim não  se comportam como escravos. Há, no pastoreio, distância social  muito menor entre senhores e trabalhadores do que aquela que,  nos engenhos, separa uns dos outros. Pela sua natureza, pela dis tância física, geográfica, entre o proprietário e o trabalhador, pela  liberdade de movimentos inerente à atividade pastoril, as zonas  de pecuária mostram, ao contrário das zonas agrícolas, uma so ciedade muito mais próxima da sociedade feudal do que da socie dade escravista. Podemos aceitar, pois, admitidas as particulari dades, como de senhores a classe proprietária e como de servos a  classe trabalhadora. Os elementos não incluídos em uma ou outra  carecem de expressão numérica e social. O mesmo acontece na  zona pastoril sulina, até que a carne se transforme em mercadoria  e, embora a formação social, no caso, seja muito diferente daquela
 que ocorre no sertão nordestino. Ainda aqui, aparecem senhores,  de um lado, proprietários do gado e, logo adiante, do gado e da  terra, e servos, que são os trabalhadores, os peões. A colonização  açorita, no litoral marítimo e no litoral lagunar, fundada parti cularmente na agricultura, com o aparecimento das charqueadas,  modificará essa estrutura simples da sociedade, respondendo, in clusive, pela contribuição, embora reduzida, do trabalho escravo  na área sulina. Nessa área, ao longo do tempo, e ainda na fase  colonial, a sociedade atravessa algumas transformações importan tes, que diferenciam camadas e as suas relações. Mas é incontestável que a sociedade mais complexa é aquela  que aparece e se desenvolve em torno da mineração. Nas Minas  Gerais, realmente, embora o trabalho tenha assentado, de início,  no escravo, seja o africano, seja o oriundo do Nordeste açucareiro,  o número de pessoas livres sempre foi maior do que o número de  escravos, e a mineração não excluiu o trabalhador livre, o portu guês emboaba destacadamente. Ao mesmo passo que, especializan do o minerador em sua atividade, pela alta lucratividade que ela  apresentava, outros devem, com o crescimento demográfico e a  ascensão do poder aquisitivo, desenvolver as atividades paralelas  e indispensáveis: a pequena agricultura de subsistência, o pequeno  comércio, ofícios e misteres artesanais e até mesmo artísticos, que  vão surgindo e se desenvolvendo. Sem falar naquelas atividades  ligadas a uma divisão do trabalho que se amplia consideravelmen te e a um aparelho de Estado que cresce desmedidamente e que  está presente, com a milícia, com a justiça, com o fisco, com a  administração, por toda parte. Principalmente naquelas ativida des ligadas ao mercado interno que surge e cresce: os que com pram e vendem, os que transportam — o tropeiro é um tipo que  a mineração cria e marca —, os que fiscalizam a compra e venda,  como no transporte, nos registros, nas feiras de gado, nos mercados.  Trata-se, no caso, de uma sociedade muito mais complexa, a pri meira sociedade complexa que aparece no Brasil, na fase colonial,  quando a divisão do trabalho se reflete numa estrutura de classes  já diferente daquela que se apresentava simetricamente repartida  entre senhores, de um lado, e escravos ou servos, de outro lado. Porque se a singularidade da mineração, no domínio da eco nomia, foi a gestação e o desenvolvimento do mercado interno —
 que antes não tinha existência prática na colônia —, a sua singu laridade social foi a criação e o desenvolvimento de uma camada  média, entre a dos senhores, classe bem distinta, e a dos escravos  e dos servos, classes nem sempre nitidamente diferenciadas, parti cularmente a dos servos. Essa camada média não cessa de crescer,  a partir da mineração, mesmo quando esta entra em declínio; ela  estará presente no desenvolvimento urbano que se acelera, a partir  dos fins do século XVIII e que, na primeira metade do século XIX,  tem, inclusive, papel político destacado. É, certamente, peculiaridade histórica brasileira o aparecimen to dessa camada média, que pode perfeitamente ser entendida como  pequena burguesia, antes do aparecimento da burguesia. Nela são  recrutados, ou nela ingressam, os letrados, os padres, os militares,  os artesãos, os pequenos comerciantes, alguns trabalhadores livres  proprietários de seus instrumentos de trabalho, aqueles que preen chem as funções públicas, ocupam lugares na administração, cujo  crescimento é dos traços mais típicos da atividade mineradora.  Se um pequeno burguês é, no fim de contas, um pequeno pro prietário, não há como duvidar: na zona mineradora o constante  rateio da parcela interna da renda — a parcela que fica na co lônia — permite a numerosos elementos a condição de pequenos  proprietários, de proprietários, quando menos, de instrumentos de  trabalho. Essa pequena burguesia, que estará presente nas cons pirações, ao fim do século, quando do declínio da mineração, é  numerosa, variada, importante sob todos os aspectos. A sociedade mineradora apresenta, linalmente, e isto consti tui, sem dúvida, nova singularidade, um fenômeno social interes sante, que convencionamos, pelo menos como hipótese de trabalho,  conhecer como “regressão feudal”. De que se trata, no caso? Da  passagem do escravismo — já de si diferenciado — , que assinalou  a fase ascensional da atividade mineradora, a um tipo feudal de  relações. Como, na história humana, a passagem do escravismo  ao feudalismo correspondeu ao desenvolvimento da riqueza, ao  avanço econômico, preferimos denominar regressão a esse proces so, um vez que, nele, a passagem a um regime social mais avançado  coincidia com uma fase de declínio econômico. De qualquer for ma, importante não é o título mas a realidade do processo histó rico. O fato é que o escravismo cedeu lugar — embora sem desa parecer de todo, porque o declínio correspondeu a uma expansão
 extensiva das lavouras de subsistência — a relações do tipo feudal,  mesmo quando os trabalhadores haviam sido antes escravos e eram  negros, isto é, conservaram o rótulo da cor. A vastíssima região mineradora — compreendendo parcelas  extensas dos atuais estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso,  para não falar na Bahia — passa, na segunda metade do século  XVIII, em cujo início a mineração atingiu o seu apogeu, por um  rápido processo de atrofia, em que se processa o que denomina mos como “regressão feudal”. É toda uma estrutura, e de dimen sões muito grandes, que desaba, em prazo reduzido, sem que os  habitantes aceitem e se conformem com tal desabamento, insistin do na atividade tradicional, como se tudo retornasse, tudo pudesse  se refazer, o esplendor ressurgisse. Essa inércia, como permanên cia no movimento, que contrasta, cada vez mais escandalosamente,  com a realidade de uma estagnação que se alastra e se aprofunda,  minando tudo, apresenta, por exemplo, a floração artística na mú sica, nas letras e até nas artes, de que ficam os monumentos ex traordinários que despertam permanente atenção, na mesma me dida em que o tempo os distancia de nós. Há que considerar, no fim de contas, que — muito ao contrá rio do que supõem alguns, que acusam de esquemática uma discri minação em classes no modelo clássico, oriundo do Ocidente euro peu, particularmente tudo o que diz respeito às relações feudais,  de presença aqui acusada — tal discriminação repousa na pesquisa  da realidade e em seu tratamento analítico segundo formulações  teóricas que correspondem à universalidade de categorias e con ceitos. Cabe aqui, com integral propriedade, o esclarecimento de  Charles Parain: Com estas reservas, não pode haver inconveniente em chamar  de “feudal”, como fizeram os homens do século XVIII, todo  o sistema em que o trabalhador dos campos, tendo deixado  de ser escravo, está submetido, entretanto, a todas as espécies  de obrigações extra-econômicas, limitando sua liberdade e sua  propriedade pessoais, de tal maneira que nem sua força de  trabalho, nem o produto de seu trabalho não se tornaram  ainda simples objetos de trocas livres, verdadeiras mercadorias.  Assim, o colono romano do século IV já anunciava o “feuda lismo” e o camponês húngaro ou siciliano de 1930 vive ainda  submetido a obrigações da mesma natureza. Este é o sentido  da generalização da palavra “feudal '.
 Claro está que, tratando-se da fase colonial, o que aqui se  escreve refere-se exclusivamente, e nem poderia deixar de ser assim,  à parte do Estado estabelecida na colônia, para gerí-la. Trata-se  de peças daquele Estado, apêndices dos órgãos centrais, sediados  na metrópole. Ora, do que antes se viu, quanto às origens da  colonização e quanto à economia e à sociedade coloniais, é fácil  concluir que a montagem das referidas peças teve duas fases: a  primeira, enquanto funcionou a delegação de poderes, com a trans ferência deles à ordem privada; a segunda, quando se processou  a retomada dos poderes e a sua concentração. A primeira fase  decorreu do início da colonização, com o estabelecimento do regi me das capitanias hereditárias, até o advento da mineração; a  segunda, do advento da mineração à chegada da corte de D. João  ao Brasil. A partir da presença da corte no Rio de Janeiro, real mente, começa uma terceira fase, que está praticamente fora dos  limites do presente trabalho: delineia-se a estrutura de Estado que,  ampliada e aprimorada, vigorará com a independência. O Estado  colonial existe, na verdade, entre o início da colonização e a trans ferência ao Brasil da corte, isto é, a passagem do Rio de Janeiro  a sede da monarquia, com a metrópole ocupada pelas forças na-  poleônicas. Na primeira fase, a ordem privada é absoluta. Nas cartas de  doação e nos forais, que constituem verdadeiro código tributário,  a delegação de poderes está fixada. Ainda com o estabelecimento  de um governo geral ela não cessa. Os donatários são poderosos,  em suas capitanias, e a existência de um governador-geral, na  Bahia, não lhes reduz os poderes. O que lhes reduz os poderes,  adiante, é menos o fato de capitanias, sucessivamente, passarem a  ser reais, do que a ascensão de senhores de engenho que, tendo  por si aparelho mais considerável do que o do donatário, exercem  poderes locais ou regionais incontestáveis e incontestados. Se o  donatário recebe, com a carta de doação e o foral, especificamen te, os poderes que a coroa lhe delega, e entra no exercício deles  tão logo chega à colônia, esse exercício permanece na teoria até  que ele se torne senhor de engenho — vale mais como tal do  que como donatário. Aqueles que não tiveram recursos suficien tes para atravessar o prazo de carência, na instalação de engenho,
 não detiveram os poderes que lhes haviam sido delegados. Enquan to donatários, carecem de recursos e de aparelhagem para o exer cício do poder público. Enquanto senhores de engenho, são dota dos de tais recursos e de aparelhagem. Nesse sentido, até certo  ponto, o donatário é mais um titular do que outra coisa. Trata-se, pois, de aparelho estatal mínimo, de linhas muito  simples, quase reduzido às funções tributárias e assim mesmo per mitindo e até estimulando, desde os primeiros dias, a evasão, a  fuga ao fisco, a sonegação sistemática. Como há matérias-primas  cuja exploração o Estado se reserva, os gêneros ditos realengos,  repete-se, no caso, a delegação, pois tal exploração se processa por  concessão a particulares, obrigados a pagar por ela. O regime de  concessão, aliás, é costumeiro na legislação medieval e repete-se  no Brasil por condições tradicionais e por condições impostas pela  realidade. Os contratadores, particularmente destacado aquele que  se dedica à exploração da madeira de lei, aparecem com frequên cia, no quadro dos primeiros anos, e reaparecerão no quadro da  mineração, particularmente para a exploração dos diamantes. Tra ta-se, em suma, na primeira fase da colonização, a do açúcar, de  um Estado ausente, cujos poderes são transferidos e que se preo cupa essencialmente com a arrecadação. Que reparte poderes, no  fim de contas, e que permite a dominação, que se torna tradicional  e que vai constituir o cerne do latifúndio, ao longo dos séculos,  da ordem privada. O Estado está ainda mais ausente e distante no caso das es truturas inéditas e fluidas, que se articulam frouxamente nas áreas  de economia coletora amazônica e de economia pastoril sulina (a  nordestina conserva um pouco os traços, embora atenuados, do  privatismo absoluto da área agrícola que rodeia). O vale amazô nico, que as missões religiosas ajudaram a devassar e a ocupar —  uma ocupação por pontos, ao longo dos rios —, apresenta linhas  particularíssimas, porque se trata, no essencial, de uma espécie de  Estado dentro do Estado, mas um Estado presente, atuante, embo ra débil face ao gigantismo geográfico, face a um Estado ausente  e distante. De um Estado de linhas rígidas, das ordens missioná rias, edificado sobre uma população indígena rala, dispersa, que  se agrupa por força da catequese e que coloca a serviço da estru tura produtora improvisada o seu conhecimento da floresta, a sua  prática da navegação fluvial.
 O que distingue mais fundamente o aparelho estatal articulado  na zona pastoril sulina é marcado pelas condições militares de  que se reveste. Como a área é indefinida, quanto ao apossamento  e quanto aos problemas da soberania, no sentido em que podem ser  compreendidos na época, com limites que avançam e recuam, a  luta pelo gado e a luta posterior pelas pastagens — como a prolon gada luta pela penetração no vasto mercado platino, estimulada  pela Inglterra — , a guerra é o fenômeno constante, a vida é de  acampamento e, por conseqüência, a presença militar se faz ne cessária: ao lado da tropa que representa a ordem pública e,  portanto, o Estado, existe, na verdade, quase sempre majoritária,  a tropa irregular, que representa a ordem privada. A distribuição  de terras, a regulação dos conflitos, a definição de poderes, tudo,  na zona pastoril sulina sofre da influência militar. Ora, ela traduz  a presença do Estado e faz confundir os interesses privados com  os interesses públicos, no sentido de que estes são defendidos pelo  Estado em teoria. Ao longo do tempo, por outro lado, os dois  poderes, o do Estado e o dos senhores, os estancieiros, entram em  luta, defrontam-se, hostilizam-se. Alguns ensaístas tentam explicar  tal contradição à base das diferenças entre o tipo de atividade  desenvolvida no litoral marítimo e no litoral lagunar e o tipo de  atividade desenvolvida na campanha: aquela fundada particular mente na colonização açorita, torna-se alicerce do Estado; esta,  ao contrário, representa a ordem privada, turbulenta, aguerrida,  violenta. Por contraste com essas formas de Estado, ou apêndice de  Estado, que se apresentaram na zona açucareira, na zona de eco nomia coletora, nas zonas pastoris, as formas com que o Estado  se apresenta na zona mineradora são marcadas pela dimensão mui to grande, pela presença atuante, pela interferência continuada,  pela redução da ordem privada a espaço mínimo. O aparelho esta tal da mineração, que começa a surgir na área mais distante,  Cuiabá, desde a visita do governador Rodrigo César de Meneses,  pondo fim às tropelias dos bandeirantes, cresce rapidamente nas  Minas Gerais, quase que a partir das primeiras descobertas, mais  fortemente desde a luta com os emboabas. Sua presença se desta ca, acentuadamente marcada pelo sentido tributário e pelo sentido  repressor. Assim, as peças fundamentais do aparelho de Estado  são, na zona mineradora, o fisco e as milícias, complementadas
 pelos órgãos de justiça. Note-se que o deslocamento da sede do go verno colonial para o Rio de Janeiro, mais próximo da zona mine-  radora e a ela ligado por caminhos logo freqüentados por viajantes  comuns, por tropeiros que realizam as trocas, por forças militares  e por comitivas oficiais, de autoridades que deixam funções ou  vão assumí-las, corresponde a uma ampliação do aparelho judiciá rio assim como a transferência ao Brasil de tribunal que, antes,  decidia de Lisboa os recursos aqui julgados. Trata-se de aproximar  o aparelho de Estado de uma zona onde ele deve estar presente,  onde a sua ausência acarretará irreparáveis perdas à metrópole. O estudo do aparelho de Estado colonial, na zona da mine ração, demandaria largo espaço, mas as relações de causa e efeito  entre o desenvolvimento da mineração e o crescimento e aproxi mação do aparelho de Estado são geralmente reconhecidas e estão  assinaladas em atos administrativos e políticos que até a história  vulgar registra: o deslocamento da sede do governo colonial, a  elevação do Brasil a vice-reino, o desdobramento dos órgãos judi ciários, o crescimento das forças militares, as regulares e as irre gulares, o desenvolvimento gigantesco das repartições burocráticas,  o rigor e a ampliação dos órgãos fiscais e tributários, a submissão  das próprias organizações religiosas. E não existe, para estabelecer  o contraste, poder privado significativo; ele começa a ressurgir com  a decadência da extração. As funções delegadas, como a dos con tratadores, ou algumas funções fiscais, acarretam violentos confli tos e fazem numerosas vítimas. A repressão, assim, que, antes,  voltava-se apenas contra as classes que forheciam o trabalho —  escravos, servos, trabalhadores livres em alguns casos — visam,  agora, também, e com grande vigor, a camada média, que constitui  o grosso da população na zona mineradora e nas áreas urbanas  que surgem por força do desenvolvimento demográfico e comer cial que a ascensão aurífera provoca. Episódios sucessivos, que a história vulgar acolheu, em cer tos casos — a conspiração de Filipe dos Santos, a conspiração de  Tiradentes, algumas rebeliões de escravos principalmente — assi nalam essa presença áspera e ativa do aparelho de Estado em que  a função repressiva assume preponderância, que se especializa nela.  E documentos como as Cartas chilenas  ou os Autcs da devassa da   inconfidência mineira  frisam o contraste entre esse aparelho de  Estado, que denominaríamos, hoje, de policial, e os anseios da
 população, definidos por elementos da camada média. O aparelho  de Estado que a mineração assim amplia, e nesse sentido, vai servir  logo depois à corte do príncipe D. João, quando ela se instala  no Rio de Janeiro, imprevistamente tornado sede do poder e do  Estado metropolitano. As ideologias coloniais Numa sociedade dividida em classes, e particularmente quan do a distância social entre elas é muito grande, ou proporcional mente a tal distância social, não há uma ideologia, mas ideologias:  a da classe dominante e a das classes dominadas. No Brasil colo nial, pois, há uma ideologia da classe dominante, dos senhores de  terras e de escravos ou de servos, e uma ideologia dos escravos e  servos e, mais adiante, uma ideologia da camada média ou peque na burguesia. A história vulgar, que não se ocupa de ideologia  especificamente, deixa transparecer que existe uma ideologia ape nas, que é a da classe dominante. As rebeliões de escravos só  recentemente começaram a ser estudadas — o material anterior  pode ser aceito apenas como preparatório — e as de servos têm  sido confundidas, em suas motivações e em sua significação. É   possível, resumidamente, afirmar, sem que haja condições amplas  para comprovar com documentos, que a ideologia dos escravos se  bifurcou entre o anseio, às vezes levado ao plano da luta pela  liberdade, e o anseio traduzido no que a sociologia vulgar batizou  de sincretismo religioso, na fuga espiritual, na evasão pelo pensa mento, na procura de um consolo. Balançando entre a submissão e a rebelião, as massas africa nas escravizadas, pelo menos de primeira e de segunda geração,  colocam como ideal mais avançado subtraírem-se à dominação, al cançar a liberdade de movimentos, o trabalho em seu proveito  e, para isso, seguindo um caminho que os indígenas apontaram,  desde o início da colonização: o da fuga para o interior e o do  agrupamento em zonas que as autoridades da classe dominante,  as do Estado e as da ordem privada, não as alcançassem. O maior  entrave à concretização dessa retirada está na dispersão que o  trabalho agrícola impõe e, evidentemente, a vigilância e a repres são agravam. As insatisfações de escravos e de servos assumem
 fisionomia religiosa, com freqüência, quando não derivam, e isso  é freqüente, para o terreno do revide individual, que gera o ban ditismo. As zonas em que imperam relações feudais, ao longo do  tempo, e desde muito cedo, apresentam sucessivos e típicos episó dios em que banditismo e fanatismo religioso se alinham, às vezes  com proporções muito graves. A sociologia vulgar não se tem preo cupado em distinguir o social subjacente nesses episódios; para  ela, desde logo, trata-se de “coletividades anormais”. Claro está  que a documentação a respeito de tais episódios, quando existe,  deve ser examinada com cuidado: ela não revela diretamente os  problemas e os traços ideológicos, mas os disfarça. A ideologia da classe dominante colonial é a da metrópole, na  fase açucareira: o senhor de engenho próspero é uma espécie de  mandatário, de procurador da classe dominante metropolitana e  os poderes que esta exerce, em Portugal, através do Estado, são  os poderes delegados aos seus representantes na colônia. Trata-se  de uma ideologia escravista e feudal, a que a legislação atende com  rigor: discriminatória, racista, resguardando-se em elementos os  mais diversos, que vão do modo de trajar ao preconceito de reli gião e de cor. A distância social, marcante em todos os casos,  mais profunda no caso do escravo africano, só é atenuada quando  a submissão sanciona os seus termos: a miscigenação — apresen tada, pitorescamente, pela sociologia vulgar, como dom congênito  do português, em relação ao negro, ou antes à negra — traduz a  submissão, em sua forma mais ostensiva. A ideologia da classe  dominante tem insistido e caprichado, aliás, em explicar que o  escravismo era doce e até bem aceito; era, no fim de contas, um  benefício para os escravos. Não é preciso nenhum esforço para  demonstrar que a escravidão era o contrário disso. A  valorização  da submissão, pois, corresponde, no plano ideológico, às necessi dades de dominação de classe. Mas a camada média, pelo menos desde o advento da minera ção, tem outra noção do mundo e da vida. Ela tem, desde logo,  muito mais necessidade de cultura, no sentido de conhecimento,  do que as classes inferiores, escravos e servos. Aparecendo em  conseqüência de mudanças sociais de grande profundidade, dife-  rencia-se, em todos os sentidos, no ideológico inclusive, daquelas  classes inferiores na escala social. Seus elementos, na maioria, te mem descair para tais classes e anseiam por um teor de vida
 próprio da classe dominante. Têm, por isso, muitos dos precon ceitos e prejuízos desta, destacadamente os de cor e de religião,  apesar da miscigenação estar presente com forte contribuição numé rica na formação e ampliação dessa pequena burguesia precoce,  ávida de ascensão, mas com possibilidades a esse respeito, extrema mente reduzidas. Nela residem, entretanto, e talvez por isso mesmo, pela estrei teza de suas oportunidades de ascensão social, os fermentos mais  poderosos de mudança, os inconformismos mais sérios e alastrados,  as rebeldias mais graves. Dela partem os movimentos que sacodem  as capitanias, depois províncias. Nela se recrutam os elementos  que falem pela classe dominante colonial, nas câmaras locais; os  que procuram o ensino, o diploma, a atividade intelectual que  funciona como redenção, pois abre perspectivas a um tipo de tra balho que não guarda os estigmas do trabalho físico. Essa camada  média ou pequena burguesia, que começa a aparecer nos apagados  núcleos urbanos, que se escalonam, via de regra, ao longo da ex tensa costa marítima, cresce extraordinariamente com a mineração  e a divisão do trabalho que esta proporciona. Atividades antes  inexistentes, ou inexpressivas, começam a encontrar espaço, desde  então. São, no maior número dos casos, atividades urbanas, faci litadas pela comunicação direta, pela vizinhança dos órgãos da  administração. Quando a mineração decadente põe a nu, com notas de escân dalo, a contradição política que levará o regime colonial ao fim,  e que disfarçará ou atenuará, até certo ponto, na época, a con tradição de classe, essa camada média vai fornecer a galeria dos  nossos santos, dos nossos mártires, dos nossos heróis. E, nesse  processo complexo, até aqui também pouco estudado, particular mente no que diz respeito ao problema da alienação cultural, acon tece o fenômeno de defasagem ideológica, no plano político, tão  ostensivo nos movimentos de rebeldia que surgem nos fins do  século XVIII e que se prolongarão pelo século XIX afora, antes  e depois da autonomia. Em que consiste aquela defasagem? Con siste no esforço de apropriação, da parte dos elementos cultos da  camada média — em parte, também, da classe dominante, às vés peras da autonomia e depois dela —, de uma ideologia gerada no  exterior, sob condições objetivas e subjetivas que o Brasil não apre
 sentava, nem na fase colonial, nem na fase posterior à autonomia,  no século XIX. O esforço pela apropriação de uma cultura política gerada em  condições tão diversas — e até mesmo de uma cultura artística,  particularmente a literária — representa um dos problemas mais  profundos que o nosso desenvolvimento histórico alinhou. Seu diag nóstico tem sido feito, porque as anomalias que proporcionou são  fáceis de observar; o que não tem sido feito é a análise capaz de  tornar compreensível aquilo que tem traços aparentemente contra ditórios. Que teria levado os rebelados, os conspiradores, a adotarem  em suas formulações políticas, os princípios básicos, claros, osten sivos, gerados e popularizados pela revolução burguesa no Ociden te europeu e nos Estados Unidos nos fins do século XVIII? As  bibliotecas dos chamados inconfidentes — mineiros, baianos, per nambucanos — mostram como o pensamento político dos próceres,  recrutados na camada média em sua quase totalidade, se abeberou  das mais puras fontes da ideologia burguesa européia e norte-  americana. Ora, existe evidente defasagem entre as formulações ideoló gicas geradas em condições objetivas e em condições subjetivas  bem conhecidas na Europa e nos Estados Unidos dos fins do sécu lo XVIII, e a realidade brasileira dessa época, quando o regime  colonial chega ao fim, mas em condições objetivas e em condições  subjetivas muito diversas. Mencionar o fenômeno como transplan tação cultural é apenas colocá-lo, não é explicá-lo. Percorra-se o  rol programático das rebeliões e conspirações do tempo, no Brasil:  ele alinha aqueles pontos que correspondiam, na Europa e nos  Estados Unidos, à revolução burguesa em avanço. Como reapare ceram aqui, onde a burguesia praticamente não existe? Daí a de fasagem: a realidade de uma época e a ideologia de outra época —  épocas históricas, bem entendido. Conclusões Os problemas que a história coloca se tornam muito mais  complexos quando fenômenos idênticos ocorrem em fases diferen tes. Como o raciocínio é quase sempre analógico e as classificações
 são buscadas em arsenal conceituai forjado antes, em outros mode los, os títulos tornam-se, desde logo, passíveis de dúvida e motivam  largas discussões. Às vezes acontece que o nível das discussões não  ultrapassa o problema semântico. Nem sempre, entretanto. Cabe  à própria discussão distinguir entre o formal e o essencial, pela  aplicação sistemática do método histórico e do método lógico. Nada  pode ser compreendido — e, portanto, definido — fora do pro cesso histórico, uma vez que tudo é historicamente condicionado.  Convém verificar, a breves traços, o que acontece, nesse sentido,  com o problema da colonização. A primeira confusão a repudiar é aquela que associa o con ceito à categoria histórica de colonato, forma de transição entre o  fim do escravismo clássico e o início do feudalismo no Ocidente  europeu. Nesse processo de transição, o escravo começa a libertar-  se, isto é, a passar à condição de servo. No caso brasileiro, isso  não tem nenhuma adequação e lugar. A segunda confusão, e a  mais grave, porque as semelhanças formais, na realidade, induzem  ao erro, é aquela que nasce do emprego, num caso concreto, de  categorias e conceitos gerados em outro caso concreto, conceitos  e categorias de determinado tipo de colonização a outro tipo de  colonização. De forma muito geral, partindo do Ocidente europeu, a colo nização teve dois momentos históricos, e muito diversos: o movi mento gerado pela criação do mercado mundial, nos fins do sécu lo XV e início do século XVI, com o mercantilismo e predomínio  do capital comercial, forma pré-capitalista do capital, de que sur giu a América para o mundo conhecido e quando Espanha e Por tugal, de início, e Holanda e Inglaterra, depois, apoderam-se de  vastas extensões no novo continente, ocupando-as, povoando-as e  explorando-as; e o movimento oriundo da expansão capitalista, que  culminaria com o imperialismo, nos fins do século XIX, de que  surgiram as áreas coloniais, e a colonização, da África e da Ásia.  O fim da colonização, no primeiro caso, ocorreu entre as últimas  décadas do século XVIII — independência das treze colônias da  América do Norte — e primeiras décadas do século XIX — inde pendência das colônias espanholas e portuguesas da América. O  fim da colonização, no segundo caso, bem próximo de nós, ocorreu  a partir de 1945, do fim da 2.a  Guerra Mundial, com a der rocada do chamado sistema colonial. Essa diferença, marcada no
 tempo, perde significação essencial quando limitada a isso. Porque  a diferença essencial está ligada à distância histórica. Nos dois casos, entretanto, há uma decorrência inevitável: o  passado colonial marca as nações que o sofreram. Há sempre con-  seqüências, mazelas, seqüelas ancoradas naquele passado. A prin cipal, sem a menor dúvida — presente, inclusive, nas manifesta ções, mais disfarçadas ou ostensivas do neocolonialismo —, está  ligada àquela definição: uma economia é colonial quando a renda   que proporciona se concentra no exterior.  Em qualquer caso, no  tempo e no espaço, pois, isso caracteriza uma dependência colo nial. O grande problema dos países de passado colonial, os do  primeiro como os do segundo tipo, consiste em criar, pois, uma  economia nacional. E, naturalmente, uma política nacional, uma  cultura nacional. A criação de uma política nacional está, por  isso mesmo, ligada intimamente à existência e funcionamento de  uma estrutura democrática: a característica antinacional está, pre cisamente, na inexistência de estrutura democrática, na vigência  de formas ditatoriais de governo. A criação de uma cultura nacio nal e sua preservação está, também, vinculada intimamente ao pro blema democrático da liberdade de pensamento e de expressão,  de comunicação em suma. São as forças econômicas antinacionais que geram as formas  políticas e as formas culturais antinacionais: para manter aquelas,  é absolutamente necessário suprimir as liberdades que condicionam  a democracia e a cultura. Não importa, evidentemente, apenas o  passado colonial para que tais mazelas e seqüelas se manifestem:  ter passado colonial não constitui condenação irremissível. O que  constitui condenação, embora superável, é persistirem condições  de subordinação colonial, e elas persistem quando condições pre sentes, e não passadas, estão ainda em vigência. Quaisquer sejam  os apregoados índices de desenvolvimento — a colonização também  os apresentou aqui, com o açúcar e com o ouro — a realidade  prova que há muito de colonial, no Brasil, na fase contemporânea.  O problema das gerações que começam a ingressar na maioridade,  pelas suas sucessivas camadas, consiste, pois, em eliminar as con-  seqüências do passado colonial, para que o Brasil se torne nacional.
 M MERCADO DE TRABALHO Nos fins do século XIX, o Brasil conheceu mudanças signifi cativas em suas instituições. Tais mudanças importavam no reco nhecimento, no nível dos fatos, de contradições que existiam mas  vinham sendo detidas em seu desenvolvimento. A contradição sem  o entendimento da qual não se pode verificar com clareza as linhas  do processo histórico brasileiro daquela época, estava entre o con teúdo, o país, e a forma, o regime. O conteúdo estabelecido pela  realidade de uma transformação da estrutura econômica obsoleta,  embora consagrada nas leis e nas instituições, e a resistência que  encontravam as manifestações já ostensivas de novas forças sociais  em avanço. Era a contradição entre a forma institucional e o con teúdo real. Em outras palavras, entre o desenvolvimento capitalista  que se acelerava e o quadro que a sociedade apresentava. O regime escravista do império, herdado da longa fase colo nial, tornara-se incompatível com o desenvolvimento e o alastra mento das relações capitalistas. A monarquia foi, aqui, uma heran ça do tipo colonial, trazia a marca da fase anterior em tudo e por  tudo. Não apenas pela continuidade do regime monárquico, me tropolitano ou brasileiro, mas principalmente pela continuidade do  que o regime colonial tinha de mais nítido. O império foi, aqui,  a continuação da colônia, quanto ao fluxo da renda para o exterior,  até pouco mais ou menos a metade do século XIX, passando a  iniciar a acumulação capitalista, de forma dependente, a partir de  então. Esse processo de mudança é que vai abalar a estrutura insti tucional, impondo as alterações que terão episódio final na liqui dação da monarquia. A república é a forma que assume, no Brasil, o processo de  avanço das relações capitalistas; pois, quando esse avança, vai  eliminando a herança colonial que o retardava. Para isso ocorrem  as mudanças e reformas, entre as quais se destaca a criação do  mercado de trabalho, com a ampliação do espaço de trabalho  assalariado. O império foi, essencialmente, a conjugação do lati fúndio com o escravismo. Eram os seus traços importantes, her-
 dados da fase colonial, derivados das condições daquilo que ficou  conhecido como colonização e que durou mais de três séculos,  deixando profundas raízes, portanto. Foram os senhores de terras e de escravos que empresaram a  autonomia, na época em que toda a América Latina era abalada  pelo longo e tormentoso processo de separação entre as metrópoles  ibéricas e suas posses neste continente. Visto de fora, em escala inter nacional, o processo foi único e esteve condicionado pela ascensão  britânica nos mares e no comércio mundial, com particularidades  em cada caso, evidentemente. Foi por força de certas particulari dades que o Brasil chegou à autonomia de forma bem diferente  daquela como se processou na América de origem espanhola. Entre  outras diferenças, coube-nos a de realizar a independência sob ins tituições que não estavam em nossas tradições. A tradição brasi leira foi sempre republicana. Fundamentos sociais A sociedade brasileira, depois de três séculos de domínio  colonial, apresentava, em linhas gerais, a mesma estrutura dos pri meiros decênios, salvo as alterações introduzidas pelo advento da  mineração. A classe dominante era constituída pelos senhores. A  constituição outorgada de 1824 denominava-os “altos e poderosos  senhores”. Eles eram mesmo altos e poderosos senhores de terras,  de escravos e de servos. A medida da riqueza estava no número  de escravos e na extensão da terra. A mineração estabeleceu con dições novas, pois permitiu o aparecimento precoce de uma ca mada média, isto é, constituída por homens livres mas não-pro prietários de terras e de escravos; quando muito, proprietários,  particularmente nas áreas urbanas, de pequenas extensões, como  de número reduzido de escravos, geralmente “escravos de ganho”. A ampliação da área do Estado, antes e depois da autonomia,  reforçou a classe média com o funcionalismo, sob todas as suas  formas — particularmente militares, padres e letrados —, como  permitiu novo avanço na divisão do trabalho. Aparecem, agora,  aqueles que seguem as profissões ditas liberais, porque peculiares  aos homens livres. Pela constituição de 1824, os escravos não
 eram considerados brasileiros, nem cidadãos evidentemente; adian te, passaram a ser aceitos como brasileiros mas não como cida dãos. Nos amplos latifúndios, dispersava-se a classe dos servos,  aqueles que viviam sob condições feudais, condições, depois, mui to discutidas e até negadas. Na vitrine do regime gerado com a autonomia, aquele que  derivou das condições em que ela ocorreu, estava, pois, uma corte,  com um imperador à frente e os titulares a seu redor, como vassa los. Essa nobreza de títulos denunciava, de forma transparente, a  sua artificialidade: seus elementos traziam títulos que lembravam,  na maioria dos casos, as propriedades que detinham ou até os  acidentes geográficos conhecidos, em cuja região viviam. Era, pois,  uma classe plantada, profundamente ligada à propriedade, e a  propriedade era o latifúndio escravista e feudal. Trabalho escravo  ou servil e apropriação de_ terra extensa foram os traços da infra-  estrutura da classe dominante brasileira da época da passagem do  regime colonial à autonomia. Traços que persistiram, com o esta belecimento da monarquia. Por volta de 1872, quando começa a tomar vulto, novamen te — esquecidos que estavam os seus profundos antecedentes his tóricos —, o movimento pela mudança do regime, a população  brasileira se compunha de 94,5% de pessoas livres e 5,5% de  escravos; em números absolutos, mais ou menos 8.500.000 para  aqueles e 1.500.000 para estes. Era uma população que se agrupa va em uns poucos núcleos, majoritariamente nas proximidades ou  no litoral, com áreas internas que a mineração e a atividade pasto ril haviam gerado, configurando aquela fisionomia de arquipélago  já referida por muitos. As distâncias geravam ou mantinham dife renças por vezes profundas, reforçando a inércia social e a resis tência à mudança que foi sempre um traço importante na socieda de brasileira, tanto mais importante quanto mais antigos os tempos. A sociedade imperial estava retratada nas instituições políti cas. Começava a diferença de classes a aparecer, em sua verda deira grandeza, nas disposições eleitorais. Meio século depois da  autonomia, quando era já manifesta a decadência do regime, a  Lei Saraiva reduzia o eleitorado, recrutado à base da renda, a so mente 145.296 cidadãos, menos de 1,5% do total da população.  Foi quando José Bonifácio, o Moço, pronunciou um discurso, na  Câmara, que merecia ser conhecido ainda hoje, peça política da
 mais alta significação, um dos raros momentos democráticos do  parlamento imperial. Ele mostrava a ignomínia de serem excluídos do direito de  votar o que denominava de população ativa, isto é, os que traba lhavam. Era o horror ao trabalho, sempre presente na sociedade  brasileira ainda hoje, e que assinala não um sentido de aristocra cia, como pretendem alguns ingênuos, mas o sentido de posse  monopolista do poder por uma classe, excluindo a discussão dos  problemas por parte dos que criavam a riqueza. O horror ao  trabalho, enraizado no escravismo colonial, era um traço típico:  trabalhar era uma indignidade, desonrava os homens ditos livres. As eleições no império não passavam de farsa, e como tal  foram denunciadas muitas vezes pelos próprios elementos da clas se dominante, nas contradições que os separavam e antagonizavam  por vezes. Eram indiretas, conforme preceituava o artigo 90 da  constituição outorgada. Nele se dispunha, efetivamente, que as no meações para a Assembléia Geral “serão feitas por eleições indire tas, elegendo a massa dos cidadãos ativos em assembléias paro quiais os eleitores de províncias e estes os representantes da nação  e províncias”. Havia uma espécie de seleção do eleitorado, como  se este fosse numeroso demais. Com a Lei Saraiva, era eliminada  a camada inferior desse eleitorado, isto é, aqueles mais próximos  do povo. No artigo 92, a constituição dispunha que estavam excluídos  do direito de votar, mesmo nas eleições primárias ou paroquiais,  aqueles que não tivessem de renda a quantia de cem mil réis por  bens de raiz, indústria e comércio ou emprego. Nem os analfabe tos nem as praças de pré eram excluídos expressamente. Não era  preciso: a discriminação estava estabelecida à base da renda. Quan do, em 1855, se discutira a chamada Lei dos Círculos, o Senado,  que era vitalício, quase impugnou, lastimando que “deputados e  senadores não sairão mais dentre as pessoas notáveis”, mas den tre as “notabilidades de aldeia, os empregados subalternos”. Era  a reação da elite contra a “chusma”. A reforma eleitoral, com a Lei Saraiva, teve tempestuosa tra mitação. Vitoriosa na Câmara, foi acintosamente rejeitada pelo  Senado. O dispositivo que concedia o direito de voto aos não-  católicos já de si surpreendente, foi recusado. Nabuco de Araújo,  que por isso pagou alto preço político, faria do quadro um retrato
 amargo: "A eleição será de poucos, tão concentrada como está a  propriedade [ . .  . ] O remédio para isso estaria, senhores, no imposto  territorial que dividisse a grande propriedade inútil ou não-culti-  vada e concorresse para regularizar as posses dos colonos ou ren deiros, e os direitos respectivos.” Estava repetindo a recomendação  de José Bonifácio, o Patriarca, que já ligava a abolição do escra vismo à questão da terra. Problema que, até os nossos dias, con tinua a preocupar o legislador e desperta controvérsias anacrônicas. Daí a estreiteza do campo eleitoral, reduzido, já no fim do  regime, a poucas dezenas de milhares de eleitores, a 0,25% da  população do país. E as escolhas, que hoje nos parecem curiosas,  e que eram entretanto naturais, dadas as condições da época,  como a de um senador, Afonso Lamounier, por Minas Gerais,  com apenas 54 votos, em 1888, já na agonia do regime, eram  comuns. Taunay, em seu precioso livro O Senado do Império,   menciona dados que hoje nos parecem espantosos: na primeira  escolha de senadores, em 1826, para só falar nos que foram no meados — porque havia disso também, não bastava ser eleito — ,  o Pará elegeu J. V. Nabuco de Araújo com 94 votos; o Rio Grande  do Norte elegeu Afonso deAibuquerque Maranhão com apenas  21 votos; Alagoas elegeu Felisberto Caldeira Brant Pontes com 67  votos; o Espírito Santo elegeu Francisco dos Santos Pinto com  31 votos; Santa Catarina elegeu Lourenço Rodrigues de Andrade  com 12 votos; Mato Grosso elegeu Caetano Pinto de Miranda  Montenegro com 10 votos. É possível dizer que isso foi na primeira eleição e no início  da vida independente. Nada disso. Nos meados do século, as coi sas continuavam como dantes: o Amazonas, em 1852, levou ao  Senado Herculano Ferreira Pena com 45 votos; Espírito Santo,  em 1850, a José Martins da Cruz Jobim com 64 votos; Mato  Grosso, em 1854, a José Antonio de Miranda, com 65 votos. Nos  fins do regime, era ainda possível eleger um senador, como acon teceu no Espírito Santo, em 1879, com Cristiano Benedito Otoni,  com 158 votos. O senador que alcançou maior votação, em todo  o período monárquico, foi Evaristo Ferreira da Veiga, em 1887,  em Minas Gerais, um dos maiores colégios eleitorais do tempo,  com 10.572 votos, em detrimento de Manoel José Soares, que alcan çou 10.900 votos. Verifica-se que nem sempre o mais votado era o  escolhido pela nomeação do imperador. Logo após a aprovação
 da lei das eleições diretas e em um dos maiores colégios eleitorais  do país, a Bahia, Rui Barbosa foi reconduzido à Câmara com pouco  mais de 400 votos. Esses dados denunciam a estreiteza do campo  em que se desenvolvia a atividade política, e a ausência de povo  nele. Com o desenvolvimento das relações capitalistas e, depois,  com a revolução burguesa aqui, surgiu a controvérsia: o trabalho  escravo foi extinto por força da resistência dos escravos ou por  força do gesto da princesa? Existe já acervo considerável de obras  importantes em torno do tema. Começaram a ser melhor estuda dos os episódios que pontilharam a longa e terrível resistência  oposta pelos escravos ao jugo que os oprimia. A historiografia  brasileira começou a aceitar a tese de que a escravidão não foi  mansa, como quiseram fazer crer ensaístas do tipo de Gilberto  Freyre. Muito ao contrário, ela encontrou tenaz resistência, perma nente, por vezes desvairada, outras vezes organizada da parte dos  escravos. Menos estudadas têm sido as formas como a classe do minante tratou o problema do trabalho e conduziu o processo da  abolição do escravismo. Ela o fez, entretanto, com rigoroso método,  eficácia nas ações e deliberado propósito na defesa de seus inte resses. Derrocada do escravismo A independência brasileira, como é sabido, embora não cons te dos compêndios, foi realizada sob os auspícios da Inglaterra,  como o reconhecimento dela pelos demais governos, depois. Por tugal estava ligado à Inglaterra por estreitos laços de dependência  econômica e financeira e essa dependência nos foi transmitida. A   classe dominante brasileira da época, que presidiu a independên cia, realizando-a na medida de seus interesses, tinha com a In glaterra contradição a respeito do tráfico negreiro, não podia  abrir mão da força de trabalho escravo e resistiu a todas as pres sões britânicas nesse sentido, mesmo quando tais pressões geraram  o bill Aberdeen,  ato do governo de Londres que permitia aos  barcos de guerra de sua bandeira o apresamento dos navios ne greiros, com confisco de sua carga humana. Em plena expansão capitalista e em vias de estender à África  a sua dominação, a Inglaterra fez todos os esforços para a sus-
 pensão do tráfico, de que fora pioneira e monopolizadora. Apesar  de nos termos submetido aos tratados econômicos de 1810 e 1824,  extremamente onerosos para nós, não cedemos quanto ao trabalho  escravo e aos fornecimentos africanos. Em 1844, Alves Branco  começou a rever a política de submissão e estabeleceu as tarifas  que tomaram o seu nome e reviam a franquia anterior às mercado rias inglesas. A tarifa era muito mais fiscal do que protecionista  e apontava num sentido que foi mantido aqui através dos tempos:  o de tributar particularmente a importação, cujos ônus são dis tribuídos a toda a sociedade, deixando livre, ou subsidiando, como  nos nossos dias, a exportação, cujos lucros são privativos dos pos suidores. Em 1850, por outro lado, o governo brasileiro extinguia o  tráfico negreiro. A classe dominante aqui, ao tempo do “essencial mente agrícola”, dispunha ainda de duas formas de recrutamento  de força de trabalho escravo: o mercado interno, com a venda de  escravos de umas províncias a outras, e a reprodução biológica.  Viveria, daí por diante, dessas duas fontes. Mas começaria a enca rar com seriedade e pertinácia um problema que insistiria, por  isso, a permanecer no palco das discussões e das reformas. Na  segunda metade do século XIX, realmente, ocorrem profundas alte rações na estrutura brasileira de produção. Começaram, pratica mente, com a lei de terras, de 1850, dispondo que a terra só po deria ser adquirida por compra, isto é, englobava a terra no mer cado. Era um dos traços iniciais das relações capitalistas em lento  crescimento então, relações incompatíveis com o trabalho escravo. Os saldos na balança de comércio externo, que passaram a ser  constantes na época e daí por diante, provenientes do volume e  do valor do café exportado, permitiram a acumulação e o  seu crescimento, ao mesmo passo .  que o mercado interno,  outra causa desse crescimento, iniciava uma etapa de expansão  que iria concorrer para ela, mesmo sofrendo os efeitos das crises  cíclicas do capitalismo em escala mundial, que abalavam periodi camente a economia brasileira, retardando o seu desenvolvimento.  Por outro lado, é o momento em que se iniciam e ampliam os  investimentos estrangeiros aqui, particularmente os britânicos, e  tomam vulto os empréstimos externos. O Brasil se apresentava como  área promissora de aplicação de capitais.
 É dessa época a introdução aqui das ferrovias, como do te légrafo e dos serviços públicos e transportes, em que os capitais  ingleses foram investidos e auferiram grandes lucros, sempre asse gurados por contratos leoninos. Na verdade, o Brasil se moderniza va e essa modernização correspondia ao avanço das relações capi talistas. Ora, tais relações exigiam a força de trabalho livre, isto  é, o trabalho assalariado. As soluções de emergência, então aven tadas, inclusive a imigração chinesa, mostraram-se inviáveis. Nas  áreas cafeeiras novas, na expansão territorial da época, estimula das pelos altos lucros, começavam a repontar pressões pela imigra ção européia, com o financiamento estabelecido pelo governo pro vincial paulista. Esse financiamento, que o governo central passou  depois a manter, tornava muito mais barato o trabalho livre do  que o trabalho do escravo. Por diversos motivos — e não os genéricos, como uma ciência  manca pretende estabelecer — o rendimento do trabalho escravo,  além de tudo, era mais baixo do que o do trabalho livre. Coinci dentemente, surgira na Itália uma crise que pressionava no sentido  da emigração de parcela ponderável de trabalhadores expulsos do  mercado nacional. Assim, quando o século XIX se aproximava  do fim, o regime de trabalho no Brasil, nas áreas em desenvolvi mento, passaria, vagarosamente, a assentar no trabalho livre do  imigrante, isto é, no trabalho assalariado. Como, paralelamente, o  mercado interno se desenvolvia, destacadamente nas áreas de tra balho assalariado, surgiam indústrias de bens de consumo e a divi são do trabalho se ampliou. Era uma nova sociedade que surgia e,  nela, o proletariado dava os primeiros passos. Até os anos 20 do  século XX, a maioria dos operários paulistas era de estrangeiros.  Isto mostra como não ocorreu aqui a passagem do trabalho escra vo ao trabalho livre, mas a substituição daquele por este. Essas transformações exerceram enorme influência no proces-  ao de liquidação do trabalho escravo .De um lado, crescia a área  de expansão do trabalho livre; de outro lado, crescia a resistência  dos escravos ao trabalho forçado. Essa resistência vinha evoluindo  das fugas em massa para os quilombos, de fase histórica anterior,  para as fugas em massa para o trabalho livre, cujas portas, entre tanto, estavam cerradas para os oriundos das senzalas. Cresciam,  portanto, as pressões para a solução do problema do trabalho, e  a classe dominante estava atenta no encaminhamento dela.
 Acabar com o trabalho escravo e substituí-lo pelo trabalho  assalariado passou a estar no centro das preocupações do legisla dor e do político, — a questão do trabalho e do seu mercado passa  a ser a questão central do desenvolvimento aqui das relações ca pitalistas que vinham sendo aceleradas. Mas as soluções, como  era natural e derivava do desigual desenvolvimento interno, não  eram igualmente satisfatórias. Nas áreas em que crescia e se expan dia territorialmente a lavoura do café e em que começava também  a crescer a produção industrial, as pressões no sentido do trabalho  livre eram mais fortes e elas dispunham de representação política  mais poderosa. O problema do elemento servil, como então se dizia, esteve,  naturalmente, nas cogitações do Conselho de Estado desde os anos  cinquenta. A eclosão da guerra com o Paraguai desviou as aten ções e o problema ficou arquivado temporariamente. Com o fim  da guerra, que corresponde à fundação do Partido Republicano,  isto é, a contestação ao próprio regime político, ele volta ao palco,  e volta com as pressões crescentes para a sua solução, e com a  urgência de que ela se revestia. A  guerra terminou em 1870. Em 1871, Paranhos apresentava  o programa que seria a sua bandeira de luta no legislativo impe rial. Dele constava, como ponto principal, a questão do elemento  servil. As discussões foram tempestuosas porque as resistências se  apresentaram e procuravam criar um clima de pânico: a extinção do  trabalho escravo era apresentada como ameaçadora para a segu rança da classe dominante e até para a unidade do país. Paranhos,  nos debates, procurou deixar claro que os seus oponentes care ciam de razão. Destacou, com veemência, que o projeto daquilo  que passou a ser conhecido depois, como Lei do Ventre Livre,  visava, precipuamente, “zelar pelos verdadeiros e legítimos direi tos dos proprietários agrários”. Perdigão Malheiro, na oposição,  afirmava que, convertido em lei, o projeto provocaria a guerra  civil no país. A violência dos debates foi tal que Paranhos foi  mesmo acusado de comunista pelos opositores, o que prova que os  anticomunistas modernos, aqui, não são sequer originais. O projeto não se destinava, na verdade, a assegurar a liber dade dos escravos, mas a autoridade dos senhores. Era um passo  importante para, diante da ameaça do quadro social, de um lado.  e as necessidades da classe dominante, de outro, estabelecer
 a estratégia política para' operar a temida transição ao trabalho li vre, isto é, ao trabalho assalariado, criando o mercado de trabalho  de que a expansão econômica dependia e de que necessitava, que  a estrutura da produção vigente exigia. Mas o projeto Paranhos  continha um traço inovador: inaugurava a intervenção do Estado  no mercado de trabalho, estabelecendo condições para o seu fun cionamento. A lei, na verdade, reafirmava a autoridade dos senhores. Não  libertava os escravos, apenas estabelecia condições para a sua li berdade. Os nascituros eram declarados livres, mas ficavam sob  os cuidados de seus senhores até os oito anos, quando estes ou  receberiam a indenização de seiscentos mil réis por cabeça que  libertassem ou permaneceriam com a posse deles até que comple tassem 21 anos. Isso importava em assegurar ao proprietário que  ele poderia manter a propriedade dos nascituros até 1892 — ora,  quatro anos antes disso, a escravidão estava extinta, embora não  fosse tal evento previsto, menos ainda o prazo de sua ocorrência.  A manobra foi sempre, da parte da classe dominante, no sentido  de protelar o fim do escravismo. Ela balançava, durante todo o  tempo, entre a necessidade de liquidar o escravismo e o receio de  liquidá-lo. O registro de escravos, então criado, para ser estabelecido,  pela própria lei, em 1872, foi burlado de todas as maneiras. Re latórios oficiais, adiante, mostravam que a iniciativa privada li bertara seis vezes mais escravos do que o Estado e isso provava  que a libertação dos escravos, ná época, interessava a muitos se nhores, que pretendiam livrar-se deles. Depoimento de Rui Barbosa,  em 1884, mostrava que os recursos do Fundo de Emancipação  haviam libertado menos de 20.000 escravos; ainda que tais recur sos fossem elevados cinco vezes só libertariam 120.000 escravos  até o fim do século. Em 1879, o Estado voltava a intervir no mercado de trabalho  e baixava a lei que regulava as condições de seu funcionamento.  Sem o conhecimento dessa lei, a mais importante, no tempo, para  o problema que estava na preocupação de todos, é impossível com preender como as classes dominantes conduziam o processo e  como preservavam os seus interesses no andamento desse, como  sempre cuidaram de que a legislação não ferisse aqueles interesses,  antes os assegurasse. A legislação, ao longo do tempo, e até à
 chamada abolição, protege os senhores e não os escravos. O ato  de 1879 estabelecia condições com profundos vínculos com toda  a legislação ligada ao trabalho, particularmente a chamada Lei  do Ventre Livre, baixada oito anos antes; essa lei afetava os escra vos, os libertos e os trabalhadores livres. Em setembro de 1885, surgiria nova medida, destinada a pros seguir na estratégia para a criação do mercado de trabalho, a lei  dita de liberdade dos sexagenários. Ela estabelecia novas normas  para o registro de escravos, agora exigindo a idade deles, aumen tava o Fundo de Emancipação e discriminava as condições para a  libertação dos velhos escravos, na verdade aqueles que já estavam  imprestáveis para o trabalho. É uma lei muito clara em seus dis positivos: os escravos sexagenários permaneceriam na posse de  seus senhores ainda por cinco anos se estes, os senhores, optassem  pelo trabalho livre em suas propriedades. A lei obrigava os liber tos a residirem por cinco anos no local onde trabalhavam. Eram  libertados imediatamente os escravos de mais de 65 anos de idade.  Os maiores de 60 anos eram obrigados a trabalhar por mais três  anos onde estavam. Tanto a lei de locação de serviços de 1879,  como a do Ventre Livre, como a dos Sexagenários estabeleceram  as condições para a extinção do trabalho escravo no Brasil. Elas  regularam a forma como se estabeleceu o processo; a abolição não  entrou em detalhes, por isso mesmo, — tudo estava regulado. O que fica evidente do conhecimento dessa legislação é a  preocupação fundamental da classe dominante na criação do mer cado de trabalho. Não há nela nenhuma preocupação com os escra vos; o legislador estava preocupado com os senhores e não com  os escravos. Libertar sexagenários, realmente, e proclamar tal dis posição como benemerência é supor que as pessoas perderam o  hábito de raciocinar. Mas foram os pósteros, e particularmente  uma historiografia vesga, que fizeram da legislação da época um  tema edificante, mistificando o problema. A derrocada do escra vismo correspondeu a uma necessidade histórica, correspondeu ao  avanço das relações capitalistas. Uma nova sociedade Na história há que considerar de forma muito atenta, etapa  por etapa, o que se conhece como área política, isto é. o espaço
 ocupado por aqueles que participam das lutas políticas. Essa par ticipação pode ser consciente ou não. Ora, no início do século XIX,  historicamente, a realidade colocava no palco político dois proble mas fundamentais, o da autonomia e o da liberdade. Salvo oca siões excepcionais, as classes dominadas, escravos e servos, não  participavam da área política e, portanto, das lutas que nela se  travavam. A participação começava com os elementos urbanos li gados à camada mercantil e à pequena burguesia. As decisões ema navam da classe dominante. Foram as condições sociais do país que permitiram o controle  do processo político à classe dominante de senhores. Ela estabe leceu os limites que continha o processo da autonomia. Excluiu  deles o problema da liberdade. Assim foi articulada a estrutura  do império, imposta para atender aos interesses da classe domi nante e para deter qualquer tendência à mudança. A monarquia  retratou as condições em que aquela estrutura, com raízes colo niais, foi estabelecida. O tormentoso período em que se processou  a autonomia, iniciado, na realidade, com as conjuras dos fins do  século XVIII e início do século XIX, fez aflorar as contradições  sociais. Quando o século XIX entrou em sua segunda metade, o  processo se estratificou, no golpe da Maioridade, estabelecendo as  grandes linhas que a sociedade brasileira apresentou, — uma so ciedade em que a resistência às mudanças passaria a ser traço  característico. A autonomia foi aqui, pois, uma empresa da classe dominante,  sob os auspícios da Inglaterra, com a qual, entretanto, o Brasil  teria duas contradições: a das tarifas e a do tráfico negreiro. A   primeira foi resolvida a partir da reforma de Alves Branco; a se gunda foi resolvida com a lei que extinguiu o tráfico, em 1850.  As contradições, a partir daí, desenvolvem-se no nível dos em préstimos e dos investimentos — mas tais contradições englobam  apenas o povo brasileiro pois a classe dominante se associa ao  pré-imperialismo inglês. A política britânica visava particularmen te o mercado. Aberto o nosso desde os acordos de 1810 e 1824,  restava a penetração, procurada desde o início do século XIX, no  mercado platino. A classe dominante no Brasil herda, pois, da  face colonial, a chamada “questão platina”, tornando-nos instru mento das pressões britânicas no Prata.
 A segunda metade do século XIX não assinala apenas a con solidação das instituições brasileiras, com a monarquia bragantina,  assinala, também, uma série de mudanças econômicas e financei ras. Surgem as ferrovias de penetração, sempre para atender ao  transporte de matérias-primas do interior ao litoral, destinadas à  exportação, ferrovias em que os capitais ingleses encontram largo  campo de aplicação. Surgem os serviços públicos, com o desen volvimento urbano, dos transportes ao gás, à luz, ao telégrafo. A época assinala mudanças particularmente em dois sentido:  o aumento do volume e valor da produção, particularmente a  cafeeira, e o desenvolvimento do mercado interno, dois sentidos  que confluem na resultante de crescimento do ritmo da acumula ção e das relações capitalistas. O Brasil passa a apresentar duas  faces, a de um país em processo de modernização, com as referidas  mudanças, e a de um país arcaico, com relações de produção in compatíveis com o desenvolvimento. As agitações ligadas a esse  ritmo novo é que desembocam nas reformas institucionais do fim  do século. Quando o crescimento da produção gera, de forma crescente,  montantes de riqueza que se transformam em capital, gera também  reformas significativas no mercado de trabalho, gerando o trabalho  assalariado. São processos conjugados, mas o primeiro reponta pri meiro e acompanha depois adequadamente o segundo. A acelera ção do ritmo nesse impulso para a mudança apresenta para a  sociedade exigências novas de mudança. Daí as chamadas questões  do fim do século, desenvolvidas num clima de agitação que anun cia contrastes e alterações. A legislação retrata esse clima e vai  definindo as mudanças. Elas afetam agora o problema da liberdade,  deixado de lado na fase da autonomia. O Brasil dos fins do século é completamente diferente do  Brasil do início do século XIX, este ainda tão impregnado de tudo  aquilo que definira o regime colonial. As mudanças, em sua acele ração, geram uma crise, pontilhada pelas questões que aparecem  no palco político. A crise representa a contradição entre o conteú do e a forma, o conteúdo que as mudanças definem, e a forma  definida pela estrutura institucional. Daí mudanças como a da  derrocada do escravismo e a do advento da república — primeiro  passo para o desenvolvimento das relações capitalistas no Brasil.
 A REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL Certo dia, participando de seminário em uma de nossas uni versidades, deparei com a afirmação, feita por um dos professores  presentes, titular de cadeira de história, de que não havia o que  discutir quanto à fase de passagem da sociedade brasileira à etapa  capitalista. Para ele — e afirmava isto de maneira categórica —  o capitalismo, no Brasil, datava da etapa colonial, existira sempre.  A minha surpresa foi idêntica à que sentira, há muitos anos, em  exame de português, quando um aluno afirmou que a palavra  aqui era verbo e instado a conjugá-lo no presente do indicativo,  não titubeou, recitando: eu aqui, tu ali, ele acolá, nós na frente,  vós atrás, eles no meio. Pois a heresia, para não dizer a cincada,  era do mesmo quilate. Se o Brasil era capitalista desde o século XVI — afirmação  colocada como indiscutível — , era espantoso que tivéssemos estu dado a revolução francesa, episódio e processo do século XVIII,  ou a revolução inglesa, cuja primeira etapa datava do século XVII.  Nós, no Brasil, éramos capitalistas antes dos franceses e dos ingle ses. Conseqüentemente, a nossa burguesia era classe dominante na  fase colonial e antecedera também ela à burguesia francesa e à  burguesia inglesa. O fato ficaria no nível do anedotário se a tese  não fosse esposada e defendida também por notória e eminente  figura do ensino nacional, que timbrava em afirmá-la. Não era,  pois, produto da imaginação do jovem professor, que apenas a  repetira, pondo nela a ênfase de sua presunção no saber. Não.  Ela estava alicerçada, e solidamente, numa concepção histórica que  era imposta como indiscutível e se arrastava das cátedras mal  providas ao espírito de milhares de jovens, que a citavam porque  provinda daqueles indicados para guiá-los. Nada tenho com tal ensi no. É direito de cada um, no nível do ensino da história em nosso  país, adotar e divulgar conceitos e categorias a seu gosto. O que  impugno é que tais conceitos e categorias façam parte do marxis mo, e particularmente a tese principal: o capitalismo brasileiro  data da fase colonial. O que me parece errôneo é que tal absurdi-
 dade passe por marxismo. E isso se deve, em grande parte, ao fato  de que um dos que a adotaram foi um marxista. Isto me lembrou  o esclarecimento curioso de certo mestre europeu: nem todos os  que se dizem marxistas realmente o são. Marx escreveu que nem todo negro é escravo e nem todo di nheiro é capital, em termos históricos. Nem todo montante em  dinheiro, pois, representa capital. Para funcionar como capital, na turalmente, depende da existência de determinadas condições his tóricas. Como o montante de dinheiro pode ocorrer em qualquer  etapa histórica, pois o dinheiro é muito antigo, sob a forma de  moeda, a partir de determinado momento tornou-se fácil confun dir um montante de dinheiro com o capital como a sociedade o  conheceu e definiu em determinada etapa do desenvolvimento his tórico. Desde que a troca exigiu, para sua facilidade, o uso da moe da, a riqueza em dinheiro fez o seu aparecimento. Se a moeda —  o dinheiro, como é comum conhecê-lo — é muito antiga, o mesmo  não se dá com o capital, para cujo aparecimento uma das premis sas necessárias — mas não a única, longe disso —, é a existência  de determinado montante de dinheiro. O capital é, na verdade,  uma categoria histórica. Aparece quando determinadas condições  existem e geram essa categoria. Tais condições ocorrem em épocas  diferentes para cada país ou nação. Não ocorrem ao mesmo tempo  em todas elas. E não ocorrem porque o desenvolvimento histórico  é desigual: é a lei do desenvolvimento desigual. Algumas áreas  conhecem a etapa capitalista antes de outras: a Inglaterra antes  da França, a França muito antes do Brasil, por exemplo. Quando o capital apareceu, o dinheiro existia há séculos. A  forma mais ostensiva da riqueza foi, por longo tempo, a posse de  muito dinheiro. Na realidade, os verdadeiramente ricos nem sem pre possuíam muito dinheiro — possuíam grandes propriedades.  Nas etapas históricas anteriores ao capital, grandes propriedades  de terras ou bens imóveis. A riqueza notória, entretanto, foi aquela  que se constituiu em dinheiro. Isso resultou, em grande parte, do  desenvolvimento comercial. Realizando trocas comerciais, determi nadas pessoas acumularam montantes crescentes de riqueza em  dinheiro. A esses montantes se deu o nome de capital comercial.  Outros, usando o montante de dinheiro que possuíam, realizavam  empréstimos e cobravam juros por tais empréstimos. Ficaram co nhecidos pelo exercício dessa função: tornaram-se detentores do
 capital usurário. Capital comercial e capital usurário foram formas  anteriores ao aparecimento do capital como a sociedade moderna  veio a conhecê-lo. Foram formas pré-capitalistas do capital. Isto  é, formas em que o montante de dinheiro, mesmo grande, não  funcionava como capital, não era capital. Como o comércio e a  usura se desenvolveram em muitas áreas e de velhos tempos, essas  formas pré-capitalistas do capital foram largamente conhecidas mui to antes do aparecimento do capitalismo. Foram conhecidas, por  exemplo, na sociedade feudal, de que surgiu, em algumas áreas, a  sociedade capitalista. Capital comercial e capital usurário corroe ram a sociedade feudal, desagregaram os seus laços, destruíram-  na, em determinadas áreas. Em outras, conviveram com ela. Passemos do geral ao particular: no século XVI, quando o  Brasil foi “descoberto”, Portugal era um dos países em que se  desenvolvera largamente o capital comercial e, em menor escala,  o capital usurário. A sociedade portuguesa era feudal, mas uma  das características do seu feudalismo consistia justamente na enor me presença e função nela do capital comercial. As grandes nave gações, as navegações oceânicas, foram empresas do capital co mercial. Ao mesmo tempo, em outros países europeus, existiram  e se expandiram essas formas pré-capitalistas do capital, destaca-  damente na Holanda. O mercantilismo português, na vanguarda  destacada, ao tempo, possibilitou o grande avanço das ciências  ligadas à náutica, particularmente a orientação em alto mar, a  construção naval e a cartografia. No amplo quadro da expansão  marítima, a “descoberta” do Brasil foi inserida, a princípio, como  episódio menor. Adiante, a necessidade daquela expansão criou  as condições para o que se convencionou conhecer como “coloni zação”. A empresa da “descoberta” do Brasil foi tarefa do capital  comercial português. A empresa da “colonização” do Brasil foi  também tarefa daquele capital e do capital holandês. O Brasil  colonial, conseqüentemente, conheceu apenas o capital comercial.  Foi obra do capital comercial. Escravismo Como sabemos de história vulgar, a empresa da “coloniza ção” — empresa do capital comercial — só foi possível com a
 implantação do escravismo africano. Os elementos necessários a  essa empresa tiveram todos origem externa: os recursos materiais,  comportando o que denominei “investimento inicial”, provieram  do capital comercial português e holandês; o trabalho foi forneci do por escravos africanos; e a própria planta, a cana, foi originá ria da índia, transferida depois às ilhas lusas do Atlântico. A  terra — fator de produção indispensável — era extensa e não  tinha antecedentes de posse, uma vez que o indígena não conhecia  a propriedade. Era disponível e não entrava nos custos da produ ção. Os elementos humanos trazidos para a montagem da empresa  e para fazê-la funcionar traziam culturas diferentes entre si e em  relação ao habitante primitivo. No nível social, o índio vivia em  comunidade primitiva, o luso provinha de relações feudais e o  africano era originário de comunidades tribais, na sua maior par te. O feudalismo luso estava em processo de enfraquecimento,  justamente pelo desenvolvimento do capital comercial — era épo ca do mercantilismo. A  fusão, com emprego em larga escala da coerção física, des ses elementos tão diferentes, para a montagem de uma empresa  de grande porte, utilizando técnicas apreciáveis, possibilitadas pelo  estágio da manufatura européia, assinala nítidos traços fundamen tais na sociedade colonial: o feudalismo português da legislação  e dos costumes da classe dominante dos senhores e do mínimo de  aparelho de Estado então instalado coexistia com o escravismo e  com a comunidade tribal indígena. A legislação era uma coisa,  a realidade era outra coisa. Essa coexistência de valores hetero gêneos está no berço de uma sociedade cuja maioria era de trans plantados. Assim, desde os primeiros dias aparecem e se desen volvem, influenciando-se mutuamente, às vezes violentamente, for mas diversas, gerando categorias mistas ao longo do tempo. A  história, aqui, foi fundamentalmente o processo contraditório des sa difícil coexistência. A comunidade natural indígena teve influência relativamente  pequena nesse processo. O escravismo e o feudalismo, entretanto,  tiveram nele papel destacado. No que diz respeito a este havia,  desde logo, traço diferenciador e peculiar: a terra não tinha ante cedentes de propriedade. Outro fator originário estava na vincula-  ção ao mercado mundial. O escravo e o açúcar logo se tornariam  as principais mercadorias nesse processo de vinculação ao mer-
 cado. A produção colonial seria montada sob a premissa funda mental de se destinar a esse mercado: estava voltada para o exte rior. Ora, o mercado mundial, na época, começava a gerar as  condições de passagem de um modo de produção, o feudal, para  outro, o capitalista. A exploração colonial constituiria, desde  logo — como a atividade do tráfico negreiro —, um dos fatores  mais poderosos para esse processo histórico de transição. O modo  de produção não assumiria, de início, caráter autônomo. Integra va-se, necessariamente, na formação do capitalismo em escala mun dial, realizando-se, preliminarmente, no Ocidente europeu. Mais do  que isso: passava a ser uma das formas daquilo que ficou conheci do como acumulação primitiva. A colônia era colocada, desde os seus primeiros dias, na rígida  dependência ao mercado externo: num mercado em que se gerava  o capitalismo mundial, produzia mercadorias — no início, o açú car — à base de relações de produção pré-capitalistas. Não era  capitalista, mas constituía fonte de acumulação para o capitalismo  ascendente. E isso só era possível, justamente, por força do escra vismo aqui instalado desde o início da colonização, superada a  fase proto-histórica do escambo do pau-brasil. Eram, pois, três  níveis históricos que se ajustavam para isso: o feudalismo europeu  em que se gerava o capitalismo e o escravismo brasileiro que se  fundia com o feudalismo trazido da sociedade metropolitana. A   contemporaneidade desses três regimes, que concorriam para estru turar a maior empresa comercial do tempo, apresenta-se, desde  logo, como uma das mais complexas singularidades que a história  conheceu. E marca a complexidade, que se prolonga no tempo, de  uma sociedade em que os limites entre os três regimes — feudalis mo, escravismo, capitalismo — ficam imprecisos e conservam essa  imprecisão através dos séculos. Apesar de serem feudais os traços da legislação que a metró pole impõe à colónia, é o escravismo que constitui o alicerce e  o núcleo do sistema produtor aqui instalado desde o século XVI. A  colonização não criou o escravismo africano. Este a antecedeu,  aparecendo na área metropolitana, justamente no Sul, de onde o  árabe fora expulso por último, e nas ilhas do Atlântico, onde a  produção açucareira lusa deu os primeiros passos. Ele possibilitou,  entretanto, a colonização. Sem o escravismo, ela não teria alcança do a posição que conheceu desde o século XVI: o escravismo africa
 no criou a colonização, tornando-a possível. Como a manufatura,  no tempo, o escravismo colonial surgiu e se desenvolveu por exi gência do mercado mundial que se expandia. Extemporâneo no  processo histórico — se é que há extemporaneidade na história —  o escravismo colonial apresentava diferenças importantes em rela ção ao escravismo clássico, que surgira da desagregação da comu nidade primitiva. Como já foi observado, o escravismo clássico  foi regime generalizado; o escravismo colonial ficou limitado no  espaço, em determinadas áreas coloniais. No escravismo clássico  havia necessariamente, naturalmente, correspondência entre a infra  e a superestrutura; isso não aconteceu no escravismo colonial. A  mais significativa das diferenças, entretanto, porque aparece à sim ples observação, é que o escravismo colonial marcava o escravo  com o rótulo da cor, confundindo cor da pele e raça — no conceito  usual — como relação social. Claro está, no entanto, que não pode padecer a mínima dúvi da, na análise histórica, que o regime colonial conheceu uma forma  de escravismo, foi estabelecido sobre uma forma de escravismo  distinta da originária e clássica, por se apresentar distante no  tempo, em outra etapa histórica, portanto. Admitir o escravismo  colonial como forma autônoma, como um novo modo de produção,  é evidente equívoco, estranha confusão entre o geral e o particular,  o geral como conceito de modo de produção e o particular como  a forma que apresentou em áreas diversas do mundo e em mo mentos diferentes do desenvolvimento histórico. O escravismo clás sico surgiu, naturalmente, da decomposição do regime comunitário  primitivo, quando o processo histórico apresentou a possibilidade  da exploração do trabalho e surgiu a sociedade de classes, enquan to o escravismo colonial surgiu como conseqüência de um proces so histórico europeu, como produto colateral da formação do ca pitalismo. A comunidade natural indígena, por contraste, jamais  evoluiu para o escravismo. A escravização do índio, que foi se cundária na colônia, não resultou, quando ocorreu, de tal evolução,  mas foi imposta pela violência. O escravismo, pois, tornou possível a colonização, na forma  como esta se apresentou, diversa da forma das colônias de povoa mento, e, mais do que isso, e conseqüentemente, provou elevada  eficiência. Essa eficiência resultou numa acumulação de que não  apenas estava excluído o trabalhador que criava a riqueza, como
 a maioria absoluta da populaçao colonial. Enquanto a acumulação  se operava no exterior, a colônia acumulava uma população pau pérrima, despojada de meios de produção, mas também de liber dade. Os produtos do trabalho escravo só se realizavam, como  mercadorias, no exterior. O crescimento da produção não teve in fluência alguma no mercado interno, praticamente inexpressivo, e  nem contribuiu para que ele surgisse ou se desenvolvesse. A im possibilidade de reproduzir na colônia o modo de produção feudal  dominante na metrópole, como desde cedo ficou demonstrado, criou  as condições para implantação do escravismo africano, já conheci do nela e de que tinha experiência. Paralelamente, ficava clara a  impossibilidade da transformação dos indígenas em camponeses de pendentes. A necessidade de força de trabalho em grande quantidade,  desde os dias iniciais, tem como solução natural o escravismo. Os  lusos se anteciparam a outros povos na utilização do trabalho dos  africanos em regime de escravidão e, assim, montaram a empresa  produtora colonial com o seu uso intensivo. Esse uso intensivo  importava em tirar do escravo massa muito grande de trabalho  suplementar, além da apropriação de grande parte do trabalho  indispensável. No fim do século XVI, estava montada a empresa  de produção em que o lucro era proporcionado com a exploração  do trabalho escravo e excedia quarenta vezes os custos de aqui sição e manutenção do escravo. O escravismo colonial brasileiro  apresentava, assim, alta lucratividade. Mas esta não se acumulava  no Brasil. Para alguns, esse lucro, no fim do século XVI, excedia  cem por cento ao ano. Era uma taxa brutal. Mesmo considerando  o investimento inicial,1  que se reproduzia em cada caso particular,  dispendido com o equipamento do engenho, as construções, os 1 1  “Tratava-se, para o donatário, de investimento inicialmente oneroso, o que  obrigou alguns a admitir sócios, fretar navios, recrutar elementos os mais  diversos; deslocar materiais, enfrentar um período de carência, enquanto  não houvesse produção, satisfazer, além do mais. as exigências da coroa,  embora reduzidas. [...]  Primeiro, é uma empresa difícil, onerosa, não  sedutora: obriga a mobilização de recursos que, em determinados casos,  são frutos da exploração oriental; essa mobilização força a venda de pro priedades, a associação a terceiros, o recurso a empréstimos" (Nélson  Werneck Sodré: Formação histórica do Brasil  (12.a  edição, Rio de lanciro,  1987), p. 67).
 animais,, os poucos trabalhadores especializados e, evidentemente,  os escravos.2 A simples duração do escravismo brasileiro mostra a impor tância que teve na nossa formação econômica e social. Os seus três  séculos — mais do que isso, a rigor — apresentaram, contudo,  alterações por vezes significativas no regime. A principal foi, sem  dúvida, a diferença entre as formas do escravismo na área agríco la inicial, a nordestina, e aquelas que apresentou na área minera-  dora ou, em menor escala, na área do charque sulino, ou ainda na  área do café. Não é aqui o lugar para analisar essas diferentes  formas de escravismo. Elas conservam, e isso é que tem importân cia, o escravismo em seus traços essenciais. Para sua caracterização,  as diferenças importavam pouco, porque elas assinalavam sempre  os escravos como fornecedores de toda a força de trabalho necessá ria à produção. No engenho, particularmente nas plantações, como  nas minas, como na estância sulina, como nas fazendas mineiras e  paulistas, como nos algodoais maranhenses, o escravismo, em es sência, era o mesmo. Em todos constituiu a base da produção:  sem o escravismo, essas formas da produção, de criação da riqueza  colonial e posterior não teriam existido ou não passariam de episó dios menores. No sentido histórico, finalmente, o escravismo foi  o elemento fundamental no processo do fluxo da renda para o  exterior, que foi o traço mais claro da exploração colonial. O longo predomínio do escravismo, por outro lado, com o seu  corolário, a falta de capitais, embora enquanto capitais comerciais,  devido à evasão da renda para o exterior, respondeu pela degrada ção física e moral da população trabalhadora, face à sua selvagem  exploração, como pela estagnação nas técnicas de produção, com  a utilização apenas de instrumentos de trabalho os mais primitivos.  A afirmação, que se tornou comum pela repetição, de alguns en saístas, de que a escravidão brasileira foi mansa, não encontra  confirmação na realidade. Tão-somente por ser escravidão, como  condição natural e intrínseca, ela era selvagem. Essa análise, que - O escravo foi, provavelmente, a parcela mais cara do investimento inicial.  No latifúndio escravista açucareiro, o status  não estava ligado à extensão  da terra possuída, mesmo em várias propriedades, mas ao número de  escravos possuídos.
 revela um traço de classe, distancia-se da realidade, e cresce em  falsidade quando nega o prolongado e ingente esforço do escravo  pela liberdade: a história brasileira, em seu teor vulgar, esquece  as lutas dos escravos. No fundo, esse tipo de análise — tido como  importante ainda no ensino universitário — pertence à antiga ten dência para conservar formas arcaicas de organização econômica,  social, política e ideológica, assegurando duração longa aos con ceitos que o escravismo gerou e o conservadorismo mantém. O  escravismo, no fim de contas, deixou profundos sulcos na cultura  brasileira e não apenas na estrutura material do país. A resistên cia do próprio escravismo à mudança denuncia esse traço: o Brasil  permaneceu escravista até os fins do século XIX, quando o capi talismo, em escala mundial, atingia a sua última etapa, com o  imperialismo. A lei do desenvolvimento desigual apresenta nessa  anomalia um de seus mais gritantes exemplos. Feudalismo Mas a formação histórica brasileira não mostra apenas a des tacada importância do escravismo em nossa sociedade, nos trezen tos e tantos anos de sua atribulada existência. Essa importância  obscurece mesmo, deixa na sombra, tudo o mais. Porque a coloni zação, enquanto ocupação do território, foi ampla e c escravismo  não esteve presente em todas as áreas coloniais. Na verdade, o  escravismo dos dois primeiros séculos, tendo sido ensaiado no la gamar santista, expandiu-se, desde cedo, no Nordeste e no recônca vo baiano, passando, depois, aos altiplanos do centro-sul, com a  mineração, e daí às terras fluminenses, ao Vale do Paraíba, ganhan do o interior paulista, além de repontar nas áreas dos algodoais  maranhenses e na zona tributária da Lagoa dos Patos em que o  charque teve relevo. Nas outras áreas, sempre secundárias ao tempo  do escravismo, ele não apareceu ou não predominou — não deu  o sentido. Mas a expansão territorial prosseguiu e criou áreas de  povoamento e de atividade econômica, embora muito inferior, ao  longo de todo o tempo histórico. Nos meados do século XVIII,  quando o Brasil definiu as linhas mestras de sua configuração  geográfica, estabelecidas no Tratado de Madrid, a colônia apresen tava uma constelação de áreas dispersas, cada uma com a sua
 fisionomia, e já mostrava aquele aspecto de arquipélago que o  capitalismo herdou aqui e que foi um dos seus entraves. A historiografia brasileira se despreocupou da caracterização  dessas áreas; simplesmente arrolou o aparecimento e a evolução  delas pela seriação dos fatos de que foram cenários. Não eram  áreas escravistas, evidentemente. Mas, não sendo escravistas, o que  eram, o que as definia e caracterizava? A historiografia, aqui, não  podendo apagar a existência do escravismo, não podendo negá-lo,  serve-se de artifícios singulares. O último deles, nem sempre ori ginal, tem sido o de qualificá-lo, para diferenciá-lo do escravismo  antigo, dito clássico, tão conhecido da história grega e da história  romana, com a qualificação preferida de “escravismo colonial ,  erigido em modo de produção diferente do modo de produção  escravista. Não cabe aqui analisar essa forma de confundir aquilo  que existe no nível conceituai — o escravismo — com aquilo que  foi apenas um de seus casos concretos e particulares. No que se refere às áreas secundárias de ocupação do terri tório, onde surgiram formas não-escravistas, a historiografia, en tretanto, se omite. Omite-se de analisar essas formas e de classifi cá-las segundo o modo de produção que apresentaram e as formas  de organização social que geraram. Mas, como escreveu um estu dioso, “a colonização do país começou pela tentativa de reconsti tuir no seu território o modo de produção feudal e as respectivas  formas de organização política e social”.3  O mesmo autor confirma,  adiante: “De um modo geral, o sistema de colonização conservava  muitos traços feudais. Em particular, a terra era cedida no quadro  da instituição portuguesa das sesmarias, característica do período  do feudalismo avançado.” 4  É uma colocação explícita da existên cia do feudalismo no processo histórico brasileiro. Questão con- 3 A empresa colonial brasileira só foi possível pelo investimento nela de  força de trabalho escravizada e de grande vulto. Sem o escravismo africano,  ela teria sido inviável. Como escreveu um ensaísta contemporâneo: “Por tanto, a colonização do país começou pela tentativa de reconstituir no seu  território o modo de produção feudal e as respectivas formas de organi zação política e social. [... ] De um modo geral, o sistema de colonização  conservava muitos traços feudais” (A. Karaev, Brasil. Passado e presente   do “capitalismo periférico"  (Moscou, 1987), p. 25). 4 A. Karaev, op. cit.,  p. 25.
 troversa, desde que um historiador de prestígio, pioneiro da histo riografia marxista no Brasil, combateu desabridamente essa tese.5 Não é possível negar que as relações de produção nas áreas  secundárias coloniais eram feudais. A área escravista, que repre sentava o núcleo da colonização, onde a população era mais nume rosa e a produção mais importante, foi, na verdade, cercada, no  interior, por vastas áreas de pecuária extensiva, quando a pecuária  se separou da agricultura.6  A conquista do chamado sertão — con quista acompanhada de ocupação, não apenas limitada ao interna mento temporário, como no ciclo de caça ao índio, no bandeiris-  mo — realizou-se à base da pecuária. Foi a expansão do criatório,  distanciando-se da área agrícola e dos engenhos próximos do li toral ou escalonados ao longo dos pequenos rios nordestinos, que  possibilitou o devassamento do interior. Nessas imensas áreas ser tanejas, por força da herança cultural mas também por força de 5  “E é isso que fizeram e ainda fazem certos pseudomarxistas, sem ao menos  se darem conta disso, quando prefixam para todo e qualquer país uma  etapa feudal, que existiu na Europa precedendo o capitalismo, e de que  esse capitalismo resultou ou a que sucedeu. [... ] Presumiu-se, desde logo  e sem maior indagação que, no Brasil, o capitalismo foi precedido de uma  fase feudal, e que os restos dessa fase ainda se encontravam presentes na  época atual [... ] O fato, contudo, é que o Brasil não apresenta nada  que legitimamente se possa conceituar como ‘restos feudais’. Não fosse  por outro motivo, pelo menos porque, para haver ‘restos’, haveria por  força de preexistir a eles um sistema ‘feudal’  de que esses restos seriam  as sobras remanescentes. Ora, um tal sistema feudal, semifeudal, ou mes mo simplesmente aparentado ao feudalismo em sua acepção própria, nunca  existiu entre nós, e por mais que se esquadrinhe a história brasileira, nela  não é encontrado” (Caio Prado Júnior, A revolução brasileira  (São Paulo,  1966), pp. 43 e 51). 0 “A expansão pastoril, naquela zona, atravessou três fases: a da vizinhança,  a da coexistência e a da separação entre as atividades agrícola e pastoril  [... ] Nessa primeira fase: o gado e a lavoura avizinham-se na mesma  propriedade, o curral é o quintal do engenho ; o senhor de engenho é  proprietário do gado e da lavoura [. . . ] A segunda fase começa quando  se generaliza a separação entre o engenho e o curral [... ] A referida fase  assinala as seguintes alterações: separa-se a propriedade agrícola da pro priedade pastoril e esta se interna, bordejando, entretanto, as áreas agrí colas; conquanto separadas as atividades, o proprietário do gado é ainda  o senhor de engenho [. .  . ] A terceira fase surge com o rompimento dos  últimos laços de coexistência entre as duas atividades, a agrícola e a pas toril. A separação entre elas é completa. A pecuária ganha o sertão”  (Nélson Werneck Sodré, op. cit.,  pp. 122-123).
 condições endógenas, as relações feudais se estabeleceram, desde  os tempos em que o escravismo, instalado com a colonização, sur giu e se desenvolveu. Assim, cercando a área escravista, cuja pro dução, voltada para o exterior, não podia fugir da dependência  oceânica, surgiu a área feudal, particularmente pecuária. Essas duas  áreas tinham contato nas orlas em que se avizinhavam. A área  feudal vivia muito próxima da economia natural e o pouco de que  necessitava e tudo o que fornecia era obtido ou transferido à área  escravista. Tal situação se definiu desde os primeiros tempos, pra ticamente, e se prolongou e até se atenuou com a decadência açu careira. Com o escravismo da mineração, a área da pecuária feudal  intensificou relações, desde que tal área apareceu. No episódio do  algodão maranhense, escravismo e feudalismo novamente convive ram e se avizinharam. Mas não foi apenas nessas áreas — Nordeste, recôncavo baia no, Maranhão, altiplano minerador — que essa vizinhança de mo dos de produção diverso surgiu. Elas apenas caracterizaram a vi zinhança. Em outras áreas, as relações feudais, nelas dominantes  ou absolutas, desconheceram essa vizinhança aparentemente estra nha. Isso aconteceu na área vicentina, do lagamar santista ao  altiplano piratiningano, daí se estendendo às áreas sulinas, na me dida em que foram incorporadas ao domínio luso ou devassadas e  ocupadas pelos bandeirantes e seus descendentes. A pecuária ne las desenvolvida, e que tanto serviria à expansão bandeirante e à  mineração, definiu cedo os seus traços feudais. Eles apareceram,  também, em áreas vizinhas das mineradoras, em Goiás e em Mato  Grosso. Como apareceram na área amazônica em que, praticamen te, o escravismo jamais foi dominante. Em extensão territorial, as  áreas feudais somadas eram muito maiores do que as áreas escra vistas, mas a sua população era muito menor. De modo geral,  viviam isoladas, misturando relações feudais e economia natural. As relações feudais,- por vezes, misturavam-se às escravistas.  O proprietário do engenho era, por vezes, proprietário de grandes  extensões do interior, obtidas à base do direito feudal, e detentor,  por todos os motivos, de privilégios senhoriais. De cunho feudal era,  ainda, a estrutura política e administrativa que a metrópole insta lara.7  Isto se repetiu no episódio algodoeiro maranhense: 7 A. Karaev, op. cit.,  p. 36.
 A mão-de-obra principal dos algodoais, que produziam sobre tudo para a exportação, eram os arrendatários obrigados a  compensar a terra que tinham recebido para usufruto pessoal  trabalhando um determinado número de dias na plantação do  senhor da terra. Na primeira metade do século XIX, esta forma  de organização do trabalho, que faz lembrar a batchina  russa,  espalhou-se também pela zona litoral [açucareira] do Nordeste. [... ] Os arrendatários tinham, também, outras obrigações em  relação aos senhores da terra. Por exemplo, eram obrigados a  consertar estradas, limpar açudes etc. Muitos deles ficaram  também endividados aos senhores da terra, isto é, viram-se  praticamente reduzidos à condição de servos.8 O nome que mais aparece nos mapas brasileiros das regiões  ocupadas mais cedo é o de tapera,  isto é, ruína. Esse nome assinala  tristemente um dos fenômenos mais característicos da história do  nosso país: a marcha territorial da riqueza. São inúmeros os casos,  no Brasil, de áreas por vezes extensas que conhecem períodos de  prosperidade, por vezes longos, descaindo depois, com um declínio  também prolongado: a riqueza passou por ali, deixou vestígios  materiais até, em certos casos, sem falar nos vestígios culturais. As  populações acompanham essa decadência inexorável. É um come çar e recomeçar incessante. Não se trata de nomadismo, mesmo na  pecuária, mas de uma terrível condenação que define como não  fixas nem estáveis as atividades desenvolvidas numa área depois  abandonada. Esse permanente esforço de construção, essa renova ção repetida, mostra como foi extraordinário o trabalho de nosso  povo para operar a exploração da terra e para assegurar a sua  subsistência. Ora, a cada momento em que a decadência de uma área obri gava os seus povoadores a se transferirem a outra, ou mesmo nos  casos em que, permanecendo na mesma, passaram a ter formas de  trabalho e condições de existência diferentes, alteraram-se também  as peças fundamentais da base material e até elementos importan tes da superestrutura. Isso ocorreu de forma acentuada quando o  escravismo açucareiro e o escravismo minerador entraram no lon go processo de decadência, com o deslocamento do centro de gra vidade da economia para a área fluminense e paulista em que o  café aparecia como nova esperança e logo se concretizava um 8  A. Karaev, op. cit.,  p. 37.
 novo ciclo de expansão. Nessas vastas áreas antes escravistas, em  que o escravismo possibilitara o desenvolvimento econômico, sur gem, assim, crescem e dominam relações feudais inequívocas. Elas  são de ordem material e ainda de ordem cultural: “O prestígio de  cada um senhor das terras dependia da quantidade de homens  que pudesse utilizar a qualquer momento e para qualquer fim.  Em conseqüência, o roceiro da economia de subsistência, se bem  que não estivesse ligado pela propriedade da terra, estava atado  por vínculos sociais a um grupo, dentro do qual se cultivava a  mística da fidelidade ao chefe como técnica de preservação do  grupo social.” 9 As relações sociais entre pessoas livres, nos latifúndios que  davam a configuração da ocupação do solo, tinham cunho fla grantemente feudal de inequívoca contundência. As lutas pela pro priedade da terra, as lutas de famílias, as lutas políticas, toda a  trama da violência sertaneja, geradora do banditismo como do  fanatismo, retratam rigorosamente esse quadro feudal que a ficção  depois recolheu em algumas criações importantes. Num dos núme ros do Diário de Pernambuco  de 1856, a situação dos trabalhado res ditos livres da área ficou assim definida: “Nas terras dos  grandes proprietários, eles [os lavradores] não gozam de direitos  políticos, porque não têm liberdade de opinião: para eles, o grande  proprietário é a polícia, o tribunal, a administração, em uma pala vra, tudo, e, fora o direito de abandoná-lo, a condição desses infe lizes em nada difere da dos servos medievais.” 1 0  1 1  A ampliação dos  vínculos com os mercados externos, na fase ascensional das áreas  escravistas, em que a violência estava no caráter do regime, re sultaria, nas fases de decadência, sob outra forma, sob a forma de  relações feudais. Era o processo que denominei de regressão feu dal, regressão porque ao desenvolvimento sucedia o atraso, ao con trário do que a evolução natural admitia. Nesta, o feudalismo, em  relação ao escravismo, era avanço; aqui, marcava o atraso.1 1 9 A. Karaev, op. cit.,  p. 37. 1 0  Diário de Pernambuco,  Recife, 18-06-1856. 1 1  A singularidade da passagem do feudalismo ao escravismo, no Brasil,  ter apresentado fisionomia inteiramente diversa do que ocorrera no Oci dente europeu, de cuja história nos vieram os modelos, foi apreciada por  mim como regressão justamente porque correspondeu a uma decadência  econômica. Assim, o modo de produção mais avançado, no caso brasileiro,
 Na verdade, para confundir os estudiosos e para obrigá-los a  raciocinar com a dialética, passando do geral dos modelos do Oci dente europeu ao particular do caso concreto brasileiro, as formas  com que a produção e mesmo a cultura se apresentaram eram  sempre mistas, não bem definidas, jamais uma reprodução total e  acabada dos modelos consagrados. Para não falar nas áreas que  viviam em economia natural — além das indígenas —, outras havia  que conservavam as formas mais atrasadas da economia de subsis tência, e terceiras apresentavam a degradação das formas escravis tas em feudais. Um estudioso situou assim essa heterogeneidade: A par do regime escravista principal, que determinava o aspecto  do regime social do país, no Brasil existiam outros regimes  pré-capitalistas que eram, via de regra, muito primitivos e se  baseavam nas relações de produção que, sob o ponto de vista  sócio-econômico, não eram muito claras nem precisas. Trata-  se do regime comunitário primitivo (tribos indígenas no inte rior); do regime escravista natural-patriarcal (certas economias  agrícolas e pecuárias de São Paulo, Maranhão e de algumas  outras regiões do Nordeste nos séculos XVI-XVIII); do regime  natural-patriarcal do pequeno campesinato (camponeses, colo nos das regiões litorâneas de Santa Catarina e do Rio Grande  do Sul, assim como os primeiros colonos alemães no Sul do  país nos séculos XVII1-XIX); do regime semifeudal (fazendas  e estâncias pecuárias do Nordeste, do Sul e de Minas Gerais,  economias latifundiárias de subsistência e seminaturais na peri feria do sistema escravista) etc.1 2 Claro que aqui não vigoraram as formas clássicas européias,  particularmente as feudais, e a miscelânea delas anda mais con fundiu o historiador: “Todos os regimes econômicos principais, in cluindo aquele que tinha sido qualificado como semifeudal, tinham  uma mescla forte.” 1 3 Aspecto importante, via de regra descurado, foi a influência  negativa acentuada que o escravismo e o feudalismo exerceram  no desenvolvimento da sociedade brasileira. Se analisarmos tal in- correspondeu, em determinadas áreas, a uma decadência inequívoca. “O  fenômeno de transição de vastas áreas antes escravistas a um regime  caracterizado de servidão ou semi-servidão é possível, no Brasil, pela dis ponibilidade de terras” (Nélson Werneck Sodré, op. cit.,  p. 247). 1 2  A. Karaev, op. cit.,  p. 43. 1 3  A. Karaev, op. cit.,  p. 44.
 fluência pelos seus efeitos não apenas em indivíduos mas princi palmente na sociedade, constataremos o seu peso na longuíssima  tradição senhorial que preside as relações políticas e empregatícias,  como as relações familiares, estas fundamentalmente, no desenvol vimento institucional, nas formas de transmissão da cultura, ainda  a acadêmica e até a científica e artística. Aquele peso embruteceu  e corrompeu os costumes, intoxicou o ambiente social de profun dos e duradouros preconceitos, correspondeu a um fator de inércia  cujos efeitos foram permanentes e chegaram ao nosso tempo, de  sorte que mesmo indivíduos das classes dominantes conservam cos tumes e padrões de conduta próprios dos incultos e atrasados. De  tudo isso foram vítimas, em nossa sociedade, a mulher e a criança,  mas principalmente aqueles cuja contribuição à sociedade foi a  do trabalho. Escravismo e feudalismo infamaram o trabalho, na  verdade, e isso atravessou os séculos, atingindo a etapa capitalista  do nosso desenvolvimento histórico. Capitalismo No século XIX, o quinto após a colonização e da vigência  dessa perturbadora coexistência de tão diversas formas de produ ção e de suas decorrências na cultura, apareceram aqui condições  para o surgimento das relações capitalistas e de uma estrutura so cial em que a burguesia passou a ser a classe dominante e a con trolar o aparelho de Estado. As mudanças que definiram esse  processo, numa sociedade como aquela cujos traços principais fo ram antes sumariados, podem definir-se globalmente como revolu cionárias. É o que se pode conhecer como revolução burguesa no  Brasil. Naquele ventre promíscuo, em que existiram formas tão  diversas e contraditórias, as alterações iniciadas no século XIX  começaram a surgir e a crescer. Enfrentando a resistência maciça  e tenaz, monolítica por vezes, das relações antigas, particularmen te as coloniais, as relações capitalistas padeceram um desenvolvi mento irregular, desigual, quase sempre lento. O conjunto delas  constituiu a revolução que modelaria, e vai modelando, o Brasil  contemporâneo. Convém, entretanto, para maior clareza, particularmente con siderando a complexidade do processo no caso específico do Bra-
 sil, discutir, ainda que de modo sumário, alguns conceitos. O pri meiro deles é o mais geral — o conceito de revolução. A palavra  tem sido usada, ao longo do tempo, aqui e fora daqui, com signifi cações diversas. Na maioria dos casos, denuncia mudança, quase  sempre violenta, quase sempre comportando luta armada, na com posição do poder. Em casos raros, o seu uso mostra significação  muito restrita — revolução é a passagem de um modo de produção  a outro. O entendimento habitual, condicionado pelas debilidades  do conhecimento e do ensino de história em nosso país, conhece a  revolução como um fato decisivo, por assim dizer súbito, decorren te da ação de determinada personagem ou de algumas personagens,  assinalada por uma data ou até por um episódio significativos: a  revolução francesa, por exemplo, ficou conhecida pela queda da  Bastilha; foi esse acontecimento que marcou o divisor separando  o passado do futuro, antes da revolução e depois da revolução.  Para os brasileiros, para mencionar outro exemplo, embora não  revolucionário, mas de significativa mudança, a independência fi cou conhecida e resumida no grito do Ipiranga: antes, éramos  colônia, depois passamos a ter autonomia. Claro que tal concepção  do processo histórico é própria do leigo. Basta o conhecimento  elementar de história para saber que a revolução francesa, que  começou antes de 1789 e se completou muito depois, teve na queda  da Bastilha um acontecimento que apenas se tornou simbólico,  mas não passou de secundário. E os brasileiros sabem, quando têm  da história uma idéia mais clara, que o processo da independência  do Brasil começou com as conjurações mineira e baiana, com a  rebelião pernambucana de 1817, e se completou, no nível político  e administrativo, com a maioridade, integrando, pois, a regência.  E que, no fim de contas, é um processo em curso. Uma concepção por assim dizer ortodoxa de revolução é aque la apresentada pelo Pequeno dicionário filosófico,  de Rosental e  Iudin: revolução é “mudança radical na vida da sociedade, que  conduz à derrota do regime social caduco e ao estabelecimento de  um novo regime progressivo, transfere o poder das mãos de uma  classe (reacionária) às mãos de outra classe (progressiva)”.1 4  O  verbete é longo; condena a concepção da revolução como casuali 1 4  M. Rosental e P. Iudin, Pequeno dicionário filosófico  (São Paulo, 1959),  p. 501.
 dade, mostra que “é uma etapa necessária ao desenvolvimento da  sociedade”, frisa a ligação entre forças produtivas e relações de  produção, mostra que o problema crucial da revolução é o poder  estatal e frisa que “a revolução é a forma superior da luta de  classes”.1 5  Já o Dictionnaire économique et social,  organizado por  Maurice Bouvier-Ajam, Jésus Ibarrola e Nicolas Pasquarelli, de pois de definir revolução industrial e revolução científica e técni ca, define revolução social como “mudança radical na superestru tura política, institucional, jurídica e ideológica de uma sociedade,  que tem por fim alterar profundamente a estrutura econômica e  social dessa sociedade, estabelecendo nela a correspondência entre  as relações de produção e as forças produtivas”.1 6  O verbete é tam bém longo e frisa que a revolução não é um fenômeno acidental,  mas resulta do desenvolvimento das condições materiais de vida  da sociedade e das contradições internas que lhe são próprias,  mostrando, como Marx escreveu, que a causa econômica objetiva  da revolução social é o conflito entre as forças produtivas novas e  as relações de produção antigas que entravam o desenvolvimento  daquelas, decorre da luta de classes, coloca no centro o poder do  Estado e, finalmente, que nem todas as revoluções sociais têm o  mesmo caráter, que depende da classe que ascende ao poder e das  relações de produção que se instauram com ela. Qualificando como  revolução social esse tipo de mudança, fica claro que admite a  existência de outro ou outros tipos de revolução. Para os fins a que nos propomos, fica claro que a revolução —  e da social é que se trata — importa na solução da contradição  entre o desenvolvimento das forças produtivas e o desenvolvimen to das relações de produção, resulta da luta de classes, coloca  como problema central a questão do poder, segue um processo e  não decorre de casualidades e surge como etapa necessária do de senvolvimento da sociedade. Essa a concepção geral e teórica. Mas  a nós interessa, por ser o tema essencial deste estudo, a revolução  burguesa, isto é, a alteração econômica, social e política que, re sultante da luta de classes, colocou a burguesia no poder e lhe  permitiu, pelo controle do Estado, realizar as alterações necessá 15 Ibidem,  p. 502. 16 Dictionnaire économique et social,  organizado para o CERM por Maurice  Bouvier-Ajam, Jésus Ibarrola e Nicolas Pasquarelli (Paris, 1975), p. 587.
 rias a restabelecer a adequação entre as novas forças produtivas e  as relações de produção. Para completar: a nós interessa estudar  como isso aconteceu no caso particular do Brasil. A revolução bur guesa no Brasil, pois, é o processo de mudança que, pelo desen volvimento das forças produtivas, pelo desenvolvimento das rela ções capitalistas, permitiu à burguesia tornar-se a classe dominante  e introduzir as relações superestruturais necessárias à preservação  e desenvolvimento de seus interesses de classe. Trata-se, conseqüentemente, de entender como, no ventre pro míscuo daquelas forças produtivas, geradoras e mantenedoras de  velhas relações de produção, começaram a surgir novas forças pro dutivas e como estas, no seu desenvolvimento, conseguiram con quistar o poder e estabelecer novas relações de produção, que  permitiam a preservação de seus interesses de classe, confundin do-os com o de toda a nação, como se os de todas as classes fossem  por eles atendidos. É evidente que, no processo histórico, primeiro  surge a burguesia, e cresce, e depois surge a sua luta pelo poder e,  finalmente, a sua revolução — a revolução burguesa brasileira.  Para isso, é necessário conhecer como surgiram e se desenvolve ram em nossa sociedade as relações capitalistas; como, do passado  secular escravista e feudal emergiram essas novas forças produti vas, em contradição com aquelas formas de domínio do poder. No  fim de contas, este é o exame de como o capital comercial aqui  porque o usurário foi menor — se tornou capital, como funciona  em regime capitalista de produção. Não se trata de verificar apenas  como se desenvolveram as forças produtivas, apesar dos freios  estabelecidos pelos antecedentes escravistas e feudais, mas como  mudaram de qualidade. Como passaram do crescimento quantita tivo ao nível qualitativo. O capitalismo pressupõe, para seu aparecimento, que duas  condições sejam satisfeitas: 1) acumulação de riqueza de certa mon ta; 2) acumulação de força de trabalho separada dos meios de  produção. A primeira condição gera o capital; a segunda, gera o  trabalho assalariado. Sem trabalho assalariado não há capitalismo,  por definição. Onde a força de trabalho é a do escravo, ele mesmo  uma mercadoria, ou onde a força de trabalho é parcialmente ce dida pelo servo, não há capitalismo. O capital, como foi dito por  Marx, é uma relação — uma relação histórica. Para estudar o  aparecimento do capitalismo no Brasil, é preciso estudar, pois, como
 a riqueza cresceu aqui e, depois, como essa riqueza, em determi nada etapa do processo histórico, tornou-se capital. Estudando, em  seguida, como o trabalho aqui se tornou assalariado, depois de ter  sido fornecido pelo escravo e pelo servo. Para definir esses dois  termos da equação, começaremos pelo primeiro: o desenvolvimen to quantitativo da riqueza. O processo da independência brasileira, no nível político e  administrativo, desenvolveu-se dos fins do século XVIII à segun da metade do século XIX. Com o início desta, começam a aparecer  reformas, condicionadas pelo crescimento da agricultura cafeeira,  com os preços em ascensão no mercado externo. Tais reformas  se somam e traduzem a existência de um novo quadro no país. A  primeira delas foi a reforma tributária de Alves Branco, dos fins  da primeira metade do século. É o sinal inaugural da passagem de  uma prolongada fase histórica, definida pelo fluxo da renda para  o exterior, numa economia caracterizadamente colonial, a uma fase,  que se inicia timidamente, de declínio nesse fluxo da renda para  o exterior e avanço de sua acumulação interna. A Lei de Terras,  de 1850, estabelece condições em que a terra passa a integrar o  mercado: traduz o crescimento da agricultura de exportação e dá  sentido e define como classe aos seus proprietários. A terra é  agora a medida de status,  não mais o número de escravos. Em 1850,  por outro lado, o Estado brasileiro aceita a abolição do tráfico ne greiro, mantido até aí e desde o início do século, apesar da pressão  britânica. No início da segunda metade do século, por outra parte,  a estrutura material do país passa por importantes mudanças: sur gem as ferrovias, o transporte a vapor, as estradas, os serviços  públicos urbanos que dão fisionomia nova às cidades, as primeiras  indústrias. É a época em que os investimentos no tráfico negreiro  começam a ser transferidos à expansão das lavouras mas também  às indústrias nascentes, — é a época em que homens como Ver gueiro e principalmente como Mauá destacam-se pelos seus em preendimentos. O meio circulante cresce, o capital bancário co meça a figurar nas transações. Por outro lado, é a época em que os efeitos das crises cíclicas  do capitalismo ocidental, transferindo-se à nossa economia débil,  causam nela notórios distúrbios, com falências comerciais e ban cárias. De toda maneira, a economia brasileira começa a superar  a etapa do fluxo da renda para o exterior, iniciando a etapa em
 que, conservando e acumulando no interior uma parte dela, passa  à categoria de economia dependente. A acumulação interna reside  particularmente nos saldos na balança do comércio exterior e no  crescimento da produção de subsistência. O mercado interno, que  data da fase mineradora no altiplano do centro-sul, começa a pesar  na atividade econômica. A crescente derrocada do escravismo se gue paralela ao desenvolvimento do capital comercial e mesmo a  certas formas do capital usurário. A promulgação, ainda em 1850, do Código Comercial e,  em 1855, do Código Civil acompanha a nova função sócio-econô-  mica da terra e o advento de empresas comerciais e industriais  antes desconhecidas. Os hábitos de consumo das populações urba nas se alteram, cresce o mercado a que afluem importações diver sificadas, inclusive no que diz respeito a utensílios domésticos e  moda feminina. A passagem da terra à categoria de propriedade  burguesa acompanha, nas áreas rurais, essa transformação que aca ba por afetar os costumes. Aquela passagem, por outro lado, pas sou a funcionar com base na exploração do trabalho agrícola.  Trata-se de um processo irregular, freado pela pesada herança do  passado colonial e pela complexidade das formas mistas vigentes  e ainda pelas desigualdades não apenas entre as classes mas tam bém entre as regiões, as ilhas de produção no extenso arquipé lago nacional. Essas desigualdades refletem-se no crescimento va garoso do mercado interno. Ainda assim, o rendimento real do  Brasil, na segunda metade do século XIX, aumentou 5,4 vezes.1 7   Era a época, convém lembrar, em que a capital comercial nacional  controlava o comércio do café, permitindo reter no interior parcela  importante de seus lucros. Ficaram conhecidos casos de fortunas  individuais de monta: Mauá acumulou, em dez anos, cerca de 100  mil libras esterlinas, na atividade bancária. Nas décadas iniciais da  segunda metade do século, ele organizou empresas em que foram  investidos milhões de libras esterlinas. Na primeira metade do século, o Brasil só tivera saldo co mercial com o exterior umas poucos vezes e o déficit era coberto  com empréstimos; nela, o saldo orçamentário só ocorreu também  sete vezes, até 1860. O Brasil contratou no exterior mais de dez 1 7  Celso Furtado, Formação econômica do Brasil  (Rio de Janeiro, 1959), p. 280.
 empréstimos, no valor de 11,5 milhões de libras esterlinas. A par tir de 1861, os saldos na balança comercial exterior foram contí nuos e, embora oscilassem em valor, alcançaram altos índices em  anos como 1867-1868 e 1871-1872. Daí por diante foram quase  sempre crescentes. O déficit orçamentário, porém, permaneceu cons tante em toda a segunda metade do século. A exportação de  café, que permanecera um pouco inferior a 50% do valor total  das exportações brasileiras, ultrapassava esse índice no decênio  1871-1880; a do açúcar, em declínio continuado, não chegara, nes se decênio, a 12%; mas o algodão atingia nele a mais de 18%.  As primeiras normas para incorporação de sociedades anônimas,  de 1849, foram completadas em 1859 e 1860. O ano de 1855 foi  marcado pelo aparecimento da Consolidação das Leis Civis,  de  Teixeira de Freitas. As primeiras linhas telegráficas são de 1852, a primeira fer rovia é de 1854, a iluminação a gás do Rio é de 1853. Em 1850,  começava a funcionar o estabelecimento de construção naval da  Ponta d’ Areia, adquirido por Mauá em 1846. Em 1852, ele orga nizava a Companhia de Navegação do Amazonas, como a Compa nhia Fluminense de Transportes. Já em 1851, fundara a Compa nhia de Iluminação do Rio de Janeiro e participava da segunda  fase do Banco do Brasil. Seus capitais, em 1850, eram já da ordem  de 300.000 contos de réis. Todas as suas empresas, entretanto,  como a concessão para a construção da ferrovia ligando o porto de  Santos ao planalto, foram tragadas pelos efeitos das crises cíclicas  do capitalismo e passaram a propriedade de ingleses e americanos.  As oscilações tarifárias já vinham corroendo os seus empreendi mentos: Mauá foi uma vítima do atraso do capitalismo brasileiro.  A sua aventura burguesa pioneira assinala a debilidade desse ca pitalismo na infância: as crises cíclicas de 1857 e de 1864 liqui daram com ela. Quando da primeira, ocorreram só no Rio de  Janeiro 49 falência; em 1858, serão 90; as hipotecas rurais, por  dívidas contraídas entre 1855 e 1859, ascendem a 68.000 contos  de réis, compromissos de liquidação praticamente impossível. A  repetição da crise, em 1864, quando a casa bancária de J. Alves  Souto fechou as portas e uma centena de casas comerciais foi  arrasada, com prejuízo global da ordem de 100.000 contos de  réis só nessas falências, agravou o quadro e representou entrave  violento à capitalização nacional. Esses dados revelam os obstá
 culos que a acumulação capitalista enfrentou aqui. Imprensada en tre o latifúndio escravista e feudal e o pré-imperialismo britâ nico, avançava aos trancos e barrancos. A expansão ferroviária era assinalada, em 1880, por um cres cimento de cinco vezes em dez anos. Em 1882, era ampliada a  Lei das Sociedades Anônimas. Era uma fase ascensional da renda,  permitindo acelerar a acumulação. Superada a crise de 1874-1875,  o que só veio a se completar em 1886, a exportação cresce: qua druplicou, em valor, nos dois últimos decênios do século. Os saldos  tornam-se habituais: os do lustro de 1895-1900 atingem a pouco  mais de 350.000 contos de réis, chegando a mais de 1.400.000  contos de réis no lustro de 1900-1905, nível que, oscilando embo ra, permanecerá até 1920. Era importante índice de avanço o saldo  total de um milhão de contos de réis nos dois últimos decênios  do século XIX. O café brasileiro, então, excedia de 75% do total  mundial comercializado. O dado indispensável na análise do qua dro, entretanto, é aquele referente ao imperialismo. Entre 1860  e 1880, realmente, os monopólios não são mais do que embriões,  quando o desenvolvimento da concorrência livre encontra o seu  apogeu; o período de largo desenvolvimento dos cartéis começa  em 1873, mas toma considerável impulso no fim do século: a  crise de 1900-1903 assinala o pleno desenvolvimento do imperia lismo. Se a renda nacional inglesa dobrou, entre 1865 e 1898, a  renda proveniente do exterior cresceu ali nove vezes. Esse ritmo  de exploração das áreas coloniais era também o das áreas depen dentes. O Brasil concorria com a sua parcela para isso. Essa explo ração era o alicerce do império britânico, de que fazíamos parte,  embora politicamente autônomos. O desenvolvimento material brasileiro foi secularmente retar dado, desde a fase da economia colonial, caracterizada pelo fluxo  da renda para o exterior, até à fase da economia dependente,  quando se iniciou aqui a acumulação capitalista muito lentamen te, por força de ficar no país uma parte já importante da renda  nele gerada. O que define o surgimento das relações capitalistas  aqui e depois o seu desenvolvimento é o fato de ocorrer na fase  pré-imperialista e, depois, plenamente imperialista. É esse tardio  capitalismo que vai encontrar desde o seu alvorecer grandes obs táculos que se concretizavam particularmente na associação do im perialismo à nossa acumulação. Avançávamos como um carro frea-
 do permanentemente. Além dos freios conseqüentes da exploração,  carregávamos o peso das crises cíclicas, cujos efeitos eram sistema ticamente transferidos das áreas originárias e de capitalismo ple namente desenvolvido às áreas de capitalismo dependente, como  o Brasil. O pré-imperialismo apresentou aqui o quadro definido pelos  investimentos e pelos empréstimos, somando efeitos à troca desi gual. Esta foi a forma mais antiga. Os investimentos acompanha ram o nosso desenvolvimento capitalista, aplicados em transporte  ferroviário e marítimo, como em transporte urbano, e nos serviços:  gás, luz, telégrafo, depois telefone, cabo submarino, quase sempre  em contratos leoninos.1 8  1 9  Os empréstimos começaram com a inde pendência — o reconhecimento dela nos custou a responsabili dade do chamado “empréstimo português”, porque tomado por  D. João VI — e permaneceram, praticamente sem interrupção aliás,  até os dias de hoje: os do tempo do império foram liquidados  apenas após o movimento de 1930. A história desses empréstimos  é uma longa teia tenebrosa em que se desvenda a extraordinária  sobrecarga que onerou secularmente o nosso povo.1 1 Burguesia Superadas as crises do início da segunda metade do século  XIX, a ascensão exportadora, conseqüência e causa da expansão da  lavoura e da economia coletora amazônica depois, as relações ca pitalistas desenvolveram-se em ritmo lento mas nítido. Esse de 18 Modelo de contrato leonino foi o da construção e exploração da São  Paulo Railway, a Inglesa,  com a garantia de juros, o privilégio do mono pólio do transporte e a longa duração. Não houve risco algum do capital  investido pela empresa britânica, que lucrou efetivamente, uma vez que  o prejuízo eventual seria contratualmente coberto pelo Estado, durante  quase um século. Deixou-nos um trambolho ferroviário. 1 9  A história da dívida externa brasileira, objeto de vários estudos, inclusive  um oficial, que levaria ao chamado “esquema Aranha", quando, após o  movimento de 1930, o governo brasileiro decidiu proceder ao levanta mento dos empréstimos até então concedidos e estabelecer um sistema  de pagamento em novos moldes, é por vezes um labirinto de torpezas.  O levantamento realizado por um economista insuspeito, Valentim Bouças,  faz revelações que seriam, entre indivíduos, objeto de ação policial.
 senvolvimento — de que as inovações na legislação dão sinal  conhece, nos fins do século, significativa mudança qualitativa. É  o primeiro grande lance da acumulação capitalista marcada pelas  reformas políticas, de que a abolição do trabalho escravo, com as  precedentes leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, foi a mais  destacada, e que esteve associada ao advento da republica. Antes,  havia burgueses isolados, como indivíduos, ilhados pelo predomí nio absoluto do latifúndio e numa sociedade em que eram minoria  reduzida. Agora, já se delineia a burguesia como classe. Como  tal, dando os seus primeiros passos, em inequívoca subordinação  à classe senhorial. Mas presente nas reformas do fim do século,  sem a menor dúvida. A crise política da época deriva das mudan ças econômicas estruturais que então ocorrem e a qualificação como  estruturais vai por força das alterações no mercado de trabalho  principalmente: o desenvolvimento capitalista brasileiro, embora  ainda lento e difícil, já não comportava a convivência com o  escravismo.2 0 O segundo grande lance do desenvolvimento do capitalismo  e da burguesia foi ligado ao conjunto de acontecimentos que mar caram a 1* Guerra Mundial. Por força da guerra e da campanha  submarina com que os alemães tentavam o bloqueio do comércio  dos aliados, as trocas internacionais encontraram dificuldades mui to grandes para funcionar. No caso brasileiro, como em alguns  outros, essas dificuldades foram decorrentes da diminuição e, em  certos casos, da suspensão das importações. Sem receber do exte rior, ou recebendo em volume menor e abaixo de suas necessida des as mercadorias que antes recebíamos, fomos compelidos a pro duzi-las aqui. Essa redução nas importações e simultâneo avanço  na produção nacional substitutiva gerou, além da modificação na  balança do comércio exterior, um parque industrial que, em con dições normais, teria demandado providências e investimentos di fíceis e controversos para, no fim de contas, motivar um desen volvimento lento, como vinha acontecendo. A guerra, por outro 20 “Em 1889, o Brasil deu apenas um passo bastante indeciso pela via da  transformação do seu sistema estatal feudal-colonial em sistema burguês.  Isto predeterminou a necessidade objetiva de uma nova transformação  revolucionária no caráter do poder estatal, que se deu quatro décadas  depois, em 1930” (N. Simónia, in A. Karaev, op. cit.,  p. 8).
 lado, ocupado o imperialismo nesse mister, que lhe é intrínseco,  folgava a sua ação sobre as economias dependentes, como a nossa.  Assim, capitais antes consumidos nas importações, transferidos ago ra à indústria, criavam um quadro novo. Favorecido pela conjun tura, o esforço da burguesia deve então desenvolver-se para tornar  o conjuntural em estrutural. Os saldos na balança do comércio  exterior, da ordem de 200.000 contos de réis, em média, até 1914,  passaram a 850.000, em 1919. A estatística econômica assinalava  que, em qüinqüênios, a percentagem do capital investido na indús tria era marcada pelos dados seguintes: de 11 a 12%, entre 1885  e 1894; ascendendo a 12,4%, entre 1905 e 1909; para passar  a 18,5%, entre 1910 e 1914 e a 24,2%, entre 1915 e 1919. A partir de 1901, a indústria passará a constituir o eixo da  economia de mercado interno, embora a de mercado externo con tinuasse a ser preponderante. O censo industrial de 1907 assinala va a existência de 3.258 estabelecimentos, com um capital da ordem  de 670.000 contos de réis, com um valor de produção superior  a 140.000 contos de réis e uma força de trabalho de 150.000 ope rários. Em 1920, os dados serão muito diferentes e frisarão a mu dança qualitativa: 13.340 estabelecimentos, capital investido de  1.800.000 contos de réis, valor de produção de 3.000.000 de con tos de réis e 280.000 operários. Isto significa que dobrou o número  de operários, quadruplicou o valor da produção e triplicou o núme ro de estabelecimentos, como o capital investido. Só entre 1915  e 1919, em cinco anos apenas, surgiram 5.940 novos estabeleci mentos industriais. A burguesia não apenas via o seu espaço ser  ampliado mas reconhecido. Em 1890 tínhamos apenas duas usinas  elétricas; entre 1891 e 1900 foram fundadas 8; entre 1900 e 1910,  foram fundadas 77; entre 1910 e 1915, foram fundadas 104 e  entre 1915 e 1925 surgiram 152. Os dados fixam um processo de  industrialização importante, embora com acentuadas deficiências:  é um parque disperso, atendendo áreas consumidoras próximas,  servido por fontes de energia também dispersas em pequenas usi nas; o peso da manufatura e até do artesanato é grande nele; a  contribuição dos bens de consumo é esmagadora: em 1920, cor responde a 85 ou 90% do valor total da produção e define consi derável debilidade. Mas, na verdade, altera o quadro e a estrutura  da produção brasileira e define o impulso do desenvolvimento  aqui das relações capitalistas. O “essencialmente agrícola” e a eco
 nomia essencialmente exportadora já não são suficientes para de finir esse quadro. É um outro país, com novas relações políticas  e de classes sociais. O terceiro lance do desenvolvimento do capitalismo brasileiro  e, conseqüentemente, do avanço da burguesia em relação ao conjunto  da sociedade, ocorre em estreita relação com a crise de 1929, que  abala a economia mundial, pois suas repercussões são dessa di mensão e atingem profundamente o Brasil. Repete-se, por outros  motivos e em outras condições, o ocorrido quando da l.a  Guerra  Mundial: caem as nossas importações e, com a queda das expor tações e, nelas, o declínio violento da contribuição do café, opera-  se acentuada transferência de investimentos da agricultura para a  indústria. É um dos momentos mais destacados, por outro lado,  da expansão do mercado interno, com a crise da economia expor tadora tradicional. Mesmo na área agrícola, o papel que o algodão  assume, utilizando a estrutura deixada disponível pela crise do  café, é inteiramente diverso do deste e tem ligação direta com o  crescimento da indústria têxtil nacional, um de seus ramos tradi cionais e mais antigos, além de disperso em vários centros urbanos.  A crise de 1929, realmente, repete aqui e, convém frisar, sob con dições muito diferentes e muito mais significativas, o que ocorrera  quando da l.a  Guerra Mundial. Enquanto mudança de qualidade,  aquela crise, com o seu corolário necessário e complementar, o  movimento armado de 1930, constituiu etapa muito importante  do desenvolvimento do capitalismo brasileiro. No referido movi mento, a hegemonia burguesa, ainda que transitória na fase, apa rece com clareza meridiana. Na mesma medida em que, com a derrocada do escravismo,  a base da exploração do trabalho no campo passou a ser a pro priedade da terra, nas áreas urbanas a acumulação à custa do  trabalho avançaria. De modo geral, as formas capitalistas desen volvidas, puras, isentas das sobrevivências feudais, começaram a  vicejar nessa etapa de mudança, que abalou as estruturas tradicio nais. A divisão de classes, por isso mesmo, começou a definir-se  com nitidez. Na face externa, porém, a paisagem permanecia sem  alterações e o fluxo de empréstimos e investimentos destinava-se,  de preferência, à consolidação das formas pré-capitalistas, embora  a economia de tipo colonial estivesse em declínio, substituída pela  de tipo dependente. O movimento de 1930 e a nova composição
 do poder permitiu ao Estado efetivar sua participação nas mudan ças em curso. A premissa necessária para definir as relações ca pitalistas existiam agora: concentração de riqueza monetária, de  um lado, e concentração da massa proletarizada de produtores li vres”, de outro lado. A etapa, como as anteriores, apesar de tudo,  assinala um avanço irregular daquelas relações, lento e atrasado.  Tais traços vicejaram profundamente o desenvolvimento do capi talismo brasileiro e exerceram nele profunda influência. Os empréstimos estrangeiros foram uma das formas como a  ação do imperialismo esteve presente naquele desenvolvimento. En quanto, no período de 1891 a 1900, eles totalizaram 22 milhões de  libras esterlinas, no de 1901 a 1910 chegaram a 98 e no período  de 1911 a 1930 atingiram 203 milhões de libras esterlinas. A dívi da externa, entre 1900 e 1930, cresceu de 46 para 267 milhões de  libras, ao mesmo tempo que os investimentos estrangeiros controla vam 23% do capital que funcionava no país.2 1  Enquanto tais in vestimentos, como os empréstimos em alguns casos, aceleravam o  avanço capitalista, faziam com que a acumulação perdesse auto nomia e fosse absorvida em parcelas crescentes pelos investidores  estrangeiros. Logo se intensificou a evasão de recursos financeiros  sob a forma de dividendos. Os compromissos da dívida externa,  entre 1901 e 1910, consumiram cerca de um terço dos rendimen tos proporcionados pela exportação ou 10% do valor do produto  interno bruto. Em 1929, os compromissos da dívida externa mais  os dos investimentos estrangeiros somaram entre 35 e 37% dos  saldos na balança do comércio com o exterior, o dobro do que  ocorrera entre 1901 e 1910. Assim, o imperialismo era sócio im-  pontante do desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Em 1932,  os rendimentos da exportação tiveram 51% destinados a ajustar  as contas da dívida externa e remeter lucros de investimentos es trangeiros. Mas a década de 30 assinala novo período na acumulação de  capitais aqui. Isto se deve a uma série de circunstâncias e repete  o que, em menor escala, ocorrera antes: as pausas na exploração  imperialista são momentos de avanço da acumulação capitalista  interna. No caso, a pausa estava ligada aos problemas que o impe rialismo enfrentava, decorrentes da crise de 1929 e da prolongada 2 1  A. Karaev, op. cit.,  p. 59.
 depressão que se seguiu e que chegou quase até o fim da década.  O nosso desenvolvimento capitalista, assim, estava comprimido pelo  imperialismo, de um lado, seu sócio, e pelo latifúndio, de outro  lado: a acumulação de recursos formadores do capital continuava  a ser, apesar de tudo, operada no setor pré-capitalista. As mudan ças políticas de que o Brasil é cenário na época significam, sob  tais condições, a execução sempre parcial e defectiva das tarefas  peculiares à revolução burguesa de que o movimento de 1930 foi  momento importante: o domínio das oligarquias, particularmente  a exportadora, entra em declínio, a intervenção do Estado no pro cesso passa a acentuar-se. O lustro que se seguiu ao movimento de 1930 foi agitado e  essa agitação derivava da instabilidade reinante e das improvisa ções que denunciavam uma incerta busca de rumos. As novas for ças políticas ou a composição delas não traziam plano algum para  as reformas a empreender e tateavam o terreno, em busca de orien tação. Eram forças heterogêneas e essa heterogeneidade correspon dia às formas mistas que se apresentavam na extensão territorial  do país e na variedade das formas que a produção apresentava e  sua mistura. Em 1932, movimento armado na área do café amea çaria essa composição frágil. E o caráter conservador do movimen to de 1930 — disfarçado na pregação liberal e ainda na simpatia  popular, não participação propriamente — , alicerçado no arcaísmo  subsistente em nossa sociedade, proveniente do poder das áreas  pré-capitalistas, começaria a aparecer, depois de alguns agitados  anos de lutas internas em que as contradições sociais afloravam.  Cedo, o poder assumiu formas repressivas e tendeu à busca de  uma hipotética harmonia entre as classes. Mantido intacto, embora  com menor participação no poder, o latifúndio, definindo as for mas pré-capitalistas, persistia freando as mudanças: a propriedade  da terra permaneceu intocada e a resistência ao imperialismo con tinuou débil. Mas o fato é que, pela primeira vez, a burguesia  teve o comando das ações, exerceu hegemonia no processo. Ela  teve no movimento de 1930 um dos degraus mais importantes de  sua ascensão. A hegemonia conquistada no movimento de 1930 permite à  burguesia optar pela ditadura instalada em 1937 como Estado  Novo, inserida na larga tendência ascensional das formas agudas —  fascismo, nazismo, militarismo — com que a burguesia, em escala
 mundial, definia o pânico a que fora levada pela crise e pela  ameaça do socialismo triunfante na Rússia anos antes. O curto  período de liberdade, iniciado nos fins de 1930, com as mudanças  na composição do poder, permitiu aos trabalhadores a retomada  de suas formas de organização e de luta. Na contraditória e osci lante linha política do Estado, na sua intervenção ambígua no  processo, o movimento de 1930 deixaria claro o seu aspecto con servador que, nele, não sendo único, seria preponderante e não  cessaria de crescer, naquele decênio. O balanço entre a repressão  violenta e o paternalismo frouxo permitiu assegurar, na linha in coerente, uma estabilidade transitória que criou as condições para  consolidar reformas destinadas a afirmar o avanço capitalista aqui.  O chamado Estado Novo, realmente, atrás de sua fachada policial  e obscurantista, definiu o avanço da burguesia composta com o  latifúndio e com o imperialismo, contendo, ao mesmo tempo, o  avanço e as reivindicações do proletariado. O movimento de 1930  desvenda o seu conteúdo com o Estado Novo. Com este, a burgue sia realizava a sua opção. A correlação de forças, externa e inter namente, permitiria esse lance singular. Sob o pesado disfarce da repressão policial, com o resguardo  de um aparelho militar intensamente mobilizado ideologicamente,  o Estado passaria, agora, a articular reformas que assegurassem o  avanço das relações capitalistas e até o acelerasse. Isso derivava,  conseqüentemente, da hegemonia burguesa, permitindo conter o  proletariado, seja pelas ações policiais e repressivas, seja pelos arti fícios a que se amoldava uma legislação pretensamente trabalhis ta, na verdade montada para subordinar o trabalho às condições  que o Estado burguês impunha. O movimento de 1930, nessa fase  final de seu desdobramento, emergindo da confusão aparente, ge rada pelo pânico mas também alimentada como forma de intimi dação para acobertar o essencial do processo político, mostrava ser  uma etapa da revolução burguesa no Brasil, uma etapa operada —  ao contrário dos modelos históricos clássicos — contra o proleta riado. Os princípios do reformismo que marca a legislação, na épo ca, definem uma posição nacionalista tíbia, que avança na fase de  crise do imperialismo para declinar depois. Tais princípios desti nam-se a facilitar a capitalização, a reter no interior parcela maior  da acumulação, a utilizar o mercado interno, conciliando embora
 com o seu estreitamento pelo latifúndio feudal, como elemento  propulsor dele. No desenvolvimento histórico brasileiro, trata-se de  uma fase em que a capitalização tinha condições para conviver  com o latifúndio, que configurava a área pré-capitalista aqui. São  princípios que asseguram à burguesia a solidariedade de parcelas  importantes da pequena burguesia, que participa agora das dis cussões políticas. A supressão dos tributos internos que oneravam  as trocas entre as diversas áreas corresponde à ampliação e unifi cação do mercado interno. Medidas diversas, na ordem tributária,  na ordem financeira, na ordem trabalhista somam efeitos para mar car esse nacionalismo econômico que se fundamenta muito no papel  do Estado. É uma fase em que a questão nacional é trazida a  primeiro plano, com sacrifício da questão democrática. A burgue sia não está interessada nesta mas naquela. A substituição de importações, traço essencial da acumulação  na época, tem a marca do referido nacionalismo que, no fim da  década, encontra na política petrolífera, então apenas em esboço,  um ponto que adiante será polêmico mas decisivo. A construção da  usina de Volta Redonda será outro ponto importante: trata-se,  agora, de indústria pesada, de bens de produção, isto é, de uma alteração qualitativa profunda. A interferência do Estado e o ad vento do planejamento assinalam a formação do setor estatal da  economia, que terá papel eminente na acumulação. Já a legislação  sobre a exploração de minérios e uso das fontes de energia —  fixadas no Código de Minas e no Código de Águas, de 1934 — es tabelecia condições nacionalistas inequívocas e a tendência passa ria a ser a de encarar as fontes de energia como dependentes da  ação do Estado em sua exploração. A recuperação dos efeitos da crise de 1929 aqui assinalam a  vitalidade do mercado interno em ampliação e o peso da acumula ção ascendente. Os referidos efeitos já se poderiam considerar su perados em 1933. Em 1935, o valor total da produção industrial  ultrapassava o nível de 1929 em 28% e, em 1940, em 61%; a  taxa média anual de crescimento da produção industrial era de  4,4%. Por outro lado, embora a economia de exportação estives se estagnada, a produção agrícola para o mercado interno cresceu  da ordem de 40%, entre 1929 e 1937. A importação, em 1931,  caiu em mais de 50% em relação a 1929, enquanto a indústria  criava turnos noturnos de trabalho para atender o mercado inter
 no. No período de 1930 a 1939 foram criadas no Brasil 12.232  novas empresas, quase o triplo das que surgiram de 1920 a 1929.  Estava criada, em suma, uma das premissas do capitalismo: a  acumulação de capitais no nível para isso exigido naquela etapa  histórica. Proletariado Apreciado esse processo, de suas origens na segunda metade  do século XIX, passando pelas significativas fases de mudança do  fim desse século e da crise da 1 “ Guerra Mundial ao movimento  de 1930 e evolução posterior, o quadro se completa com o proces so histórico simultâneo de formação do mercado de trabalho e  estabelecimento do trabalho assalariado — a segunda premissa.  A separação ent-re os dois processos, neste estudo, é recurso de  ordem didática, voltada para a clareza da exposição. Na realidade,  trata-se de processo único. O início desse processo pode ser data do de 1850, quando o tráfico negreiro foi abolido. O trabalho,  no Brasil, apenas com um quarto de século de vida autônoma,  vinha da fase colonial, que a autonomia não alterou, como empre sa que foi da classe dominante senhorial, e compreendia a massa  escrava de origem africana e de seus descendentes e contingentes  de servos dispersos no território, nas diversas ilhas de povoamen to e de produção. Claro está que o peso maior do trabalho repou sava na massa de escravos; ela respondia pelo maior volume e pelo  maior valor da produção destinada ao exterior. Embora as parcas  e pouco confiáveis estatísticas da época não esclareçam, parece  que o trabalho das áreas feudais respondia pela produção para  consumo interno, e não majoritariamente, e pela de subsistência. A segunda metade do século XIX assiste a decomposição do  escravismo e a lenta criação do mercado de trabalho. A suspensão  do tráfico prenunciou aquela decomposição: ela importou na clara  advertência do fim de regime e foi alerta que a classe dominante  compreendeu com clareza, preparando-se para a mudança. Com  uma secular resistência, naturalmente, primeiro na aceitação de que  a sentença era inexorável; depois, com a tendência de encontrar  saídas menos radicais, entre elas a da gorada tentativa para im portação de trabalhadores chineses, que para aqui viriam, necessa
 riamente, para a servidão feudal; finalmente com uma política ob jetiva de aceitação do trabalho livre, com o financiamento da  imigração. Nesta última fase, acicatada pelas mudanças que prelu diavam ou geravam relações capitalistas, a referida classe adotou  uma posição em que o realismo foi a nota principal, presidida pelo  rigoroso cuidado em preservar a parcela absolutamente majoritá ria de que ela desfrutava na partilha da renda. As mudanças te riam de ser estabelecidas na obediência ao primado desse predo mínio. A lavoura do café teve início na província do Rio de Janeiro,  na terceira década do século XIX, e nele teve predomínio até 1880,  véspera da abolição e da república, com apogeu justamente em  1850, quando o tráfico negreiro foi abolido. O fim do século  assiste a passagem dessa lavoura às províncias de Minas e de São  Paulo, principalmente esta, com produção predominante depois  de 1880 e por vários lustros do século XX. O Brasil forneceu 20%  do total do café comercializado, em 1825; 40%, em 1850; 60%,  em 1890. Em valor, 18% das exportações brasileiras, entre 1820  e 1830 — com 30% do açúcar; 50%, entre 1851 e 1866 —  com 21% do açúcar; 65%, em 1890 — com 6% do açúcar. A  curva desses números explica a diversidade de posições, no pro cesso de liquidação do escravismo e estabelecimento do trabalho  livre, entre as áreas cafeeira e açucareira. A expansão da lavoura  do café e a ascensão exportadora, em volume e em valor, marcam  o avanço da acumulação interna de capitais: o café é a fonte ori ginária dessa acumulação de que se vai gerar o capitalismo bra sileiro. A expansão da lavoura cafeeira para Oeste é acompanhada  pelo avanço tecnológico: o advento da máquina de beneficiar é  paralelo ao avanço das ferrovias. O café tem fome de terras novas;  nelas, a população escrava cresce 235%, entre 1854 e 1886. O  alto preço do café permite utilizar nessa expansão os escravos:  africanos, até 1850, deslocados de outras províncias, depois. Esse  deslocamento interno da escravaria se refletirá na criação do mer cado de trabalho, quando o processo de mudança se acentuar. O  café, aliás, funciona aqui como o algodão funcionou nos Estados  Unidos, quanto ao trabalho escravo. Em 1800, Brasil e Estados  Unidos têm o mesmo número de escravos: um milhão; até 1850,  quando da extinção do tráfico negreiro, o Brasil importou 1.600.000
 escravos, o triplo dos Estados Unidos; mas em 1870 o Brasil dis punha de 1.500.000 escravos e os Estados Unidos dispunham  de 4.000.00. Aqui e ali o escravismo engendrava as suas próprias  mudanças: ao mesmo tempo que fornecia as bases materiais da  expansão econômica, constituía fator de emperramento, resistindo  às mudanças. Mas esse processo dialético de sua liquidação, aqui  e lá, assume condições diferentes. Lá, o desenvolvimento capita lista no Norte levará à guerra em que o Norte ocupa o Sul. Esse  desenvolvimento capitalista encontrou grande estímulo nas possi bilidades de acesso à terra, nos Estados Unidos. Aqui, a Lei de  Terras, de 1850 — note-se: é a data da suspensão do tráfico ne greiro —, proíbe a aquisição de terras devolutas a não ser por  compra, isto é, pressupõe uma estrutura capitalista plenamente ins talada. A área pré-capitalista, aqui, vai entravar consideravelmen te a passagem ao trabalho livre. O recrutamento de escravos tinha no tráfico africano e, de pois de 1850, no tráfico interno a sua fonte principal. Havia uma  fonte secundária: a reprodução da espécie. Ao contrário do que  se deu nos Estados Unidos, ela não foi aqui explorada de forma  sistemática, embora tenha existido, nas condições normais, nas pro priedades agrícolas. A situação da massa de escravos e a impossibili dade de continuar a suprí-la com novos contingentes fizeram com  que o grande problema brasileiro no século XIX tenha sido o da  transição para o trabalho livre. Quando o número de trabalhado res livres foi maior do que o dos escravos, o escravismo anuncia  o seu fim próximo. Há que acudir, então, com a solução do pro blema do trabalho. A preocupação com ela, naturalmente, surgiu  com a suspensão do tráfico negreiro, mas a guerra com o Paraguai,  em 1864, absorveu as atividades do governo e interrompeu a dis cussão do problema. A guerra, aliás, afetou seriamente o regime  de trabalho escravo, com as exigências do recrutamento e as con cessões feitas aos senhores para a liberação de escravos destinados  às fileiras. Ainda aqui a estatística é precária, mas é razoável afirmar  que a guerra foi feita, do nosso lado, à base da contribuição dos  libertos. Se a guerra interrompeu o andamento das discussões, in clusive a dos projetos de Pimenta Bueno, já em 1867 o Conselho  de Estado voltava as suas atenções para o problema. O ano de 1870  assinala o fim da guerra com o Paraguai, a fundação do Partido
 Republicano, mas também, aproveitando a crise italiana, o início  da imigração organizada, que será preocupação constante, visando  a criação do mercado de trabalho. A necessidade de estabelecer  legislação para isso está presente na atenção das autoridades. Sem pre, é claro, dentro do conceito de que as leis reforçam e legitimam  as relações e as lutas de classe, buscando a aceitação, e também  denunciam projetos e desejos que a sociedade não pode desconhe cer. Colocada entre a resistência dos escravos ao regime, de um  lado, e os interesses dos senhores, de outro lado, aquelas autori dades voltam as suas preocupações para as duas saídas: incentivar  a imigração, de um lado, e regular a abolição do escravismo, de  outro lado. Trata-se da elaboração de uma estratégia para assegu rar a transição pacífica ao trabalho livre e de criar o mercado de  trabalho: a força de trabalho como mercadoria. Se os seus antecessores não tinham tido condições para o enca minhamento da questão, Paranhos chega ao governo com um pro grama em que se destacam quatro pontos: o do sistema eleitoral,  o da administração da justiça, o da Guarda Nacional e o do elemen to servil, como era costume dizer na época. Foi a 15 de maio  de 1871 que entrou na Ordem do Dia, na Câmara dos Deputados,  o projeto de lei sobre o assunto. Como foi observado e é fácil  verificar pela leitura dos anais das duas casas do legislativo impe rial, os debates “foram muito mais violentos” que o habitual, com  o emprego de linguagem áspera e descomedida. Isso dá a medida  das resistências que o projeto do gabinete Paranhos encontrou. E  essa resistência importa em constatar a existência de forças políti cas conservadoras, infensas a qualquer modificação essencial na legislação que regulava o trabalho em geral e o do escravo em  particular. Nos debates, Paranhos mostrou aos oponentes do projeto  que eles careciam de razão. Frisou que o projeto visava, precipua-  mente, “zelar pelos verdadeiros e legítimos direitos dos proprietá rios agrários”.2 2 Esse cuidado estava condicionado à violência de linguagem da  oposição ao projeto. José de Alencar que, com Perdigão Malheiro, 22 Miguel P. do Rio-Branco, Centenário da Lei do Ventre Livre  (Rio de  Janeiro, 1976), p. 14. O trabalho citado, além do texto integral da lei,  apresenta os projetos, emendas e propostas, tudo relacionado com o seu  andamento, e a relação de senadores e deputados que participaram, pró  ou contra, na sua discussão e na sua votação.
 esteve à frente dessa oposição, e se destacou nela pela aspereza  de suas manifestações, foi dos mais descomedidos e afirmou mes mo que o projeto, se transformado em lei, provocaria a guerra  civil no país. Foram cinco meses de acesos debates: a 28 de se tembro o projeto foi consagrado em lei — seria a chamada Lei  do Ventre Livre. Ao contrário do que em geral se pensa, ela não  estava voltada para assegurar a liberdade do escravo, mas para  assegurar a autoridade do senhor. Representou, na verdade, o passo  mais importante para, diante da ameaça que o quadro social apre sentava e a pressão das necessidades que a classe dominante exer cia, estabelecer a estratégia política para operar a transição pacífi ca ao trabalho livre, criando o mercado de trabalho que a estrutura  vigente da produção exigia. O traço principal da iniciativa de Para-  nhos em 1871 consistia em que, naquele momento e pela primeira  vez, se traçava uma política, isto é, realizava-se a intervenção do  Estado no mercado de trabalho, estabelecendo as condições de seu  funcionamento. A lei reafirmava, convém repetir, a autoridade dos senhores.  Não libertava os escravos, criava condições para isso. Colocada no  palco, numa fase de agitação e quando o fim do escravismo estava  à vista, debilitava a resistência da escravaria e freava o ímpeto do  movimento abolicionista que apenas se iniciava. Visava, particular mente, quando as fugas de escravos se avolumavam, controlá-los  e fixá-los. Criava, para isso, o registro de escravos e o Fundo de  Emancipação: os nascituros eram declarados livres mas ficavam  sob os cuidados dos seus senhores até os oito anos, quando estes  ou receberiam mais cem mil réis por cabeça ou continuariam com  a propriedade do escravo nascituro até que este completasse 21  anos. Isso importava em assegurar ao proprietário de escravos que  ele poderia manter os que nascessem a partir de então, 1871,  até 1892, isto é, quatro anos além da data em que foi declarada,  depois, extinta a escravidão, por força do andamento do processo  histórico. O registro de escravos, na verdade, previsto para o ano seguin te, 1872, demorou mais de um ano para ser cumprido e foi sempre  burlado. Relatórios do Ministério da Agricultura, logo adiante, mos travam que a iniciativa privada libertara seis vezes mais escravos  do que o Estado. Em 1884, depoimento de Rui Barbosa mostrava  que os recursos do Fundo de Emancipação haviam libertado menos
 de 20.000 escravos; ainda que tais recursos fossem elevados cinco  vezes, só libertariam 120.000 escravos até o fim do século. Em 1879, a lei de locação de serviços regulou o trabalho livre  e os contratos, estimulando a imigração: o Estado, na sua estra tégia, preparava, com a imigração, um mercado de trabalho de sua  conveniência. Passava a assumir, então, as despesas com os imi grantes, antes a cargo dos particulares. Livres estes de tais encar gos, a imigração se desenvolveu rapidamente. Ainda em 1879, fi cara proibido o tráfico interno de escravos, que era a fonte em  que se abastecia a lavoura do café em sua expansão. Em 1872,  momento em que começa a vigorar a Lei do Ventre Livre, a popu lação do país era de 11 milhões de habitantes; 9,5 milhões eram  livres. Foi a época em que começou o surto da borracha, contri buindo para o aumento do valor da exportação. Nessa época, a  expansão cafeeira criava e desenvolvia a rede ferroviária do cen tro-sul, estimulava poderosamente o comércio externo e o comér cio interno e gerava o sistema bancário. Estabeleciam-se condições  para o alastramento das relações capitalistas e o escravismo tinha  os seus dias contados. A preocupação residia em como liqüidá-lo. Em setembro de 1885, com a iniciativa gorada de Dantas,  retomada no gabinete de Saraiva-Cotegipe, surgiria nova medida,  dentro da estratégia adotada para criação do mercado de trabalho:  a lei que libertava os sexagenários. Ela estabelecia novas normas  para o registro de escravos, agora considerando a idade deles, e  aumentava o Fundo de Emancipação: os senhores que optassem  pelo trabalho livre poderiam reter o liberto por cinco anos; obri gava o liberto a residir por cinco anos no local onde trabalhava;  singularmente, previa, como limite de duração do regime escravis ta, para daí a 13 anos, isto é, para 1898. Na essência, a nova lei  declarava livres os maiores de 60 anos, com a obrigação de traba lharem mais três anos para os seus senhores; eram dispensados  do serviço se tivessem mais de 65 anos ou pagassem cem mil réis  ao senhor. A lei foi aprovada por 71 votos contra 17; a do Ventre  Livre o fora por diferença muito menor: o número dos que a apro varam não chegava ao dobro dos que a ela se opunham. Era o  processo histórico em curso, que modificava o parecer dos repre sentantes da classe dominante. As fugas de escravos cresciam, o  movimento abolicionista se desenvolvia. As previsões da época eram  de dez anos de vigência ainda do escravismo. A lei de locação de
 serviços, de 1879, como a do Ventre Livre e a dos sexagenários  estabeleceram as condições para o funcionamento do mercado de  trabalho. A chamada abolição, em 1888, não teve de entrar nesse  assunto: declarou a escravidão abolida, tão simplesmente. Os debates dessa legislação, ao longo do tempo, nas duas casas  do legislativo imperial, revelam sempre a preocupação não com a  sorte dos escravos mas com os prejuízos dos senhores: é uma le gislação da classe dominante, na preservação dos seus interesses.  A sucessividade dessas leis desmobilizava transitoriamente o mo vimento abolicionista e a luta dos escravos pela liberdade. Tal  legislação estabeleceu sempre condições ótimas para os que com pravam força de trabalho. Constituía, também, um estímulo à imi gração: a coexistência com o trabalho escravo fora sempre desen-  corajadora para os imigrantes. O processo de liquidação do trabalho  escravo, nas condições estabelecidas pela classe dominante, pro porcionou, como resultado final, a existência permanente de oferta  considerável de força de trabalho, buscando inserir-se no processo  produtivo, constituindo numeroso exército de reserva. O monopó lio da terra, por outro lado — elemento constante em nossa his tória, persistindo até os dias atuais —, representou sempre o mais  poderoso entrave à libertação do trabalho no Brasil: aqui a força  de trabalho é sempre barata.2 3 Claro está que, como exceção, o trabalho assalariado existiu  aqui desde os tempos coloniais. É a sua utilização em massa, como  forma predominante nas áreas mais desenvolvidas, que define no vas relações e é processo estreitamente ligado ao da liquidação  do escravismo. O peso do escravismo e da servidão foi — e ainda  existem resquícios dele — tão grande que o trabalho assalariado 2i “A abolição não era uma solução econômica, desde que não havia con dições para que o mercado de trabalho absorvesse a massa antes escra vizada. Era uma solução política, que correspondia a liquidar um insti tuto anacrônico, sem prejuízo para a classe proprietária, tomada em  conjunto. Tanto não houve, em conjunto, o prejuízo, que as previsões  catastróficas não se realizaram. O fardo da escravidão foi largado na  estrada pela classe dominante. Tornara-se demasiado oneroso para que  ela o carregasse” (Nélson Werneck Sodré, op. cit.,  p. 253). Neste estudo,  o escravismo não é apreciado nos seus aspectos políticos ou éticos, mas  apenas em suas relações com o surgimento da forma capitalista de pro dução e a formação do mercado de trabalho, com o salariato.
 abrangia quase tão-somente imigrantes, até o movimento de 1930.  A forma como o escravismo foi liquidado, de maneira a atender  precipuamente os interesses da classe dominante, teve como con-  seqüência nefasta a enorme dificuldade do mercado de trabalho  estreito do tempo para absorver os 700.000 libertos, isto é, de sempregados, que não dispunham de qualquer aptidão para outra  forma de trabalho que não a de arar e colher e que, entretanto,  enfrentava o problema do acesso à terra, que lhes era vedado pelas  condições que regulavam a propriedade dela. Daí a massa imensa  de vagabundos — no sentido de andejos — que percorre as estra das, gravita para a periferia das áreas urbanas e permanece sem  trabalho, e daí a idéia, peculiar a uma sociedade de classes, de que  eles, e particularmente aqueles rotulados pela cor, tinham aversão  do trabalho como condição genética. Esse preconceito fez parte  da trágica ideologia de uma classe que situava o trabalho físico  como aviltante e que veria, desde os fins do século XIX, a “ariani-  zação” da massa de trabalho como condição imprescindível ao pro gresso do país. Quando o número de pessoas sem fontes de exis tência e até de domicílio cresce, como ocorreu nos fins do século  XIX, torna-se evidente que a estrutura econômica do país está  gravemente enferma.2 4 Por meio século, entre 1880 e 1930, chegaram ao Brasil quatro  milhões de imigrantes. A maior parte destinava-se à área do café 24 O fenômeno, ocorrido nos fins do século XIX, quando da formação do  mercado de trabalho, como dele necessitava a classe dominante, come çando pela liquidação do escravismo, de massas errantes, que não encon tram condições para permitir a sua subsistência e até o domicílio, repete-  se, em nossos dias. É, por assim dizer, um processo continuado, um  fenômeno constante. Com o desenvolvimento deformado do capitalismo  aqui, particularmente após 1964, com a invasão dos investimentos estran geiros e as condições de superproteção que receberam, o serviço da dívida  externa e o comércio desigual somando efeitos à remessa de lucros, assume  proporções gigantescas e até alarmantes. O crescimento da miséria, com  as grandes cidades sitiadas por áreas de população faminta e desempre gada, as migrações internas também crescentes, e a incapacidade do mer cado para absorver essa extraordinária oferta de força de trabalho, de nuncia uma economia cancerada por males profundos e estruturais.  Resolvê-los, como vem sendo tentado, por medidas paliativas, que aten dem apenas aspectos conjunturais, vem sendo uma aventura política cujo  fim será fatalmente o desastre.
 em expansão. O trabalhador nacional, que « o  mercado interno mal  absorvia, era utilizado apenas nas tarefas mais rudes, como o des bravamento e o desmatamento de áreas novas. Estas, entretanto,  incorporavam-se aos latifúndios existentes: as zonas pioneiras não  corresponderam a uma alteração na propriedade da terra. Quando  o Estado assumiu a responsabilidade das despesas com a imigração,  esta se desenvolveu aceleradamente. Aliás, realmente, os senhores  de terras, responsáveis por tais despesas, que antecipavam, reti nham os trabalhadores estrangeiros seja por contratos leoninos,  seja por condições de trabalho que pertenciam à servidão: o receio  deles era de que esses trabalhadores não-escravos, chocados por  tais condições, abandonassem as lavouras, deixando sem desem bolso os donos das terras que os haviam contratado. Livre desse  ônus e dessa ameaça, o latifúndio explorou o trabalho do imigran te à vontade. Este, realmente, já chegava ao mercado de trabalho  despossuído de bens, isto é, “livre”. Esse despojamento de bens  era continuado, no caso do trabalhador brasileiro: é um processo  regular, que se repete até os nossos dias. Trata-se de uma acumula ção primitiva que atravessa os tempos. A imigração começou a ser subsidiada pela província de São  Paulo, em 1881, antes, portanto, da abolição, dez anos depois da  Lei do Ventre Livre, que regulou o processo final do escravismo,  dois anos antes da lei sobre locação de serviços. O governo central  dispendeu com a imigração, entre 1881 e 1917, cerca de 181.000  contos de réis; a província de São Paulo, cerca de 68.000. En tre 1827 e 1919, entraram nessa província mais de 1.800.000 imi grantes; pouco menos de um milhão foram subsidiados. Só entre  1887 e 1906, chegaram a São Paulo, 1.200.000 imigrantes. Se gundo as estatísticas, entraram no Brasil, entre 1908 e 1920, mais  de um milhão de imigrantes. A população do país evoluía rapida mente: em 1906, a da província de São Paulo era de 3.000.000 de  habitantes. No Brasil, em 1872, quando da Lei do Ventre Livre,  havia 10.000.000 de habitantes; passaram a 14.000.000, em 1890;  a 17.000.000, em 1900; e a 31.000.000, em 1920. A população  escrava passou de 1.150.000, em 1823, a 1.500.000, em 1873.  Quando da abolição, mal atingia 700.000. A percentagem da po pulação escrava sobre a população livre decresceu rapidamente,  na segunda metade do século XIX, passando de 31%, em 1850,  a 15%, em 1872, e a 5%, em 1887. Parte da população rural,
 atirada à indigência, tinha condições mínimas para se transfor mar em camponesa. A derrocada do escravismo amplia o contraste entre os dois  sistemas econômicos, o da economia feudal e o da pequena econo mia camponesa, concorrentes com o sistema capitalista na infância  para a utilização do excesso de força de trabalho no mercado. A  existência sempre, consideravelmente agravada com a abolição, de  massa muito numerosa de pessoas que haviam perdido suas fontes  habituais de subsistência, mais o deslocamento territorial da ri queza, deixando em abandono extensas áreas, geram a multiplicação  e a dispersão de formas pré-capitalistas de exploração. A separação  do produtor dos meios imediatos de produção, fonte do processo  de acumulação primitiva, é um fenômeno de enorme envergadura,  pois.2 5  A coexistência, no Brasil, de diversas formas econômicas  mistas, combinando elementos das relações de produção velhas e  novas, a convivência do impulso renovador com as estruturas arcai cas resistentes à mudança criaram, na realidade, e criam para o  historiador, grandes dificuldades para a compreensão desse com plexo processo que foi a gestação de relações capitalistas aqui. De  qualquer forma, assim se operou a passagem ao trabalho assalaria do no país. A conjugação dele com o crescimento da riqueza de  uma estrutura em que as relações monetárias ganhavam destaque  apresenta como realizadas as premissas necessárias ao aparecimen to e desenvolvimento do capitalismo. E, com isso, da geração e do  desenvolvimento da burguesia, de um lado, e do proletariado, de  outro lado. A burguesia, aqui, pois, tendo surgido na época do capital  comercial e do capital usurário, na fase mercantil, só ampliou a  sua presença a partir da segunda metade do século XIX. Esse pro cesso de ampliação, decorrente daquele que presidiu o crescimento 2 5  Nossa historiografia, ainda a econômica, precisa e principalmente esta,  não se interessou jamais pelos processos essenciais do nosso desenvolvi mento: o do investimento inicial, como primeiro exemplo; o da transfe rência de efeitos das crises cíclicas do capitalismo aqui, como outro  exemplo. Assim, o processo de surgimento e crescimento, acelerado em  determinadas etapas, do despojamento dos bens dos trabalhadores, conver tendo-o em “livres”, isto é, com a única saída do trabalho assalariado,  tem sido continuadamente esquecido também. E esquecido por conveniên cia de uma historiografia ideologicamente condicionada.
 das relações capitalistas aqui, conheceu diversas etapas. Classe su bordinada à superioridade da dos senhores de terras, por longo  tempo, realizou parte das suas tarefas e definiu a sua revolução  na medida em que crescia em poder político, até ter participação  majoritária e caracterizada no controle do Estado. Foi uma revolu ção sem grandes lances, ascendendo por patamares e marcando  sucessividade em suas conquistas. Seu início, quando as mudanças começam a tornar-se claras,  pode ser marcado pela etapa preliminar dos fins do século XIX,  mas principalmente pelo movimento de 1930. A partir deste, a  revolução burguesa está definida e continuará avançando. O seu  problema essencial consiste na coexistência com o latifúndio feu dal, suporte da classe dos senhores de terras, de um lado, e com  o imperialismo, de outro lado. Tem com ambos contradições evi dentes mas, na sua debilidade, convive com eles, associa-se a eles,  submete-se a eles, na medida em que se vê ameaçada pelo seu  inseparável acólito, o proletariado. Aceita, pois, a resistência do  Brasil arcaico e hesita romper com ele. É uma classe que realiza  a sua revolução deixando incompletas as suas tarefas específicas. Conclusões A ausência de passado feudal permitiu aos Estados Unidos  operar, no mesmo movimento, a autonomia política e a revolução  burguesa, fugindo ao modelo clássico. Em nosso tempo, povos afri canos operam a autonomia e a passagem ao socialismo no mesmo  movimento, embora, quanto a este, apenas em seus preliminares.  No Brasil, a autonomia, herdando escravismo e feudalismo, não  tem traço algum de revolução burguesa. No fim do século XIX,  a república assinala um avanço burguês na vertente mais conser vadora. O movimento de 1930, condicionado pela crise de 1929,  assinala, depois, a ação violenta para acelerar e aprofundar a re volução burguesa, mantendo o latifúndio e conciliando com o im perialismo. Entre 1930 e 1943, passando pelo Estado Novo e pela  2.a Guerra Mundial, e compactuando com a “guerra fria”, opera-se  uma fase de acentuado reforço e de novo impulso acelerador do  capitalismo e da burguesia para, depois de 1954, conciliar a ala vanca do núcleo de capitalismo estatal com uma forma de capita
 lismo estatal monopolista, sob controle das forças conservadoras  internas e das forças neocolonialistas externas. O “desenvolvimen-  tismo”, então adotado como norma de ação, vai desembocar, final mente, na ditadura esboçada com o golpe militar de 1964 e con solidada em 1968, propiciando o chamado “modelo brasileiro de  desenvolvimento”, com a participação ativa e decisiva das multi nacionais, modelo que, vinte anos depois, prova a sua inadequaçãp  ao desenvolvimento do país e cujos efeitos constituem fator de re tardo desse desenvolvimento. Essas etapas marcam as formas que, sucessivamente, a revolu ção burguesa assume aqui. Elas continuam e renovam o caráter  contraditório do nosso desenvolvimento capitalista, as vias inco-  muns que ele percorre, as diferenças que estabelece em relação  aos modelos clássicos, com violação do desenrolar por assim dizer  normal das etapas históricas, terminando por gerar a situação de sigual do Brasil no sistema geral da divisão capitalista do trabalho  em termos mundiais. Os limites quase sempre imprecisos entre as  formações e aquilo que se convencionou conhecer como “contem-  poraneidade do não coetâneo”, isto é, a coexistência no espaço  de formações distanciadas no tempo, tornaram difícil o desenvol vimento do nosso capitalismo e marcaram profundamente a bur guesia aqui. Nosso escravismo não conheceu, na passagem ao feu dalismo — que não foi sempre a regra — a intermediação romana  do colonato. Foi esmagado pela passagem direta à servidão ou ao  capitalismo ou conviveu com um e outro. Nosso capitalismo não  nasceu das ruínas feudais que, aqui, só vicejaram em determinadas  áreas, secundárias em sua maior parte, de início, ou foram apro veitadas pelo capitalismo nascente, com a captação das formas pré-  capitalistas de acumulação. Nas lutas políticas posteriores ao movimento de 1930, isto é,  a partir da etapa em que a burguesia já se destacava como hege mônica no processo, foram freqüentes e repetidas as acusações,  aos seus mais destacados dirigentes, de responsáveis por uma po sição de conciliação com o latifúndio ou com o imperialismo ou  com ambos. A conciliação, entretanto, tinha causas objetivas e até  históricas, não derivava de traços psicológicos de tais dirigentes. A  sociologia acadêmica, em sua confusão conceituai, gerou a catego ria “populismo” para caracterizar a política que a burguesia de senvolvia, desde 1930, sonegando, com isso, não só aquelas raízes
 históricas como o largo painel da luta de classes. Atrás da conci liação estava sempre a pesada herança da compatibilidade e coe xistência do nosso capitalismo com as formas pré-capitalistas inter nas e com o imperialismo. O chamado populismo foi, na realidade,  a forma como a burguesia brasileira buscou apoio no proletariado,  mais do que no campesinato, pela desimportância política deste,  para poder realizar as suas tarefas. Tal aliança, que caracterizou a  revolução burguesa clássica, esteve sempre ausente aqui. E o Bra sil arcaico resistiu sempre, até com manifestações de força, a essa  busca do apoio, no seu reacionarismo secular. E a falta desse  apoio, por outro lado, definiu sempre a debilidade da burguesia  brasileira. A confusão conceituai acadêmica, assim, adotava, supon-  do-se ultra-revolucionária, a posição conservadora e até reacionária  que o sociologismo tem mostrado em nosso país. Este estudo se limita, propositadamente, à formação do capi talismo no Brasil e da burguesia. Essa formação se encerra, pra ticamente, com o movimento de 1930, prolongando efeitos até 1945,  outros até 1964. A etapa posterior, quando diferenças essenciais  se apresentam, e de que o “desenvolvimentismo” e o chamado  “modelo brasileiro de desenvolvimento” são processos de destacada  importância, afetando o capitalismo e a burguesia aqui, fica para  outro estudo. É uma outra história, como diria Kipling.
 VARGAS E O DESENVOLVIMENTO   DO CAPITALISMO NO BRASIL
 INTRODUÇÃO Os conceitos de desenvolvimento e de subdesenvolvimento têm  sido muito falseados e por isso mesmo incompreendidos, no Brasil.  Por desenvolvimento entendeu-se, a certa altura, o crescimento  quantitativo denunciado por índices numéricos, fornecidos pela  estatística econômica, alguns bastante discutíveis. É interessante  recordar que os planos econômicos — e houve alguns deles, ao  longo do tempo — sempre se fundamentaram em tais índices,  apontando, invariavelmente, para o crescimento da produção em  determinados setores. Jamais esses planos incluíram a preocupação  com os problemas que, efetivamente, podem servir para dimensionar  o enriquecimento nacional. A redução da mortalidade infantil, por  exemplo, ou o crescimento do número de hospitais e de escolas.  Jamais houve plano que estimasse, dentro de determinado e curto  ou longo prazo, o número de escolas a construir, o número de  leitos hospitalares, os dispêndios com a pesquisa técnica ou sani tária. É que tais planos eram abstrações, isto é, desconheciam,  deliberadamente, o povo brasileiro. E por isso mesmo limitavam-se  ao nível meramente econômico. O conceito de subdesenvolvimento foi sempre usado como  forma para mostrar as nossas mazelas, desconhecendo as suas  causas. A bibliografia do subdesenvolvimento cresceu desmedida mente pois o conceito, que falseia a realidade e sonega os seus  motivos, esteve sempre nas cogitações dos economistas e dos polí ticos, aqui e fora daqui. Foi discutido em todas as línguas e estu dado em todas as universidades. Apareceram especialistas do sub desenvolvimento. Como apareceram políticos que fizeram do desen volvimento a bandeira com que se apresentaram aos eleitores e aos  povos. O desenvolvimentismo tornou-se, no Brasil em particular e  a certa altura, a fórmula mágica que anunciaria os novos tempos.  Mas foi então encarado sob o aspecto superficial citado de mero  crescimento de índices, englobando a população como dado empí rico, como se ela fosse composta de uma só classe. Claro que o
 desenvolvimentismo foi uma estratégia da burguesia, a certa altura  do processo histórico brasileiro. Ele não aparece neste estudo. O que aparece aqui é o estudo  do avanço das relações capitalistas no Brasil, na época de Vargas,  isto é, na época em que a sua figura ocupava o centro dos aconte cimentos. Mais precisamente, a partir do movimento de 1930 e até  o seu suicídio, em 1954. Cada época, naturalmente, gera as figuras  que, nela, encarnam as contradições em processo, as positivas como  as negativas. Vargas encarna, no Brasil, a época do desenvolvimento  das relações capitalistas. Com uma característica: esse desenvolvi mento foi, então, dirigido, orientado, mais do que planejado. E  nele esteve presente, com destacada importância, a personagem  central do maior dirigente que a burguesia brasileira gerou. E que  ela deixou desaparecer de forma tão amarga, numa fase tão difícil.  O estudo do processo, muitas vezes subterrâneo, prevalece, aqui,  sobre o papel das pessoas. Mas é evidente que a personagem cen tral foi Vargas, com a sua visão desse processo e a forma como  procurou intervir nele por atos de vontade. A fase histórica que ficou conhecida como “Época de Vargas”,  realmente, assinalou o tempestuoso crescimento das relações capita listas no Brasil. Ela é aqui estudada com referência à fase anterior,  em que predominavam relações pré-capitalistas, referências indis pensáveis à clareza da exposição. E dispensou, aqui, aquilo que se  seguiu à queda de Vargas e a sua morte trágica. O que se seguiu,  realmente, assinalou, em nossa história, as tortuosidades do desen volvimentismo, isto é, a conquista de determinadas metas numéri cas sem alteração das estruturas arcaicas. O período Kubitschek,  no Brasil, assinalou, realmente, uma mudança singular de rumos e  marcou os alicerces do que, depois, viria a ser o chamado “modelo  brasileiro de desenvolvimento” ou “milagre brasileiro”, como o  imperialismo, gostosamente, fixou. O período Kubitschek foi, sem  dúvida, o antípoda do período Vargas, foi a fase de transição em  que se buscou, de maneira determinada, gerar um modelo anti-  nacional de desenvolvimento. Busca que, em seu início, foi ainda  compatível com formas políticas democráticas, nos limites brasilei ros da época, mas logo exigiu formas ditatoriais de governo, com  a implantação de uma ditadura obscurantista, em que os ricos fica
 ram mais ricos e os pobres foram atirados a níveis de carência  inéditos aqui. O estudo preocupa-se com aspectos fundamentais do processo  para, no último capítulo, ocupar-se dos acontecimentos de sua fase  final, em que o suicídio de Vargas assinala a grandeza do problema  e a dimensão das torpezas articuladas para estabelecer a plenitude,  com Kubitschek, daquilo que viria a ser apelidado “nova .classe”,  isto é, uma burguesia recente, ávida, apressada em construir for tuna, despedaçando obstáculos e irrefreável na busca do lucro. A  burguesia tradicional, longamente preparada, desaparece do palco,  cedendo lugar a essa nova burguesia, de características inteiramente  diversas. A burguesia que, finalmente, chega à conclusão de que a  tolerância com o latifúndio e a aliança com o imperialismo não lhe  deram os dividendos almejados e que, por isso mesmo, afasta os  escombros da ditadura exausta para tentar recompor-se enquanto  classe. O período Kubitschek como o período que se segue e que  aquele preludia, não estão apreciados neste estudo. São uma outra  história. Uma triste história, por sinal.
 ENDIVIDAM ENTO Numa fase histórica em que o endividamento externo assume  as proporções com que se apresenta agora, como dos aspectos mais  característicos do chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento”,  parece interessante lembrar os seus primeiros tempos, isto é, as  suas origens. Trata-se, aqui, de simples exposição, naturalmente.  Uma interpretação rigorosa demandaria o estudo das diferentes  formas de exploração de um país por outro, de uma área por  outra, e como, no caso brasileiro, foram utilizadas. Como deman daria o estudo da situação do nosso país, em cada caso, em cada  etapa e de seu papel no quadro internacional. As formas mais  comuns de exploração de um país por outro, de uma área por  outra, são o comércio — pela troca desigual; os empréstimos, de  que se ocupa o presente sumário; e o investimento — que diz  respeito ao problema, antes tão discutido, da remessa de lucros.  O levantamento histórico demandaria, ainda, e com especial des taque, a análise das crises cíclicas do capitalismo, em escala mun dial, e de seus efeitos transferidos aos países de economia colonial  ou de economia dependente. O caráter da independência de 1822 fica nitidamente definido  quando se conhecem as condições em que ela se processou. Uma  dessas condições foi estabelecida pelo endividamento externo, ini ciado, e não por coincidência, com a autonomia. Menos de dois  meses após a sua proclamação, efetivamente, banqueiros britânicos  propunham ao governo imperial a concessão de empréstimo, em  condições a combinar. Mas foi após a dissolução da primeira As sembléia Constituinte — ato de violência política a que se seguiria  uma constituição outorgada, traços ambos condicionados pela cor relação interna de forças no momento da autonomia — que o  empréstimo se consumou, e não com os proponentes iniciais. Tratava-se, na verdade, de dois empréstimos. O primeiro, de 1.000.000 de libras esterlinas, foi contratado a 20 de agosto de  1824, com banqueiros diversos. Era do tipo 70, amortizações de  1%, prazo de 30 anos e com a garantia da renda das alfândegas.
 O segundo, de 2.000.000 de libras esterlinas, foi contratado a 12  de janeiro de 1825: era de tipo 85 e com as demais condições  idênticas às do primeiro. Mas a responsabilidade total do Brasil  seria, entretanto, de 3.686.200 libras esterlinas, correspondendo 1.333.300 ao primeiro empréstimo, e 2.352.900 ao segundo. Entraram, no caso, detalhes curiosos, que ajudam a compreen der a situação da época. Um deles relacionava-se com o tipo:  quando se menciona empréstimo do tipo 70, como o primeiro já  referido, isto significa, nada mais, nada menos, que o Brasil só  receberia dele 700 de cada 1.000 libras esterlinas do total contra tado. A diferença entre o total redondo e o total quebrado, de  responsabilidade brasileira, corresponde às diversas taxas cobradas  pelos emprestadores: entre elas a porcentagem auferida pelos nego ciadores brasileiros, dois altos titulares do império. O total foi destinado ao pagamento da dívida do governo ao  Banco do Brasil e suprimento do déficit orçamentário de 1821,  salvo a parcela destinada ao pagamento de juros e amortização  do chamado empréstimo português, que assumimos, por compro misso ligado às negociações para o reconhecimento da nossa inde pendência pela metrópole. Empréstimo no valor de 1.400.000 libras  esterlinas, mais um saldo de 400.000 libras, este a ser pago pelo  Brasil a Portugal. Isto é, ficávamos devendo uma parte aos ban queiros ingleses e uma parte aos nossos antigos senhores portugue ses. Começamos a existência nacional, assim, com endividamento.  E nas piores condições; condições que nos foram impostas. Impo sição que ficamos devendo à Inglaterra, intermediária de tudo —  da autonomia, do reconhecimento e dos empréstimos. Em 1854, quando deveria estar liquidado o nosso primeiro  empréstimo — o prazo combinado fora de 30 anos — ele fora,  na verdade, amortizado em apenas 513.000 libras esterlinas. Houve,  então, a prorrogação necessária, por dez anos, com os ônus corres pondentes. Terminados os dez anos da prorrogação, em 1863, era  também impossível pagar. Adotou-se, então, a solução que se tor naria rotineira: tomada de novo empréstimo, no montante de 3.855.300 libras esterlinas, tipo 88, que vinha, desde logo, desfal cado de 2.357.900 libras esterlinas. O primeiro empréstimo brasileiro só foi liquidado em 1890,  já em regime republicano: pagamos 65 anos de juros. O chamado
 empréstimo português nos obrigou à tomada de dois novos emprés timos, em 1843 e em 1852. Sem levar em conta o remanescente  do empréstimo de 1852 — que foi longo —, dispendemos, para a  liquidação dos compromissos de 1824 e 1825, a soma de 6.180.195  libras esterlinas. Assim, tais empréstimos — destinados a pagar  empréstimos anteriores ou endividamento interno — foram exce lente negócio apenas para os credores. Castro Carreira depõe, a tal respeito: “Como se vê, este em préstimo, contraído com as mais gravosas condições para o país,  foi quase todo para satisfazer os encargos do empréstimo de 1824,  que aliás foi feito com melhores condições, conquanto a taxa de  juros fosse de 4%, visto que tinha de ser pago sobre um capital  quase duplo naquele que se recebia.” Ele fala do empréstimo de  1829, cujo contrato transcreve na íntegra, como os dos demais  empréstimos do império. Pois o empréstimo de 1829 foi tomado  ao tipo 52, juros de 5%, prazo de 30 anos, amortização de 1%,  garantia da alfândega do Rio de Janeiro. Dele, o Brasil recebeu  apenas 400.000 libras. Quando se levantaram protestos contra con dições tão onerosas, Caldeira Brant, o negociador, aliás, do emprés timo de 1824 e recebedor, portanto, da gratificação correspondente,  proclamou, com empáfia: “Temos acima de dois milhões de milhas  quadradas de terras incultas e excelentes, que poderemos vender.”  Era a lógica da classe dominante, que empresariou a independência. A regência fez um só empréstimo no exterior, o de 1839, já  às vésperas da Maioridade, golpe político conservador que resta belecia as condições originárias da autonomia, isto é, a monarquia  bragantina. Ascendia a 411.200 libras esterlinas, tipo 76, juros de  5%, prazo de 30 anos, amortização de 1%. A importância líquida  desse empréstimo, da ordem de 312.500 libras esterlinas, ficou toda  em Londres, para atender empréstimos anteriores. Já em julho de  1842 — depois da Maioridade, portanto — , os governos brasileiro  e português firmaram convenção, ratificadora de ajuste de contas  de 1837, em que o Brasil reconhecia estar em atraso no pagamento  da importância que se comprometera a entregar à antiga metró pole, pelo reconhecimento da independência. Assim, além de pagar  a autonomia aos antigos senhores, ficamos como devedores relapsos,  com todos os prejuízos decorrentes. Foi, por assim dizer, uma inde pendência cara.
 Com os juros, aquele compromisso ascendia a £ 622.702-1-3.  Foi, por isso, tomado em Londres o empréstimo de 1843, no valor  nominal de 732.600 libras esterlinas, tipo 85, juros de 5%, prazo  de 20 anos, tendo como garantia real “todos os recursos do impé rio e particularmente a renda das alfândegas”. Havia um detalhe  interessante, que Valentim Bouças anotaria, adiante: “Da mesma  forma que nos contratos anteriores, neste nos coube a obrigação  de manter em depósito, em Londres, a importância de um semestre  de juros e a metade da quantia anualmente aplicada à respectiva  amortização.” Os credores cercavam-se, pois, de todas as garan tias. Seguiu-se uma fase de pausa no endividamento, pausa neces sária ao restabelecimento do crédito no exterior. Essa pausa parece  que exacerbou o ímpeto dos tomadores, pois os anos que se segui ram conhecem uma série de compromissos externos. Era a reto mada da cadeia da felicidade. Em 1852, o Brasil contraiu, sempre em Londres, empréstimo  no montante de 954.250 libras esterlinas, tipo 95, juros de 4,5%,  prazo de 30 anos. Novo empréstimo foi tomado em 1858, agora no  valor de 1.526.500 libras esterlinas, juros de 4,5%, tipo 95,5,  prazo de 30 anos, com valor real de 1.425.000 libras e com a  particularidade de ser mencionado, pela primeira vez, fim produ tivo à sua aplicação: a encampação e prolongamento da ferrovia  D. Pedro II. Outro empréstimo foi contraído, em 1859, mas tratava-  se de simples troca de títulos antigos por novos, ainda em ligação  com os empréstimos iniciais, agora no valor de 460.000 libras  esterlinas. Em 1860, no ano seguinte, portanto, tomamos outro  empréstimo, no valor nominal de 1.373.000 libras esterlinas, tipo  90, juros de 4,5%, prazo de 30 anos, com um líquido de 1.210.000  libras. A série continuaria, em 1863, quando tomamos emprestadas 3.855.300 libras esterlinas, tipo 83, com líquido de 3.300.000  libras. Era para pagar “o remanescente de £ 360.000 do empréstimo  de 1843, a vencer no dia l.° de janeiro de 1864, com recursos do  próprio Tesouro que, até a partida do paquete, em agosto, reme teria cambiais para a integral liquidação do mesmo. O resgate do  empréstimo de 1824-25, cujos títulos ainda estavam em circulação,  no montante de £ 2.358.600, seria efetuado mediante aquela ope ração já autorizada”.
 Era a seriação de operações em que a nota essencial consistia  na ligação estreita entre os empréstimos, uns eram tomados para  pagar os outros, e a tendência se acentuava. Assim, em 1865,  tomamos o empréstimo de £ 6.963.600, tipo 74, juro de 5%.  Nesse ano, os banqueiros tradicionais do Brasil, Rothschild e  Irmãos, advertiam o governo imperial, secamente: “Além da soma  de £ 350.000, que o governo nos deve, £ 150.000 serão necessárias  para o pagamento dos dividendos do mês próximo; verificamos,  também, que £ 200.000 serão precisas para satisfazer o pagamento  dos contratos já registrados. Podemos, portanto, dizer que o go verno imperial precisa de £ 700.000 para resgatar compromissos  imediatos. Mesmo em tempos ordinários, hesitaríamos em fazer-lhe  esse adiantamento, porém no atual estado do mercado monetário  devemos confessar francamente que não entra em nossas cogitações  promover o referido adiantamento.” Era rigoroso puxão de orelhas  dos nossos credores habituais. Que, aliás, continuariam a ser. Reprimenda inútil, pois já em 1871, pouco depois de termi nada a guerra com o Paraguai, tomávamos empréstimo no valor  de £ 3.459.600, tipo 89, juros de 5%. E, em 1875, outro, ainda  mais vultoso, na importância de £ 5.301.200, tipo 96,6, juros  ainda de 5%. E pouco depois, em 1883, novo empréstimo, agora  de £ 4.599.600, tipo 89 — que deveria estar com o prazo termi nado em 1921, mas tinha títulos em circulação nas alturas de 1944.  Em 1886, novo empréstimo, e de montante vultoso, de £ 6.431.000,  tipo 95, juros de 5%, prazo igual ao anterior, isto é, de 38 anos  — aumentava o total e aumentava o prazo, na segunda metade do  século: a situação estava se aproximando do clímax. Já em 1888, era retomada a série: agora no montante de  £ 6.297.300, tipo 97 e mesmas condições dos anteriores. Final mente, quanto ao império, contraímos, em 1889, o empréstimo  de £ 19.837.000, tendo por finalidade a conversão dos débitos ex ternos de 1865, 1871, 1875 e 1886, todos de juros de 5%, em um  novo e único empréstimo, de juros de 4% e prazo mais dilatado.  O capital inicial dos empréstimos do império, resgatados ou  não, elevava-se a £ 68.191.900; a soma dos resgatados era de  £ 37.438.000. Foi essa a herança da república. Nascida do ventre  de uma monarquia escravista e latifundiária, a república conti
 nuaria as mazelas antigas. A sociedade não mudara — não havia  como mudar a farsa financeira. Aqui, depois da enumeração seca dos números, convém um  mínimo de análise. É evidente que o endividamento assume caráter  diverso na medida em que se processa em fases diversas. Isto é,  o mesmo fenômeno se apresenta diferente conforme o contexto em  que está inserido, conforme a sua história, em suma. Há muitas  maneiras de, na obediência a tal preceito, agrupar os empréstimos  brasileiros e discriminar, no endividamento externo, etapas de  características diferentes. Uma dessas maneiras seria a cronológica,  ligada a acontecimentos importantes no processo histórico do país. Considerada tal maneira, teríamos um período inicial, prati camente o do império, de que apresentamos sumário esboço; um  período, o seguinte, já em regime republicano, desde o advento da  república até o movimento de 1930, com o esquema Aranha de  consolidação da dívida externa; o terceiro período seria a partir do  referido esquema até o início do governo Kubitschek, com o Plano  de Metas e adoção deliberada de uma política de abertura aos  capitais estrangeiros, cumulados de benefícios e privilégios; o último  período seria a partir de 1964, quando a crise econômica e finan ceira no Brasil leva à crise política, com a implantação de uma  ditadura que serve eficientemente aos investimentos estrangeiros.  É uma repartição que obedece a claros e determinados parâmetros.  Tem deficiências, como todas, mas pode, quando menos, ajudar a  simples exposição, no sentido da clareza, desde que, para definir  precisamente o caráter do endividamento, seria indispensável ana lisar mais acuradamente o processo histórico. Outra maneira de dividir o tempo, com inconvenientes e van tagens, seria segundo as operações de consolidação, os funding:  o  primeiro período seria encerrado com o funding-loan  firmado por  Campos Sales, em 1898, com a suspensão do serviço da dívida; o  segundo período seria compreendido entre o primeiro e o terceiro  funding-loan,  em 1934, com o esquema Aranha  e nova suspensão  do serviço da dívida (passando, sem levar em consideração, o  segundo funding-loan,  de 1914); daí a 1956 seria o terceiro pe ríodo; e desde então aos nossos dias, o quarto. De qualquer ma neira, é importante mencionar, embora isso seja insuficiente para  caracterizar o primeiro período do endividamento, que esse período
 é o de uma economia ainda colonial, escravista em quase todo o  tempo, e dependente, latifundiária, extensiva, agrícola e exporta dora, quando os mecanismos mais utilizados, internamente, são o  de câmbio, o tributário e o alfandegário. É um período de acumu lação capitalista, embora lenta. O endividamento é a forma como  os emprestadores se apropriam de parcela considerável dessa acu mulação. Não a única forma, na verdade, pois outras, como a troca  desigual e o investimento também funcionavam. A crise do regime republicano, em 1893, levou ao primeiro  empréstimo posterior à queda da monarquia, num montante nomi nal de £ 3.710.000, tipo 80, juros e prazo costumeiros. Em 1895  seria efetivado o segundo, num montante de £ 7.442.000, com um  líquido de £ 6.000.000, tipo 80, juros e prazo usuais. Em 1896  e 1897 foram realizadas duas operações de curto prazo: de  £ 1.000.000, por um ano, na França, resgatada dentro do prazo;  e de £ 2.000.000, pelo prazo de dois anos, na Inglaterra, para  resgatar a anterior. Em 1898, operou-se, então, o famigerado funding-loan  que  definiu, em termos financeiros, o caráter da república oligárquica,  como a celebrada “política dos governadores”. Por acordo cele brado a 15 de junho de 1898 com os tradicionais banqueiros  Rothschild e Irmãos, os juros de todos os empréstimos externos e  garantias de juros (como de ferrovias, por exemplo), devidos pelo  governo brasileiro, seriam pagos, no período de junho de 1898 a ju nho de 1901, não em dinheiro mas em títulos consolidados (funding   bonds ) com juros de 5%, ficando suspensa a amortização deste e  de todos os empréstimos a que se referia o documento pelo prazo  de treze anos, devendo só recomeçar a l.° de julho de 1911. O  montante foi de £ 8.613.717, juros de 5%, prazo de 63 anos, com  a garantia da renda das alfândegas. A operação mencionava e  compreendia os empréstimos de 1883, 1888, 1889, 1893 e 1895,  no valor total de £ 37.731.820 e as garantias de juros de várias  ferrovias. O governo brasileiro se comprometia a não tomar novo  empréstimo externo antes de junho de 1901 e a pagar trimestral mente os juros. A operação foi celebrada de todas as maneiras.  Campos Sales, que defendia uma política de “austeridade”, con fessou que comprava a opinião dos jornais.
 Até hoje, Murtinho, ministro da Fazenda do governo Campos  Sales, é apresentado como “mago das finanças” e seu chefe como  saneador das finanças brasileiras. A verdade é justamente o oposto  disso: o período Campos Sales representou a consagração da  estagnação como fundamento, a submissão aos interesses estran geiros, a confusão mais elementar das categorias econômicas e dos  mecanismos financeiros. Para Murtinho, “o progresso somente  poderia ser conseguido através do livre intercâmbio comercial,  da construção de ferrovias e de políticas monetárias austeras”.   Para ele, “a indústria não era viável no Brasil devido à inferiori dade racial de seus habitantes”. Em verdade, “a conseqüência de  curto prazo de suas ‘reformas’  foi um pânico bancário, em 1900,  que quase destruiu o sistema monetário brasileiro desenvolvido  paulatinamente através dos anos. Diversas instituições faliram e até  mesmo o Banco do Brasil ficou ameaçado de falência definitiva,  sendo obrigado a suspender os pagamentos”. As estatísticas provam, de outro lado, que o período de  governo de Campos Sales foi aquele de menor índice de desenvol vimento industrial aqui. De menor taxa de acumulação capitalista,  por todos os motivos. Uma calamidade nacional que a historiogra fia, inclusive a econômica, a vulgar naturalmente, tem celebrado  como um “milagre”. Milagre foi a sobrevivência do Brasil, depois  da calamidade. É curioso lembrar que Murtinho, como todos os  seus sucessores em “milagres”, já prevenia contra “a insidiosa  infiltração do socialismo”. Era um precursor, como os seus admi radores e seguidores, do anticomunismo, elixir opiáceo com que  se enganam os ingênuos. Os que o ministram são sempre defen sores de uma política econômica que torna os ricos mais ricos e  os pobres mais pobres. O Brasil os tem conhecido muito bem. Pois apesar dos compromissos mencionados no funding-loan,   tão logo encerrado o prazo de proibição para novos empréstimos  no exterior, e ainda no governo de Campos Sales e Murtinho, o  Brasil tomou o empréstimo de julho de 1901, no montante de  £ 16.919.320, tipo 83, prazo de 61 anos, juros de 4%, empréstimo  que tomou o nome de rescission  porque se destinou à aquisição de  ferrovias que gozavam da garantia de juros. Já naquela época, pois,  éramos levados à compra de ferro velho, operação, como se sabe,  largamente usada depois e que culminou com a da The Leopoldina
 Railway,  um trambolho ferroviário que proporcionava prejuízos  constantes e não fazia transportes, no governo Dutra. Em 1903, o Brasil tomou novo empréstimo, no montante de  £ 8.500.000, em duas séries, tipos 90 e 97, juros de 5% e prazo  de 30 anos. Em 1906, outro empréstimo, de £ 1.000.000, tipo 96,  prazo de 10 anos, juros de 5%. Em 1908, o empréstimo foi de  £ 4.000.000, tipo 96, juros de 5% e prazo de 10 anos. Em 1908  e 1909 foram feitos empréstimos em duas séries, em Paris e em  francos papel, num total de 100.000, juros de 5% e prazo de 50  anos. Em 1909, o Brasil tomou novo empréstimo em francos,  agora francos ouro, de 40.000.000, tipo 95,25, juros de 5% e prazo  também de 50 anos. Em 1910, tomamos nada menos de três em préstimos no exterior: o primeiro, de 100.000 francos ouro, tipo 84,  prazo de 50 anos, juros de 4%; o segundo de £ 10.000.000, tipo  87,5, juros de 5%, prazo de 57 anos; o terceiro de £ 1.000.000,  tipo 90, juros de 4% e prazo de 12 anos. Em 1911, o Brasil tomou dois empréstimos: o primeiro, de  £ 4.500.000, tipo 92, juros de 4% e prazo de 16 anos; o segundo,  de 60.000.000 de francos ouro, tipo 83, prazo de 6 anos. Em 1912,  novo empréstimo, agora de £ 2.400.000, tipo 83, juros de 4% e  prazo de 60 anos. Depositado em banco, em Londres, ficou per dido pela falência do estabelecimento. No volume XV da publi cação Finanças do Brasil,  em anexo, consta a história dessa gigan tesca falcatrua, cujo último episódio é de 1935, quando o ministro  da Fazenda determinou pagamento àquele banco de determinada  indenização, em que “os que se apresentavam como credores e com  direito à indenização eram os próprios responsáveis pelo prejuízo  de £ 1.001.992-3-2, correspondentes a mais de 60.000 contos, so frido pelo Brasil com a falência do The Russian Commercial and   Industrial Bank  por ocasião da revolução russa’  . Em 1913, voltávamos a tomar empréstimo em Londres, no  montante de £ 11.000.000, juros de 5%, tipo 97 e prazo de 40  anos. Essa seqüência, às vezes na acelerada cadência de mais de  um empréstimo por ano, seria culminada com o segundo funding-   loan,  em 1914 — dezesseis anos após o primeiro. Tratava-se de  reformar empréstimos anteriores tomados entre 1883 e 1911, tudo  num montante de £ 14.502.396, juros de 5%, para um nominal  de 15.000.000 de libras. A amortização de todos os empréstimos,
 excluído o de 1914, ficaria suspensa por 13 anos, a partir de 1°  de agosto de 1914 até 31 de julho de 1927. A garantia era da  renda alfandegária, embora já vinculada, como tal, a empréstimos  anteriores não compreendidos na operação. Era a segunda vez que se suspendia o serviço da dívida, e  apenas parcialmente. Em 1916 o Brasil não contraiu um emprés timo, a rigor, mas assumiu a responsabilidade da dívida hipote cária da ferrovia goiana, no montante de 25.000.000 de francos  ouro, com juros de 5%, cujo pagamento esteve suspenso entre 1916  e 1922. Para não perturbar o andamento das negociações para o  funding  posterior ao movimento de 1930, o terceiro, o nosso  governo houve por bem efetuar o pagamento desse empréstimo  em francos ouro, por ter sido a isso condenada a ferrovia pela  justiça francesa. Passáramos o século XIX, quase totalmente, vinculados à  praça de Londres, onde tomáramos a maior parte dos empréstimos,  quase todos com os banqueiros Rothschild e Irmãos, e chegáramos  ao fim do século buscando a praça de Paris. Após a 1 .®  Guerra  Mundial, começaríamos a freqüentar a praça de New York —  o dólar se tornaria a moeda constante em nossas tomadas no  exterior. Isso ocorreu em 1922, com um empréstimo de US$ 50.000.000, tipo 90, juros de 8%, os mais altos até então exigidos,  e a garantia, diferentemente do que vinha sendo exigido, era, em  primeiro lugar, a renda dos impostos de consumo e do selo, vindo  em segundo lugar a renda alfandegária. Os juros, na verdade,  eram ainda mais altos, atingiam os 9%, e o prazo estipulado era  de 20 anos. Segundo Bouças, “os banqueiros retinham em seu poder, ao  seu inteiro dispor e por tempo indeterminado, US$ 1.362.500. Por  outro lado, os encargos do Tesouro aumentavam porque continuava  a pagar juros que, pelo contrato, já deveriam estar resgatados e  que não o foram pela impossibilidade de sua aquisição pelo preço  contratual”. A circulação de tal empréstimo, obedecido o contrato,  não deveria, em fins de 1931, ultrapassar 22.000.000 de dólares,  mas representavam 31.353.000, diferença de cerca de 10.000.000  de dólares, com juros anuais altíssimos. Para comemorar o centenário de uma independência marcada  pelo empréstimo oneroso de 1824 e mais o chamado “empréstimo
 português”, tomamos, em 1922, três empréstimos externos: o pri meiro, de £ 9.000.000, juros de 7,5%, prazo de 30 anos, foi tomado  a um consórcio de bancos americanos e ingleses, tendo, como  garantia, o penhor de 4.535.000 sacas de café (que valiam, a preço  da época, mais de 13 milhões de dólares); o segundo, no montante  de 25.000.000 de dólares, juros de 7%, prazo de 30 anos, tipo 91,  foi tomado em New York; o terceiro, no montante de 14.850.500  francos, tipo 90, juros de 5%, prazo de 30 anos, foi tomado em  Paris. Estávamos diversificando, como se diria depois. Pior: como  se faria depois, e muito. Mas o dólar seria, no século XX, a moeda de que nos servi ríamos, ou que se serviria de nós. Pois já em 1926 nela tomaríamos  mais um empréstimo, de 60.000.000 de dólares, tipo 83, juros de  6,5%, prazo de 30 anos. A garantia era, no caso, nova: penhor do  imposto sobre a renda e de contas assinadas. No ano seguinte,  1927, voltávamos a Londres, tomando ali o empréstimo de £ 8.750.000, tipo 88, juros de 6,5% e prazo de 30 anos, comple mentado por outro, tomado na praça de New York, no montante  de. 41.500.000 de dólares, com a mesma taxa de juros, de que  ficaram nos Estados Unidos, desde logo, 4.357.611 de dólares,  “para pagamento de consertos de navios de guerra”. Vitorioso o movimento de 1930 — episódio importante da  revolução burguesa em nosso país —, tratava-se de enfrentar a  situação calamitosa, agravada pela crise de 1929 e seus reflexos na  economia brasileira. A solução era marchar para mais um funding,   o terceiro. Começamos, logo em 1931, pela suspensão do serviço  da dívida, sendo iniciados os estudos para calcular o seu montante  total e a forma de liquidá-lo. Conta o autor do relato, isto é, o  relator da comissão encarregada de tais estudos, textualmente: Foi impossível, porém, a realização desse propósito. Não se  achavam arquivados, na repartição encarregada, os contratos  dos empréstimos externos federais. Das operações feitas, e  ainda em circulação, estavam colecionados apenas oito con tratos! Os valores reais das remessas eram também ignorados.  O Tesouro fazia habitualmente as transferências pelas notas  fornecidas pelos próprios agentes dos banqueiros interessados.  Não havia contabilidade regular da dívida externa federal. A  situação, na parte relativa aos estados e municípios, era seme lhante ou mesmo pior.
 Isto não é texto de algum comentador malevolente; é um  documento oficial do governo brasileiro. Era o diagnóstico da  profunda e prolongada mazela a que o imperialismo nos levara,  com a conivência ativa da classe dominante no poder. Essa asso ciação fizera do Brasil o paraíso da agiotagem internacional, traba lhando de forma sistemática e criando até uma tradição. Infeliz-  mente, a tradição que denuncia a composição do imperialismo com  as forças internas a que a classe dominante delegara a preservação  de seus interesses. Era uma orgia financeira em que a solução fácil  para as crises, repetidas a cada passo, estava na tomada de emprés timos, nas condições mais onerosas, transferindo sempre o paga mento. Nesse sentido, a república oligárquica seguiu a trilha que  o império abrira: era a mesma classe dominante, menos o escra vismo. O mesmo documento adiantava detalhes escandalosos: A análise desses contratos e a do emprego do seu produto  revelaram fatos que evidenciaram o descaso que alguns admi nistradores votavam à causa pública. Geralmente, as condições  dos empréstimos efetuados eram onerosíssimas, não só pela  taxa de juros, pelo tipo em que eram lançados, pelas comissões  distribuídas, como também pela inserção de cláusulas vexató rias. Uma cláusula de um desses contratos dava ao banqueiro  o direito de, no caso de falta de pagamento dos juros, cobrar,  por suas próprias mãos, os impostos e, para esse fim, era a  administração obrigada a entregar todos os seus livros de lan çamentos; em outro, um estado se obrigou a entregar a deter minada firma, escolhida pelo banqueiro, parte do produto do  empréstimo destinada a certos trabalhos. E era tão idônea  aquela firma que faliu e o estado, apesar de ter dispendido  elevada importância, não pôde ver realizados aqueles traba lhos. O retrato fiel e escandaloso da situação constaria da exposi ção de motivos apresentada pelo ministro da Fazenda ao chefe do  governo provisório. Alguns de seus trechos são tão expressivos que  dispensam comentários. Era preciso encontrar uma solução, e ur gente, que compreendesse “toda a dívida brasileira, sem exclusões  prejudiciais ao nosso bom nome internacional”, dizia, preliminar mente, o titular da Fazenda. Mas “as dificuldades a vencer de uma  operação dessa natureza, envolvendo todos  os empréstimos brasi leiros, atingindo todos os mercados monetários internacionais, im-
 portando numa redução  geral, ainda que equitativa, dos pagamen tos, eram com razão consideradas irremovíveis. Não restava, porém,  ao governo outra solução. O Brasil queria sair da situação do  terceiro funding  não para outra operação similar”. O documento, candente libelo que o país deveria conhecer,  mas que permanece praticamente desconhecido, pelo menos do  povo, começava denunciando a essência do problema: “Não nos  era possível continuar a usar desse expediente, acrescendo as nossas  dívidas com a emissão de novos títulos, vendendo juros para pagar   juros vencidos.  Não era também possível fazer qualquer acordo,  além das nossas possibilidades reais.”  Os grifos são, naturalmente,  do original. Mas havia ainda aspecto mais grave: “As causas do  novo acordo, expostas em suas linhas gerais, tinham, ainda, razões  mais fortes. O Brasil nunca  pagou seus empréstimos com seus  próprios  recursos. Fez sempre novos  empréstimos para manter os  antigos.  Os saldos da sua balança de comércio não lhe permitiram  nunca  cobrir a balança de contas.” Ora, a balança comercial, na época, como acontecia com a  maioria dos países, vinha declinando sempre, desde o início da  crise. O ministro da Fazenda assim detalhava o problema, no que  afetava o serviço da dívida: “Os saldos de 1931/32 e 1933 foram  aproveitados para corrigir a situação deixada em 1930, de vultosos  descobertos  e atrasados,  para manter os serviços dos fundings,  dos  empréstimos paulistas do café e de alguns estados e as despesas  governamentais no exterior. Era necessário ordenar o aproveita mento deste saldo, empregando-o por forma menos dispersiva e  mais de acordo com os interesses nacionais.” Passava, em seguida, ao balanço sumário da dívida e definia  a gigantesca expoliação de que o Brasil vinha sendo vítima: Em contos de réis, o Brasil recebeu 10 milhões m/m, pagou  8 milhões e meio, e ainda  deve de capital quase 10 milhões,  sem contar o serviço de juros. [...]  Tomamos de emprésti mo £ 411.418.254, pagamos £ 179.951.871 e devemos ainda  £ 251.466.383, capital em circulação.  A realidade é que, pa gando dívidas com novas dívidas, a nossa política o que fez  foi aumentar  essas dívidas, ao invés de diminuí-las. Os próprios  fundings  não são senão expedientes, artifícios usados para  postergar pagamentos sem emissão de títulos que passam a  constituir praticamente novos empréstimos.
 Esta a situação em que o Brasil partia para o terceiro funding,   que consistiu, mediante acordo com os credores, na emissão de  títulos, durante um período de três anos, a contar de 1931, prazo  que findou em outubro de 1934. Deveríamos recomeçar o paga mento do serviço da dívida que, acrescido com o do terceiro fun ding,  orçava em cerca de £ 23.017.000. Como o país não dispu sesse de condições para tanto, ficou decidido que a nossa disponi bilidade, da ordem de £ 8.600.000, se destinasse à amortização de  todos os credores. Ficou ainda estabelecida a suspensão do serviço  da dívida. As normas estabelecidas na fase em que Oswaldo Aranha  presidiu os negócios financeiros foram retomadas pelo seu sucessor,  Sousa Costa. Assim, aquelas baixadas em fevereiro de 1934 tive ram de ser revistas logo em novembro de 1937, quando da implan tação do Estado Novo: foi suspenso, novamente, o serviço da  dívida. Em março de 1940, o Governo baixou novas instruções,  com relação ao problema, ainda mediante entendimento com os  credores externos: os pagamentos estabelecidos pelo chamado esque ma Aranha,  em 1934, foram rebaixados em cerca de 50%, e o  período de vigência das novas normas foi fixado em quatro anos.  Estava prevista uma revisão do novo esquema, para 1943. Decretos  de novembro de 1943 e abril de 1944 estipularam as condições  novas a que obedeceria o serviço da dívida. Em outubro de 1945,  quando Vargas foi deposto, o Ministério da Fazenda esclarecia que  a sua administração, a partir de 1930, reduzira o saldo devedor  de nossos compromissos externos de £ 267.173.023. Considerando  que, realmente, o terceiro funding  e seus complementos foram ope rações destinadas a aliviar a carga correspondente ao pesadíssimo  serviço da dívida, tanto as suas medidas iniciais, em 1931, como  as complementares, de 1944, podem servir para definir o fim de  um período, no tocante ao problema do endividamente externo. A simples seqüência de informações numéricas, meramente  quantitativas, porém, não representa caminho mais fácil para a  compreensão do fenômeno. O endividamento do primeiro período,  encerrado seja com a república, seja com o primeiro funding,  em  1898, corresponde a um mundo muito diverso daquele a que cor responde o endividamento do segundo período, encerrado seja  com o movimento de 1930 e o início das medidas tomadas pelo
 ministro Oswaldo Aranha, seja com os entendimentos posteriores  e complementares, devidos ao ministro Sousa Costa, isto é, o  terceiro funding  e seus complementos. No primeiro período, realmente, em escala mundial, tratava-  se da expansão capitalista, inclusive nas áreas coloniais e depen dentes por via do comércio desigual e dos empréstimos, iniciando-  se os investimentos. É a fase pré-imperialista, que encontra o Brasil  como província econômica e financeira da Inglaterra; a libra é a  moeda de circulação universal, afetando essencialmente o Brasil.  A estrutura econômica do nosso país está profundamente marcada  por traços ainda coloniais, transitando para a etapa de dependência:  o regime escravista vigora em quase todo esse período, a produção  é agrícola, extensiva, latifundiária e de exportação, as fontes de  receita pública são poucas e pouco diversificadas, os problemas  mais discutidos são o cambial, muito ligado à exportação do café,  e tarifário, que motiva a controvérsia entre protecionistas e livre-  cambistas. O segundo período, ao invés, é o de alterações, ainda que  lentas a princípio, daquela estrutura, aparecendo, particularmente  depois que eclodem a 1 .®  Guerra Mundial e a crise de 1929, um  processo interno de acumulação que não cessa de crescer, marcado  principalmente pelo crescimento da produção industrial e do mer cado interno. É uma fase caracterizadamente de substituição de  importações, de crescimento do trabalho assalariado, de aprofunda mento da acumulação primitiva, de difusão, na extensão brasileira,  particularmente no Sul e Sudeste, mais próximos do litoral, de  relações capitalistas. A revolução burguesa no Brasil inicia o seu  tormentoso e difícil processo. Em âmbito internacional, é a fase imperialista, marcada par ticularmente pela l.a  Guerra Mundial e pela Revolução de Outu bro e pela passagem dos Estados Unidos a primeiro plano. O dólar  é a moeda de circulação internacional. Nosso endividamento é  em dólares, as parcelas em libras representam os remanescentes do  endividamento do império e um pouco da república velha, sem pre alongado em reformas onerosíssimas, que os credores não de monstram pressa alguma em encurtar, servidos por juros gordos.  Não há possibilidade de comparar um período e outro, o endivida
 mento do primeiro com o endividamento do segundo. São mundos  diferentes. E o Brasil é também diferente: mudou muito do século XIX  para a primeira metade do século XX. É, agora, uma província  econômica e financeira dos Estados Unidos. Mas o capitalismo está  em sua fase de crise geral e a concorrência, sua característica da  fase de expansão, deu lugar à concentração e ao monopolismo.  Com intervalos de um quarto de século, articulou a l.a  e a 2.“   Guerra Mundial. É preciso constatar, finalmente, que o Brasil,  entre 1930 e 1945, praticamente não assumiu responsabilidades de  empréstimos externos. De outro lado, os investimentos externos  ficaram consideravelmente reduzidos. É uma fase de mudanças  significativas na acumulação capitalisa aqui. Ela toma grande im pulso e tem condições políticas que a ajudam. A legislação, em  diversos níveis e formas, protege a indústria e assenta no mercado  interno o seu desenvolvimento. Não por simples coincidência, a  redução dos empréstimos externos e o desenvolvimento da econo mia nacional são processos paralelos. A economia brasileira, assim, não só se firma como se apóia  na acumulação interna e no mercado interno. É, por tudo isso, a  etapa embrionária de uma formação nacional autêntica, que será  dificultada pouco adiante. O Brasil escravista e pré-capitalista do  primeiro período vai dando lugar ao Brasil burguês do segundo  período, de capitalismo em desenvolvimento, configurando uma  formação dependente embõra pois, no conjunto, existem ainda  forças do atraso em funcionamento e até em crescimento: parte  da acumulação se orienta para elas. A exploração imperialista, sem  abandonar as vias do comércio e do empréstimo, esta agora menor,  no segundo período, vale-se, fundamentalmente, da via do investi mento. O problema do protecionismo quase desaparece do palco,  já não desperta controvérsias apaixonadas como antes; o problema  que assume esse plano é o do câmbio, enquanto, de forma ainda  pouco visível, aparece o da remessa de lucros para o exterior. Claro que esse problema da remessa de lucros — que se  processa em moeda do país de origem dos investimentos —  começa a ser discutido, e de forma candente, a partir do terceiro  período, entre os aqui considerados para efeito de clareza didática.  Vinculado ao dos investimentos, divide as opiniões, mas começa
 a penetrar na área dos especialistas, depois de ter invadido a área  política. O problema dos investimentos tem, realmente, como o  dos empréstimos, ligações profundas com o endividamento. Toda  política, e destacadamente toda política econômica, importa em  distinguir quem ganha e quem perde. Para os que a sofrem e  política é sempre julgada pelos seus efeitos, não pelas intenções ,  entretanto, nem sempre as coisas ficam claras, mesmo quando os  efeitos chegam a ser contundentes. Convém, pois, alguns esclarecimentos, sempre prevenindo que  eles não se destinam aos sabedores. Quando um país empresta a  outro, ou investe em outro — deixando aqui de discutir a distinção  entre o Estado e a famigerada iniciativa privada —, deve ser pago  ou remunerado na moeda de origem e não na moeda de destino.  Os ingleses, que foram os credores majoritários do Brasil, no  século XIX principalmente, eram pagos em libras. Em libras eram  pagos os empréstimos, em libras eram as remessas de seus lucros  no Brasil. Tais libras, o nosso país as ganhava na troca comercial.  Esse é o vínculo que se estabelece entre a troca de mercadorias  — balança de comércio — e os pagamentos em moeda — balanço  de pagamentos. Quem deve, conseqüentemente, tem de vender  mais do que compra no exterior e auferir na troca uma diferença  em moeda, a moeda com que deve satisfazer os pagamentos da  dívida ou o seu serviço. Serviço da dívida são as remessas perió dicas que o país devedor faz ao país credor, na moeda deste, em  cambiais. Esse serviço, normalmente, compreende juros e amortizações.  Assim, a definição de capital estrangeiro é muito simples — a  definição econômica, pois a definição jurídica falseia a realidade,  para confundir as vítimas — e breve: capital estrangeiro é aquele  que se remunera em moeda estrangeira. A relação entre moedas é  estabelecida pelo câmbio, daí a relação entre câmbio e endivida mento, como a relação entre câmbio e remessa de lucros dos inves tidores estrangeiros. Quando um país desvaloriza a sua moeda em  relação a outra, estrangeira — e é sempre em relação a outra, a  moeda estabelecida como universal, ou de área, que isso se pro cessa — , passa a pagar mais pelo que compra no exterior e a  vender mais barato o que exporta.
 Assim, as desvalorizações cambiais, via de regra, favorecem  os exportadores e desfavorecem os importadores. Ou, melhor:  favorecem as empresas que exportam — os indivíduos não expor tam —, permitindo que concorram com as mercadorias similares  de outros vendedores, e encarecem as mercadorias importadas. Na  época do império, o Brasil importava tudo, mas tudo mesmo — o  que comer, o que vestir, o que calçar, móveis, louças, utensílios —,  e exportava poucas mercadorias. A exportação, e seus lucros, es tava concentrada; a importação onerava todos os que viviam em  economia de mercado, aqui. O câmbio é uma das mais antigas e  utilizadas formas de transferência de renda: dos que possuem para  os que consomem. No século XIX, não apenas o endividamento foi desmedido.  Era constantemente acrescido pela taxa de câmbio, numa economia  que, em benefício do café, isto é, dos que o produziam e comer cializavam, pressionava para a baixa. Quanto mais baixa a taxa  de câmbio, maiores os lucros destes e maior o endividamento e o  serviço da dívida. Por tudo isso — e sem o entendimento de tudo  isso é impossível avaliar o que representa o endividamento —, é  que a simples apresentação de dados não permite avaliar o peso  do extraordinário fardo que o Brasil, isto é, o povo brasileiro,  carregou e como foi difícil a sua acumulação capitalista. O terceiro período da história da dívida externa brasileira,  entre a faixa 1931-1934 e 1956, quando se inicia a quarta e última,  de que não tratamos aqui, apresenta, em relação aos anteriores,  profundas alterações de forma e de fundo. De fundo porque está  ligado ao mundo de após a 2* Guerra Mundial e particularmente  à estrutura internacional estabelecida pelos chamados acordos de  Bretton Woods, em que os Estados Unidos fixaram as normas a  que obedeceriam os países da área dita ocidental e cristã, isto é,  a área que o seu imperialismo explorava, reservando-se essa explo ração. É a estrutura que estamos assistindo desabar agora. De  forma porque desaparecem as apólices da dívida externa. Os empréstimos, e o endividamento conseqüente, apresentam-  se sob vestimenta diferente. Isso não acontece apenas em relação  ao Brasil, mas em âmbito universal. Já em 1934, para poder en frentar a concorrência alemã e japonesa no mundo, os Estados  Unidos criaram um poderoso instrumento financeiro, o Eximbank.
 Depois da 2.a  Guerra Mundial, esmagados aqueles concorrentes e  empobrecidos os próprios aliados da véspera — grande parte deles  submetida à terapêutica da marshallização —, surgiram dois outros  instrumentos financeiros que teriam papel de relevo no que diz  respeito a empréstimos e investimentos: o Banco Internacional de  Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e o Fundo Monetário  Internacional (FMI), este destinado particularmente a resolver os  problemas das transferências internacionais. Desaparecido o sistema de apólices nos empréstimos — em bora continuassem a circular remanescentes da época em que  haviam vigorado —, aparecem os empréstimos de forma nova,  caracterizando uma dependência de novo tipo, de nova qualidade,  pelos países tomadores. A partir daqui, e por falta de outra saída,  os elementos de informação são documentos da extinta Sumoc,  antecessora do Banco Central, apesar das dúvidas que podem sus citar. Como a dos investimentos, cujo cadastro, organizado pelo  Banco Central, é relativamente recente, daí ser precária toda e  qualquer avaliação de seu montante, a estatística dos empréstimos  suporta margem de erro muito grande. Para estudo de sua sistemá tica e de seus efeitos e qualidades, entretanto, tais erros carecem  de significação porque afetam apenas a dimensão quantitativa.  Segundo a Sumoc, e segundo os dados nela registrados, os emprés timos brasileiros, em dólares, no fim de 1956, ascendiam a pouco  mais de dois bilhões — dos quais 1.207,3 milhões originados dos  Estados Unidos — com um saldo devedor brasileiro da ordem de  um bilhão e trezentos e cinqüenta milhões de dólares. Comparada  com a dívida de hoje — meados de 1989 — era uma quantia irri sória, como se vê, Isto, naturalmente, em termos quantitativos. Daqueles dois bilhões, o Eximbank fornecera 774 milhões,  Bird e FMI forneceram 277 milhões, e entidades privadas forne ceram 960 milhões (a diferença entre a soma das parcelas e o  total antes apresentado deve-se a arredondamentos, apenas). O  total a pagar, no fim de 1956 — para ajudar a reter: início do  governo Kubitschek — é aqui considerado para fins de fixação  do período somente, pois novos empréstimos se sucederam, mas  já referentes ao quarto período. Pelos dados referidos, verifica-se  que cerca de 70% dos empréstimos eram, pois, de origem gover namental norte-americana. Isto importa em significar que são em
 préstimos que acrescentam à sua dimensão financeira uma clarís sima dimensão política, por vezes expressa de público. Muitos desses empréstimos eram destinados a empresas norte-  americanas estabelecidas no Brasil. Por exemplo: cinqüenta milhões  de financiamentos de duas subsidiárias da Electric Bond and Share   (Ebasco); cerca de setenta milhões emprestados à Icomi, subsidiá ria da Bethlehen Steel Corporation,  exploradora das riquezas mi nerais do Amapá. O maior empréstimo do Eximbank a uma enti dade oficial brasileira, o Banco do Brasil, no valor de 300 milhões  de dólares, destinava-se à liquidação de “atrasados comerciais”,  isto é, ficaram nos Estados Unidos. O Eximbank, até por finalidade  específica, não passou nunca de financiador do comércio de seu  país. Assim, abria crédito ao Brasil, sob determinadas condições  de juros, prazo e amortizações, mas isto não significa que os dó lares entrassem aqui. Tratava-se, tão simplesmente, de adiantamen tos que o banco fazia às empresas exportadoras norte-americanas,  quase sempre as próprias produtoras, adiantamento que nos era  debitado. Isto estabelecia o vínculo entre o empréstimo e as em presas norte-americanas. Não se tratava, pois, de entrega ao Brasil  — governo ou empresas privadas nacionais — de determinado  montante de dólares, para emprego aqui escolhido. Tratava-se,  apenas, de financiar a exportação norte-americana. Como estávamos sempre em atraso com o pagamento das com pras no exterior, restabelecia-se a cadeia da felicidade que era  conhecida no tempo do império e mesmo na república velha,  particularmente na época da libra. Só em 1954, tomamos dois  empréstimos, no total de oitenta milhões de dólares, agora no  Federal Reserve Bank,  para acerto de “descobertos cambiais que  ameaçavam acumular-se”. Repetia-se o problema comercial —  marca registrada da troca desigual — que seria um problema es trutural: não alcançávamos, na troca de mercadorias, o montante  em moeda estrangeira, o dólar no caso — como a libra, antes —,  suficiente para atender o serviço da dívida. Tomávamos novos  empréstimos para isso. Era já uma tradição e apenas haviam  mudado os credores. As taxas de juros eram variáveis entre 3,5% e 5,75%. Pare cem baixas, mas não eram. Os prazos variavam, dos curtos aos lon gos, estes entre 15 e 20 anos. O importante é que eram prolongados J
 por reformas, reescalonamentos (numa expressão que passou a ser  comum, entre os gestores das finanças nacionais) e novos emprés timos. Os empréstimos do Eximbank, entre 1940 e 1955, come çaram, nos primeiros anos, no nível dos 50 milhões de dólares,  para chegarem a 140 milhões, em 1952, e 310 milhões, em 1953.  Note-se que são os anos do último governo Vargas, que desembo cará na crise de agosto de 1954. O nível mais baixo ocorrera em  1946, com apenas 115 milhões. Havia, ainda, as imposições, interferências, exigências de toda  ordem. A certa altura, a revista norte-americana U.S. News &   World Report  mencionou que dois terços de empréstimos de mais  de 150 milhões de dólares, concedido pelo Eximbank ao Brasil,  seriam aprovados “se e quando o Brasil estabelecer a ordem eco nômica em sua casa”. Outro empréstimo, destinado ao transporte  ferroviário aqui, seria concedido segundo determinada fonte, desde  que “o Brasil se desprenda desses folgazões políticos e consolide  todos os serviços ferroviários numa só empresa eficaz”. Outra  exigência era quanto ao número de empregados na rede de ferro vias. Em 1956, declaração conjunta firmada pelos dois governos  estipulava, como condição do empréstimo, em negociações, “o en corajamento [pelo Brasil] ao máximo do capital privado nacional  e estrangeiro”. E mais: “a adoção [pelo Brasil] de uma política  geral de molde a incentivar a participação de cidadãos norte-ame ricanos no desenvolvimento econômico do Brasil”. Até o fim de  1956, os créditos do Bird ao Brasil chegaram a pouco mais de 194  milhões de dólares, com uma singularidade: 109 milhões eram  destinados ao grupo Brazilian Traction  (a Light obteve três emprés timos, com garantia do governo brasileiro sempre, concedidos pelo  Bird diretamente à matriz no Canadá e por esta reemprestados às  suas subsidiárias aqui) mas, na discriminação da Sumoc, constam  como empréstimos canadenses. Triste de quem não verifica o que  está atrás das estatísticas oficiais. O presente sumário histórico do endividamento brasileiro  ficaria prejudicado sem referência ao processo conhecido como  “serviço da dívida”. Como tal entende-se a sistemática da remessa  de cambiais destinadas a pagar juros e amortizações de emprésti mos contraídos e acumulados. As cambiais eram obtidas pelos  saldos da balança comercial, quando existiam, e normalmente. Na
 medida em que o endividamento crescia, o serviço da dívida tor nava-se pesado, depois insuportável, impondo acordos com os cre dores, fundings  ou mesmo a suspensão dos pagamentos. O endi vidamento brasileiro, no primeiro período e parte do segundo,  visava particularmente cobrir os déficits da balança comercial.  Tais déficits, tomados em decênios e em milhões de contos de réis,  valores da época, cresceram de 2,2 — no decênio 1821-30 — para  3,8 — no decênio 1831-40; e para 5,3 — no decênio 1841-50. Isto  significa que, não encontrando na troca de mercadorias os saldos  em divisas necessários ao serviço da dívida, a saída estava em con trair novos empréstimos, isto é, aumentar o montante da dívida. Esta passa, efetivamente, de 2,7 milhões de contos de réis,  no decênio 1831-40, para 3,8 ditos, no decênio seguinte. Cresceu,  pois, e se convencionarmos o índice 100 para o ano de 1825, ela  passou ao índice 90, em 1850, mas porque contada em moeda  estrangeira, em libras no caso. Em moeda nacional, ao contrário,  ela passa do índice 100, de 1825, ao índice 163, em 1850. Diminui  em moeda estrangeira e cresce em moeda nacional, portanto. Isso  por força das desvalorizações cambiais. Tais desvalorizações fazem  aumentar o montante da dívida e de seu serviço, impondo a tomada  de novos empréstimos e, portanto, o aumento do endividamento. Essa deformação cresce, na segunda metade do século, com  a particularidade de que passamos a obter saldos comerciais. Mas  os saldos comerciais, agora costumeiros, não resolvem a situação,  e a dívida externa continua a crescer e o seu serviço a pesar cada  vez mais. Nos três decênios iniciais da segunda metade do século  XIX — fase de grande desenvolvimento da economia brasileira,  apesar do escravismo — a balança comercial foi negativa em 11,6  milhões de contos de réis, no primeiro (1851-60), mas foi positiva  em 18,9 milhões de contos de réis, no segundo (1861-70), e em  34,3 ditos, no terceiro (1871-80). Acontece que, no primeiro desses decênios, à parcela nega tiva de 11,6 milhões de contos de réis, devemos somar a parcela  negativa de 5,3 milhões de contos no serviço da dívida. No segundo  decênio (1861-70), quando há um saldo comercial de 18,9 milhões  de contos, temos de deduzir dele 12 milhões para o serviço da  dívida (63%). No terceiro (1871-80), quando o saldo comercial  ascende a 34,3 milhões, o serviço da dívida absorve 16,7 milhões
 (49%). Isto é, de cada duas libras de saldo, uma se destina ao  retorno à Inglaterra, para pagar juros de empréstimos, que conti nuam a crescer, pois os novos empréstimos passam de 4,1 milhões  de contos, no decênio de 1851-60, a 9, no decênio 1871-80. No segundo período, quando era de esperar, com o fimding   de 1898, que as coisas melhorassem, isso prosseguiu. A balança  comercial visível, em milhões de esterlinos, passou da média 11,  em 1899-1903, à média 15, em 1919-1923, mas a dívida externa  passou, respectivamente, de 54 para .124. A média anual da balança  comercial, de 1919 a 1923, mostra um aumento de 38% sobre a  de 1899-1903, ao passo que a dívida externa apresenta um aumento  de 129%. A quota de amortização e juros, da ordem de £ 10.000.000, em 1924, elevou-se a mais do dobro, nos anos seguintes. O serviço da dívida, assim, torna-se o problema fundamental,  para os responsáveis pelos negócios nacionais. Há um momento a  partir do qual as chamadas divisas, quando obtidas pelo saldo na  troca de mercadorias, passam a ser absorvidas em percentagem  enorme pelo serviço da dívida. Dialeticamente, surge a mudança  qualitativa, com o contrário repontando, quando se constata a  impossibilidade em continuar. Nos diversos períodos em que divi dimos o endividamento brasileiro, isto ocorreu, assumindo fisio nomia diferente em cada caso. Estamos, agora, enfrentando, nova mente, um desses momentos, quando se torna impossível continuar.  A saída de novos empréstimos — e a afirmação de que tais em préstimos, quando nos são creditados na origem são saldos —  esgotou suas possibilidades. Claro que isso aconteceu por força das proporções que o  fenômeno apresentou, particularmente quando da vigência da  orgia econômica e financeira da ditadura imposta em 1964 e aper feiçoada em 1968, quando não houve limites para os desmandos:  sob a esfarrapada roupagem da repressão política, mal apareciam  os traços de uma política econômica levada ao extremo limite na  tendência em transferir lucros ao exterior, concentrando-os ao  máximo no interior os relacionados com o que aqui ficava. Uma  exposição, ainda que sumária, desses aparentes desatinos — na  verdade, uma operação fria, meticulosa, sistemática — , escapa das  possibilidades do presente texto. Necessita de tratamento específico.  É uma outra história.
 CRISE E M UDANÇA Consequência da crise capitalista de 1929, de um lado, e de  conjuntura particular, resultante de condições internas, de outro, o  movimento de 1930, no Brasil — convencionalmente tratado como  revolução —, correspondeu a mudança significativa na política do  país. Foi desse movimento, em cuja preparação se empenhara, que  surgiu a figura de Getúlio Vargas, personagem central da vida bra sileira por um quarto de século. Vargas e o movimento de 1950  conjugaram-se perfeitamente: o movimento foi etapa importante  da ascensão burguesa no país, revelando o desenvolvimento aqui  das relações capitalistas, e Vargas se afirmaria como o maior diri gente que a burguesia brasileira conheceu, um interprete sagaz de  suas necessidades e de seus anseios. Entre 1930 e 1954, quando se suicidou, em espetacular deci são, que paralisou aqueles que pretendiam derrubá-lo, Vargas en frentou com extrema habilidade a tormenta que tem assinalado o  avanço das relações capitalistas no Brasil, isto é, a profunda resis tência aqui das forças do atraso. Seu fim dramático e o documento  que o define politicamente, a carta-testamento — libelo antiimpe-  rialista de inaudita violência denunciadora — , encerra, por outro  lado, a etapa histórica caracterizada principalmente pela acomoda ção entre o avanço capitalista e a penetração imperialista no Brasil.  Vargas, em primeiro lugar, foi, em termos políticos e de forma  inexcedível, o orientador e quase sempre o executante da política  chamada, por força das circunstâncias, de conciliação, pela habili dade de suas manobras, pela flexibilidade de suas decisões e, parti cularmente, pela possibilidade, ao tempo, da coexistência entre o  crescimento dos capitais nacionais e de sua renda, de um lado, e  a remuneração dos investimentos estrangeiros e penetração deles,  de outro lado. A partir de sua morte, a acomodação estará condenada, a con ciliação estará encerrada. Ultrapassado o curto período de interi nidade do vice-presidente Café Filho, que completou o período para  o qual Vargas havia sido eleito, chega à presidência Juscelino
 Kubitschek e define, particularmente em seu Plano de Metas —  pretensamente destinado a fazer a economia brasileira avançar cin-  qüenta anos em cinco —, uma opção deliberada: a opção pelo  imperialismo. O Plano de Metas, realmente, assentava, de modo  essencial, na entrada maciça de investimentos estrangeiros, forte mente subsidiados pelo Estado brasileiro. De imediato, tal opção  abre um período de tormenta política que culminará, em 1964,  com a derrocada do regime vigente no país e implantação de um  regime antidemocrático. Em 1954, com o suicídio de Vargas, por tanto, não morre apenas um homem, personalidade destacada da  vida pública brasileira —, finda uma política. É importante, por isso mesmo, examinar o quadro em que  essa personalidade se destacou, de tal forma que tal quarto de  século ficou conhecido como “ Época de Vargas”. No quadro inter nacional, é o momento da crise de 1929, que tem efeitos em exten sa área do mundo e que, na América Latina, provoca a derrubada  das situações estabelecidas e instaura uma fase de prolongada ins tabilidade. A crise geral encontra correspondência, naturalmente  que em graus diferentes de intensidade, em cada um dos países do  continente, todos gravitando na órbita norte-americana, com a par ticularidade argentina de vínculo com a Inglaterra. No caso, fun cionam, para as formas que assumiu a repercussão da crise em  cada país, os mecanismos de transferência de efeitos das crises,  transferindo às áreas dependentes, ou às áreas coloniais, parcela  ponderável de seus prejuízos. Em cada país, por sua vez, a classe  dominante opera mecanismos que transferem os ônus às classes  que fornecem o trabalho. Um ensaísta espirituoso, depois, deno minou tudo isso de socialização dos prejuízos. Claro está que isso  correspondia, também, a uma concentração dos lucros. O caso brasileiro apresentava características muito particula res, quanto a tal processo, uma vez que a sua estrutura econômica  estava em mudança, passando do estágio de “essencialmente agrí cola”, como se costumava dizer então, para justificar o seu atraso,  a um estágio industrial. Tal passagem se acelerara com a l.a  Guer ra Mundial que, pela interrupção dos fornecimentos externos ao  mercado brasileiro, impulsionara a substituição de importações. A  guerra funcionara como barreira alfandegária. O crescimento do  mercado interno e a necessidade de abastecê-lo estimularam o apa recimento de um parque industrial fundado na produção de bens
 de consumo, indústria leve, de empresas em geral pequenas mas  em constante desenvolvimento. Acontecia, já de alguns anos antes, progressiva transferência  de renda da área de produtos tradicionais da agricultura de expor tação, destacadamente o café, para outros produtos da agricultura,  mas já na categoria das matérias-primas, e particularmente para  a indústria. A crise de 1929, com todos os seus efeitos negativos,  trouxe um segundo momento de impulso ao parque nacional de  indústrias, acelerando aquela transferência de renda, uma vez que  a crise ferira justamente a área exportadora de produtos agrícolas  que, em termos políticos, era conservadora. Assim, a particulari dade brasileira, quanto à crise, permitiu ao país emergir dela antes  mesmo das áreas mundiais mais desenvolvidas, antes dos Estados  Unidos, centro de gravidade e foco de origem da crise. E emergir  com uma configuração econômica e financeira diferente. A guerra,  como primeiro momento, e a crise, principalmente, representaram  momentos em que o avanço das relações capitalistas se aceleraram,  no Brasil, com profundos efeitos políticos e sociais. Com o movi mento de 1930 e o fim da chamada república velha, no nível  político; e a ascensão burguesa e crescimento da pequena burguesia  e do proletariado, no nível social. Começa a funcionar uma nova  estrutura social, realmente, quando as contradições se agravam e  começam a desenvolver-se em novo ritmo. É o início da “Época de  Vargas”. É interessante verificar o quadro apresentado pela América  Latina, quando isso acontece. Convém lembrar que, desde os tem pos coloniais, o continente, na parte Sul, ficou repartido, e repar tido quase pela metade: metade da América do Sul é de origem  espanhola, a outra metade é de origem portuguesa. Desde aqueles  tempos, também, e agora abrangendo toda a América, a área espa nhola debruçava-se principalmente sobre o Pacífico e o Caribe,  com centros de gravidade no México e no Peru, só aparecendo  na área do Atlântico a Argentina, com papel destacado no sécu lo XIX, quando a área portuguesa debruçava-se sobre este oceano,  espaço fundamental das trocas com os mercados europeus. Existiu, por tudo isso, uma tradição de dispersão, de distan ciamento, de isolamento entre o Brasil, de um lado, e os países de  origem espanhola do continente, de outro lado. Claro está que  esse traço foi severamente alimentado pelas metrópoles, porque
 dividir lhes permitia explorar melhor suas colônias, e foi ainda  alimentado pelo fato de que a Inglaterra — que presidiu o movi mento de independência dos povos ibero-americanos no início do  século XIX — faria de sua tradicional aliança, ou o predomínio  assim batizado, com Portugal, uma aliança com o Brasil, tornando-o  instrumento de intervenção nos países vizinhos de origem espanho la. Tudo aquilo que a historiografia oficial brasileira conhece como  “questão platina” não passa da seriação de episódios que balizam  o papel exercido pelo Brasil como procurador dos interesses co merciais britânicos. O que se pretende frisar, com a menção a esse passado histó rico, é o sentido tradicional de distanciamento entre os países latino-  americanos, quando não de hostilidade, tratados separadamente  cada um deles pelas metrópoles políticas ou econômicas e por aque la que mais influiria em seus destinos, desde os fins do século XIX,  os Estados Unidos. Os referidos países jamais alcançaram o nível  mínimo de política comum, face àquelas metrópoles. O que se  convencionou conhecer como pan-americanismo, no século XX, não  passou jamais de fórmula diplomática de tutela de Washington  sobre uma espécie de quintal, em que cada um era tratado de  maneira apropriada, quando dos problemas fundamentais, levados  a plenário na OEA, entidade apenas destinada à consagração for mal. A Argentina, que prolongou bastante os seus laços com a  Inglaterra e se conservou, no conjunto pan-americano, em posição  discreta, teve esse papel discrepante encerrado depois da 2.a  Guer ra Mundial. Ora, o início da “ Época de Vargas” assinala o aparecimento  de uma iniciativa destinada a romper e rematar com essa tradição  de distanciamento entre as nações latino-americanas. A aproxima ção do Brasil com a Argentina foi um passo nesse sentido, passo  ainda hesitante quando do governo do general Justo naquele país,  que antecedeu as iniciativas da fase Vargas-Peron, contra cuja apro ximação o imperialismo desencadeou terrível campanha. Todas as  tentativas do primeiro período do governo de Vargas — entre 1930  e 1 9 4 5  — foram ferozmente estigmatizadas e nenhuma delas teve  conseqüência prática. Os países latino-americanos continuaram  como fornecedores de alimentícios e matérias-primas e consumido res de produtos acabados, pagando os prejuízos do que a economia  batizaria, em nossos dias, de deterioração das trocas, pela ascensão
 contínua dos preços destas e flutuações constantes dós preços da quelas. Quem poderia sonhar, naquela época, com uma Opep não-  petrolífera? Um dos aspectos fundamentais do desenvolvimento das rela ções capitalistas nos países latino-americanos, de um modo geral,  e do Brasil em particular, reside na heterocronia em relação ao  desenvolvimento do capitalismo no nível mundial: enquanto, neste,  o capitalismo entrou em sua fase de crise geral, naqueles países  ele atravessa etapas iniciais, por força da lei do desenvolvimento  desigual. As áreas centrais e originárias do desenvolvimento capi talista — Europa e Estados Unidos — comandam uma constelação  de áreas dependentes, em que relações capitalistas emergentes en-  trelaçam-se e coexistem com relações pré-capitalistas tradicionais,  ancoradas em seu passado colonial. No Brasil, para o entendimento mais profundo do avanço ca pitalista, é preciso não esquecer a vigência de quatro séculos de  escravismo, extinto quando o século XIX se aproximava do fim —  em passado recente, portanto. Essa herança escravista afeta gra vemente não apenas as características da burguesia brasileira mas  também, e principalmente, as características de seu proletariado,  recrutado majoritariamente no campo. Ora, no campo está, na maio ria esmagadora dos casos dos países latino-americanos, a inércia  histórica, a presença do passado, configurada com destaque no mo nopólio da terra. Sem reforma agrária, realmente, não se poderá desenvolver  livremente, vigorosamente, o capitalismo em tais países. Neles,  realmente, o desenvolvimento do capitalismo está imprensado en tre o atraso nas relações vigentes no campo e a intensidade da  ação imperialista. A burguesia brasileira, de formação recente, vive  contradições associadas a esse duplo aspecto, a essa pressão dupla.  Ora, se ela não encontra condições para resolver sequer a contra dição interna — com o latifúndio — que estreita o mercado inter no, sente maiores dificuldades ainda para resolver a contradição  externa, com o imperialismo. Está presente, para ela, ao longo de  seu desenvolvimento, a ameaça representada pelo seu inseparável  acólito, o proletariado. Daí o fato de que as instituições ditas democráticas — re sultantes, nos países de economia avançada, de etapa histórica já  distante e consolidada — padecem, na América Latina, de vigên-
 cia difícil, conturbada, pontilhada de crises políticas, sucedendo-se,  normalmente, a breves períodos de relativa liberdade, largos perío dos de regimes autoritários, de base militar na maioria dos casos.  Daí a insistência do imperialismo em assegurar-se o controle do  aparelho militar dos países dependentes, para usá-lo em seu bene fício, na preservação de seus interesses nesses países. O imperia lismo detém, pois, condições suficientes, até agora, para manter  divididos e até conflitantes os países do continente. Para justificar  uma identidade — que, na verdade, não existe, muito ao contrá rio — entre os Estados Unidos, de um lado, e os países americanos  de origem ibérica, de outro lado, é indispensável criar um inimigo  externo comum, uma ameaça a todos, vinda de fora do continente.  Essa ameaça pode ser a guerra, em alguns casos. Nos últimos tem pos, tem sido o comunismo. Este o fantasma que ronda o continen te e contra o qual é preciso defender-se com uma “doutrina de  segurança nacional” adrede fabricada. Doutrina que as burguesias  latino-americanas esposam, sempre que surge no horizonte políti co qualquer ameaça ao seu domínio. Vargas expressou os interesses e as necessidades da burguesia  brasileira em desenvolvimento, presentes tais condições. Foi assim  que, nos anos trinta, entre a sua posse e o início da 2.a  Guerra  Mundial, ele, aproveitando-se da crise de 1929, que abalava a  economia dos países capitalistas desenvolvidos, buscou aproximar  o Brasil da Alemanha e do Japão, para equilibrar a tendência  tradicional em relação aos Estados Unidos, já enraizada na econo mia e na política brasileiras. Essa aproximação cresceu rapida mente e se firmou de molde a parecer definitiva, gerando graves  preocupações em Washington. Vargas não fez mais do que operar,  então, em sentido contrário à política externa antes orientada pelo  barão do Rio Branco. Este buscara, particularmente através do chamado pan-ameri-  canismo, neutralizar a dependência em relação à Inglaterra, prin cipal credora do Brasil, com a aproximação com os Estados Unidos.  Vargas fez o caminho em sentido inverso, e a aproximação com a  Alemanha e o Japão corresponde ao desejo de neutralizar a depen dência em relação aos Estados Unidos. Os êxitos alcançados por  essa política foram expressivos. Em uns poucos anos, o algodão  ameaçou a absoluta primazia do café no valor da exportação bra sileira com aqueles países, privados dos fornecimentos norte-ame
 ricanos naquela fase. A eclosão da 2 a Guerra Mundial pôs termo  a tal polítipa que, assim, não durou o suficiente para alterar o  quadro tradicional. Entre as suas conseqüências ficou, entretanto,  a influência política que vigorou no Brasil, naquela altura, e que  estimulou a busca de fórmulas próximas das fascistas e nazistas ou  daquelas ligadas ao militarismo nipônico. Vargas caminhou, então, para o chamado Estado Novo, que  foi a forma assumida pela extrema centralização política e pela  limitação extrema das franquias democráticas no país. A 2.a  Guer ra Mundial, configurando a derrota do nazi-fascismo e do milita rismo japonês, liquidou também com o citado regime brasiíeiro.  Em resumo, então conclui-se que, no primeiro período da “Época  de Vargas”, redundou em fracasso a tentativa de uma aproxima ção com o país de origem espanhola mais próximo e mais rico, a  Argentina, para a busca de uma política comum, e resultou em  fracasso a tentativa de aproximação com países europeus e orien tais para atenuar o primado norte-americano. Ao fim da 2.a  Guerra Mundial, quando, no Brasil, as condi ções exigem a liquidação do regime autoritário, Vargas empreen de uma tentativa audaciosa: a de procurar uma ampla base popu lar para o regime a ser instaurado e que consolidaria o primado  da burguesia no conjunto nacional e no controle do Estado. Mas,  como aconteceria com Peron, a sua sorte está marcada: a 29 de  outubro de 1945 é deposto. O Brasil perde a sua grande oportuni dade histórica, naquela fase, em conseqüência da “guerra fria”  então instalada, para definir um regime com um mínimo de fran quias democráticas. Ora, a “guerra fria” é a base ideológica que gera as justifica ções da subordinação à política norte-americana: existe uma ameaça  externa que interessa a todos e a cada um dos países americanos.  Começa a pactomania de Foster Dulles: o controle do mundo ope ra-se através de pactos militares, porque a guerra é iminente. Essa  ameaça” justifica, também, a insana orientação econômica do go verno brasileiro da época — continuação do Estado Novo com  disfarces democráticos — de consumir suas divisas acumuladas  durante a guerra, pela redução das importações, na compra de  materiais que deveríam ser estocados para a hipóteses, considera da fatal, de novo conflito. De credor, o Brasil passou a devedor e
 deixou de aproveitar aquelas divisas para reaparelhar a sua in dústria. O mundo do pós-guerra, em 1945, encontrou a América La tina debilitada economicamente. Os acordos com os Estados Uni dos, feitos à base das. concessões obrigatórias, pela existência de  um inimigo comum e poderoso — o eixo Roma-Berlim-Tóquio —  haviam forçado os países latino-americanos a cederem ao comprador  norte-americano suas matérias-primas e alimentícios a preços bai xos e estáveis. O malbarateamento das divisas mesmo assim acumu ladas, com a paz, completaria a exploração. Vargas participou das  eleições gerais, após a sua deposição: foi eleito senador por dois  estados e deputado por cinco, apresentando o singular fenômeno  de um ditador que provava deter enorme popularidade e dispor  de extensa base política, apesar de despojado do poder por um  golpe militar. Isto foi apenas uma demonstração de que a sua política, real mente, por vezes apodada de sinuosa, visava dotar a burguesia de  base ampla, que lhe permitisse travar as suas lutas, aquelas ne cessárias à defesa de seus interesses de classe. Sem essa base política  ampla, ela não teria condições para resistir às pressões do latifún dio e do imperialismo. Este, agora concentrado, retornaria ao ce nário mundial com descomedida fúria, em busca do lucro máximo,  desde que a sua principal fonte de renda, a guerra, estava finda.  Era preciso, por isso mesmo, manter o mundo no clima de ameaça  de guerra. Com o impasse atômico — no período de monopólio atômico  pelos Estados Unidos, estes extorquiram do mundo dependente van tagens imensuráveis — constatou-se que a ameaça de guerra é mais  rendosa do que a guerra, uma vez que esta seria a própria des truição da humanidade. Vargas pronunciou, no Senado, três dis cursos, denunciando o descalabro financeiro e econômico a que  o país estava sendo levado, e retirou-se do cenário. Em seu retiro  foram buscá-lo as forças que ele sempre conduzira e beneficiara,  para torná-lo candidato à presidência da república, em disputa  eleitoral. Como candidato de oposição, fato inédito na vida bra sileira, foi o escolhido, apesar de todas as tentativas de esbulho. Voltava ao poder, entretanto, sob novas condições. O mundo  já não era o mesmo, nem o Brasil. A correlação de forças havia
 mudado. A habilidade de manobra, de que dera sobejas provas  no passado, não seria suficiente, agora, para levá-lo à conquista dos  objetivos a que se propusera. No cenário mundial, o imperialismo  lançara-se à guerra da Coréia e pressionaria no sentido da coopera ção dos satélites latino-americanos com tropas. As exigências mili tares feitas ao Brasil cresciam a cada passo. Na medida em que  elas cresciam, cresciam, paralelamente, as exigências económicas.  Os investimentos imperialistas assumiam proporções enormes e exi giam proteção absoluta. As opções que se apresentavam a Vargas não eram de molde  a lhe permitir base para uma orientação estável e contínua, dotada  de firmeza. Na medida em que cedia ao imperialismo, perdia seg mentos de sua base política; na medida em que resistia ao imperia lismo, criava ameaças ao seu destino pessoal e político. A concilia ção chegava ao fim, o espaço de manobra se estreitava a cada  passo. Foi quando Vargas novamente tentou a manobra de aproxi mação com a Argentina, onde Peron exercia um papel em muitos  pontos semelhante ao dele no Brasil. A fúria desencadeada pela  propoganda reacionária, diante do que as forças do atraso viam  como atividade criminosa, porque lesiva aos seus lucros e interes ses não teve limites. O cenário nacional ficou logo conturbado com sucessivas tem pestades. Entre Vargas e Peron — entre a Argentina e o Brasil,  na verdade — criaram-se entendimentos e desentendimentos que  tornaram inviável o estabelecimento de uma política comum face  a ameaças comuns. Os dois países tratavam separadamente os seus  problemas. E se isso acontecia com eles, que já haviam alcançado  condicões para esboçar profícuos entendimentos, acontecia tam bém com os demais países latino-americanos. A campanha contra  Vargas atingiu o seu clímax em agosto de 1954. Ele encontrara  no fortalecimento da área estatal da economia um caminho a per correr, onde a rentabilidade econômica, financeira e política apa recia agora como promissora. A vitória pela exploração monopolista  do petróleo pelo Estado, a maior campanha de opinião que o Bra sil conheceu, marcou a sorte de Vargas, como a constituição da  Eletrobrás, e ainda se acentuou com a intenção de fiscalizar a  fraude na remessa de lucros das empresas estrangeiras levada ao  cúmulo.
 Em três semanas, de 5 a 24 de agosto, com a cruzada da im prensa e do rádio, na maior campanha de difamação que o país  conheceu em todos os tempos, criou-se o clima que levaria à sua  deposição, praticamente decidida. Foi quando ele gerou a reversão  do processo, com a trágica e espetacular decisão de pôr termo à vida.  O que a reação pretendia, em agosto de 1954, era justamente o que  viria a alcançar, dez anos depois, em abril de 1964: a derrocada  do regime democrático e a capitulação da burguesia brasileira. A   denúncia formulada ,por Vargas, em sua carta-testamento, com o  extraordinário eco que a tragédia do suicídio encontrou em todo  o mundo, criou as condições para um movimento de massas que  impediu a reação de aprofundar o golpe, levando-o às últimas con-  seqüências. Com Vargas encerra-se uma fase da história brasileira. O  que acontece, a partir daí, é uma fase nova, cujo delineamento  aparece com o governo de Juscelino Kubitschek. Esse período de  governo, realmente, assiste à passagem definida de uma face a  outra. Contém um pouco do passado, que lhe permite a compatibi lidade com o regime representativo, e muito do futuro, pela opção  deliberada em favor da subordinação ao imperialismo, definida  fundamentalmente na entrega da política econômica e financeira  aos elementos comprometidos com as multinacionais aqui estabe lecidas e na formulação de um plano em que o desenvolvimento  se limitou à fixação de determinados índices de crescimento quan titativo — muitos dos quais seriam alcançados pelo simples cres cimento da economia — para cuja consecução abria-se o país a  investimentos maciços de teor imperialista. Tratava-se de conferir ao desenvolvimento econômico um rit mo vigoroso de acumulação capitalista sem, entretanto, romper com  as áreas de resistência, particularmente a do monopólio da terra.  A compatibilização de um modelo desse tipo acarretaria, natural mente, o agravamento das contradições da sociedade brasileira,  com sérios reflexos no nível político. Kubitschek conseguiu, real mente, concluir o seu período de governo, apesar do surto infla cionário e apesar das perturbações constantes e tentativas de golpe  militar. Mas já o seu sucessor, Jânio Quadros, foi obrigado a re nunciar, e João Goulart, vice-presidente e sucessor de Quadros,  foi deposto.
 A posse de Kubitschek, a renúncia de Quadros, a posse de  Goulart deram lugar a tentativas de rompimento do regime vi gente, pela via do golpe militar — a mais usada no caso bra sileiro —, coroado de êxito, finalmente, em 1964. A simples enu meração de eventos políticos como os citados e de tentativas su cessivas de golpe autoritário, e o seu triunfo ao final da série, assi nalam a instabilidade a que a opção pelo modelo de subordinação  ao imperialismo apresentava, como condição implícita e intrínseca.  E assinalam, por outro lado, o fim da compatibilidade do modelo  adotado com um regime político com o mínimo de condições de  liberdade. O modelo levava, naturalmente, impositivamente, a um  regime de força. Impô-lo exigia atos autoritários. Daí as sucessivas  tentativas de golpe, até a eclosão daquele que daria acabamento  à transição e estabeleceria o novo modelo. A conciliação estava  liquidada. O regime estabelecido no Brasil, com o golpe militar de abril  de 1964, levado ao extremo limite dos atos de dezembro de 1968,  e a sucessão de governos exercidos por chefes militares, empenhan do as Forças Armadas na execução de um modelo político, econô mico e social novo na história brasileira — modelo, aliás, esta belecido ao influxo das doutrinas imperialistas elaboradas nas  condições da “guerra fria” — conheceu duas fases: uma fase pre paratória, entre a conquista do poder e a eliminação dos últimos  resquícios de liberdade, isto é, entre abril de 1964 e dezembro  de 1968; e uma fase, a segunda, de acabamento, de plenitude da  ação ditatorial, entre dezembro de 1968 e abril de 1979; quando  se inicia a terceira fase, a de declínio e exaustão do modelo. O modelo começou, assim, com uma inflação da ordem de  90% ao ano — e este foi um dos pretextos para a deposição  de Goulart — e está alcançando agora, em julho de 1989, uma  terceira ameaça, a de hiperinflação. Atravessou, realmente, um pe ríodo intercalar em que a política econômica e financeira conse guiu, a custos sociais e nacionais altíssimos, reduzir a inflação a  cerca de 40%. Como é sabido, a inflação é um dos processos mais  rudimentares e comuns para transferir renda dos não-possuidores  para os possuidores, de quem trabalha para quem possui. No Bra sil, ela teve caráter crônico, com alguns períodos agudos. Os pe ríodos de agudização resultaram dos já mencionados mecanismos  de transferência de efeito das crises cíclicas do capitalismo, em
 escala mundial, do exterior para o interior e, aqui, da classe domi nante aos trabalhadores e pequena burguesia. A atual taxa infla cionária representa a exaustão do modelo para a tarefa de explora ção do trabalho, no Brasil, como da exaustão do modelo para  manter o fluxo da renda do interior para o exterior. Numa econo mia dependente, como aquela que o modelo brasileiro imposto pela  ditadura escolheu e estabeleceu, não há condições para resistir às  pressões do exterior, de vez que a estrutura do modelo depende do  exterior. Sua vulnerabilidade é, na maior parte, explicada por esse  vínculo com o exterior, isto é, com as matrizes imperialistas. Parece claro que a fase de declínio do modelo, chamado de  “milagre brasileiro” por alguns servidores da impostura, assinalou,  em nossa história, o máximo em todos os índices importantes,  pelos quais se mede o desenvolvimento de um país: o índice de  analfabetismo cresceu extraordinariamente, frustrando o esforço de  reduzí-lo, que vinha sendo empreendido; o índice de desemprego,  por outro lado, denunciador de crises subjacentes, assumiu propor ções inéditas, agravando acentuadamente o aviltamento do traba lho e o nível dos salários; o índice de mortalidade infantil, outro  que atingiu níveis clamorosos, aponta a precariedade do modelo  para atenuá-lo; o nível do endividamento externo, alcançando ago ra mais de cento e vinte bilhões de dólares, mostra o que foi a  orgia financeira estabelecida pelo dito “milagre’  — verdadeiro mi lagre para a finança internacional — e mostra a verdadeira fisio nomia que ele apresenta; o índice de remuneração do trabalho,  também, é um libelo contra a exploração a que é submetido o  trabalhador brasileiro. São dados que, além da expressão numérica,  já de si alarmante e escandalosa, mostram como a presença do  imperialismo e do latifúndio estabeleceram limites já inexcedíveis e  chegaram ao fim. Qualquer conhecedor de economia política, ainda em seu ní vel mais rudimentar, conhece o processo de concentração que re sulta, intrinsecamente, do próprio desenvolvimento capitalista, na  medida mesmo em que desaparece ou tende a desaparecer a eco nomia de concorrência, impondo-se a economia de monopólio. O  século XIX começou a conhecer cartéis, trustes e monopólios, cujo  aparecimento assinalava, então, a fase de amadurecimento do re gime capitalista. Essas formas de concentração, em sentido hori zontal como em sentido vertical, surgiam da associação natural
 entre os diversos elementos que as compunham. Assim, era natural  que as grandes e cartelizadas empresas ligadas à produção de aço  englobassem empresas mineradoras e empresas carboníferas, culmi nando com empresas siderúrgicas. E que a verticalização se am pliasse, em alguns conjuntos, de forma a vincular estreitamente  empresas financeiras, empresas industriais e até empresas comer ciais. Todas com um vínculo que era a identidade e a homoge neidade, apesar dessa espécie de divisão do trabalho, no nível do  capital, que era a forma como se apresentavam. A economia mundial e capitalista, após a 2.a  Guerra Mundial,  entretanto, apresentaria formas de centralização e de agrupamento  empresarial até então desconhecidas. Surgiu, em primeiro lugar, o  conglomerado, isto é, a conjugação de empresas de natureza di versa e de nível diverso nos grandes conjuntos que logo começa ram a definir uma dimensão diferente da concentração. O conglo merado se caracterizava, na forma, pelo fato de agrupar empresas  heterogêneas. Apareceu, por último, a multinacional, simples pseu dônimo dos grandes monopólios internacionais. Uma empresa mul tinacional — e todos os grandes monopólios são internacionais e  multinacionais — não o é pelo fato de possuir fábricas, por exem plo, em diversos países, além daquelas que possui no país de  origem. Uma empresa multinacional representa, em essência, a ex ploração em áreas nacionais diversas de fatores de produção que  vão da força de trabalho à matéria-prima, passando pelo mercado. Essa multinacionalidade, além de tudo — de vez que os lu cros são sempre convertidos e remunerados na moeda do país de  origem —, confere a tais empresas uma flexibilidade extraordinária,  a capacidade de compensar prejuízos circunstanciais e a manobra  de transferir lucros e de dispersar geograficamente o parque indus trial e as entidades comerciais de forma a assegurar o lucro máxi mo e o máximo de segurança para esse lucro. A multinacionalidade  é um fenômeno peculiar à fase imperialista do desenvolvimento  do capitalismo e cria situações anômalas, como aquela em que  países ainda em etapa atrasada de desenvolvimento da economia  podem apresentar segmentos de grandes proporções ou significa ção, inteiramente em disparidade com o conjunto da economia na cional. Exemplos que ilustram e esclarecem essa disparidade disper sam-se pelo mundo: o da refinaria de Abadã é um deles; ela não
 resultou do desenvolvimento econômico e tecnológico do Iran, mas  é um elemento inserido na economia iraniana, fornecedora da ma téria-prima com que a refinaria trabalha. Não é, pois, possível  nem razoável aferir do desenvolvimento da economia iraniana pela  existência de uma indústria sofisticada como a citada refinaria.  Outro exemplo seria, para não repetir o de refinarias, a existência  de empresas como a do canal de Panamá ou a do canal de Suez,  no início do século XX; elas não resultaram de etapa natural do  desenvolvimento da economia do Panamá ou do Egito, foram ne las inseridas por força de imposições vindas do exterior. A anomalia é aqui mencionada apenas para facilitar rápida  análise de fenômenos aparentemente anômalos que ocorrem em paí ses ditos subdesenvolvidos. A divisão em desenvolvidos e subde senvolvidos, aliás, é eufemismo destinado a disfarçar a verdadeira  diferença entre países imperialistas e países explorados pelo impe rialismo. Vem se prestando a distorções de toda natureza e con some hoje numerosa bibliografia que, longe de penetrar a essência  do problema, contribui para a alienação. Esta referência ao cará ter das multinacionais e às distorções que a existência e o funcio namento delas inserem nas estruturas de produção — de que a fun damental é a lesão ao caráter nacional da acumulação capitalis ta — vem a propósito de dois problemas hoje no palco das dis cussões. O primeiro é o problema do imperialismo exercido por países  cujo desenvolvimento capitalista não atingiu essa etapa. O segundo  é o problema do capitalismo monopolista de Estado, que surge  também nos referidos países e também em contradição com a etapa  realmente atingida neles pelo capitalismo. Bem analisado, o pri meiro seria deslindado com a análise da participação nessa expan são para o exterior de estruturas políticas e econômicas cujo  desenvolvimento natural não a exigiria, de empresas e até de sis temas de empresas que não são nacionais, mas funcionam no terri tório de onde partem para o lance no exterior. Por exemplo: até  que ponto investimentos nacionais ditos brasileiros operados em  países vizinhos são, realmente, investimentos brasileiros? Até que  ponto o capitalismo monopolista de Estado, em funcionamento no  Brasil, representa uma etapa natural do desenvolvimento da eco nomia brasileira? Ele serve, na realidade, às multinacionais aqui
 instaladas, mais do que às empresas de capital autenticamente na cional. Mas não é aqui o lugar para essa análise. Um dos fenômenos mais interessantes do mundo contemporâ neo é o da desigualdade no desenvolvimento do capitalismo. É  fácil compreender os problemas apresentados pela singularidade de finida por alguns países em que o capitalismo se desenvolve justa mente na fase histórica em que ele, na dimensão mundial, está  na etapa de crise geral. Paralelamente a tal anomalia — mais apa rente do que real, uma vez que resulta de boas e sólidas razões  e obedece à lei do desenvolvimento desigual — surge, para aque les países que não atingiram ainda a etapa capitalista ou nelas  apenas se iniciaram, a possibilidade de suprimir a etapa capitalis ta em seu desenvolvimento. Embora seja este um tema fascinante,  não é aqui o lugar para discutí-lo, também. Mas é de todo pertinente mostrar como o desenvolvimento  desigual, no caso de países, como o Brasil, em que o crescimento  da acumulação capitalista é já importante e em que as relações  capitalistas se alastram e se aprofundam — entraram já no campo,  abalando fortemente as suas estruturas tradicionais — , proporcio na anomalias gigantescas que enganam às vezes os observadores  e os estudiosos. Trata-se, em primeiro lugar, de admitir que o nível  de desenvolvimento das relações capitalistas no Brasil não é ainda  aquele que o define como tendo atingido a etapa imperialista. E,  no entanto, é fácil constatar que há empresas brasileiras que inves tem no exterior, como já foi mencionado, em países vizinhos, par  ticularmente, e auferem renda de tais investimentos. Essa renda é  convertida em moeda brasileira, em parte, mas também na moeda  que funciona para a troca universal em nosso tempo e por força  de acordos internacionais. É já de certo vulto o conjunto de tais  operações, embora não de forma a definir o capitalismo brasileiro,  como já foi dito, como tendo atingido a etapa imperialista, tanto  mais que os lucros, no caso, são divididos por investidores de  origem nacional diversa. Mas o fato existe e afeta as relações do  Brasil com outros países latino-americanos. A sua anomalia pode ria ser explicada com a constatação de que ela não resulta, ou  não resulta apenas, do desenvolvimento endógeno do capitalismo  brasileiro, em muitos casos, mas da ação de empresas multinacio nais operando no Brasil. Restaria quantificar o fenômeno, e isto
 exige pesquisas acuradas. O problema é aqui colocado porque ateia  as possibilidades de ação comum de países latino-americanos. Resta discutir o problema da existência do capitalismo mo nopolista de Estado em países em que a economia capitalista não  atingiu, por razões endógenas, tal etapa de desenvolvimento. Antes  de examiná-lo, convém lembrar que, no Brasil, pelo menos, a exis tência de uma área estatal da economia foi, antes, um elemento  de progresso e até de estímulo democrático. Aqui, realmente, a  exploração do petróleo em regime de monopólio estatal resultou  de ampla campanha de opinião e representou vitória singular das  forças interessadas no regime democrático. Admitia-se que, em paí ses de capitalização lenta e fraca, necessitados, entretanto, de inves tir maciçamente em empresas de função fundamental na propulsão  do desenvolvimento — como aquelas ligadas ao fornecimento de  energia sob qualquer de suas formas — , a única possibilidade de  não depender de capitais estrangeiros para isso seria encarregar-se  o Estado de tais investimentos, pelas suas possibilidades de acumu-.   lação e por ser detentor de órgãos de orientação da economia. Até o último governo Vargas, realmente — e ainda nisso o  seu fim foi o fim de uma fase — , a área estatal da economia  funcionava como componente nacional dela, resistindo à compo nente imperialista. A partir do golpe militar de 1964, entretanto  e mesmo a partir do período preparatório e de gestação que foi o  governo Kubitschek, essa colocação começou a sofrer reparos. Co meçou, na verdade, a surgir a interrogação cuja resposta seria de finidora: a quem o Estado serve? A burguesia brasileira, de que  Vargas foi o grande intérprete e dirigente, participou intensamen te da campanha em favor do estabelecimento do monopólio estatal  do petróleo, como havia participado da fundação da siderurgia  nacional e continuou a participar de lutas pela nacionalização da  energia elétrica. Mesmo após o golpe militar de abril de 1964, o  Congresso, desfalcado de seus melhores elementos, convenientemen te depurados pela cassação de seus mandatos em discriminação  cujos motivos eram evidentes, só aprovou a lei de remessa de lu cros das empresas estrangeiras aqui estabelecidas pela diferença  de um voto. A resistência da burguesia ficava denunciada nesse pronun ciamento contra a franquia às multinacionais da exploração do tra balho brasileiro, mesmo num momento de crise, quando a burgue-
 sia havia abandonado as suas bases populares de política — que  Vargas se esforçara por constituir e manter — para aderir ao regi me então imposto, na esperança de que este a salvasse do comunis mo, apresentado, no momento, como o fantasma a exorcizar. A  partir de 1964, e particularmente a partir de 1968, quando a di tadura se aprofundou, eliminando qualquer resquício de franquias  democráticas, o Estado brasileiro e a economia estatal, entretanto,  trabalham para as multinacionais, e a área estatal da economia  passou a subsidiar a área multinacional da economia. Era a reve lação do caráter essencial do regime que necessitaria instalar  o terror para assegurar a manutenção do modelo adotado e que  seria aperfeiçoado adiante sob a vigência do mesmo terror. Apresenta-se, então, na estrutura da economia brasileira, como  anomalia, pois derivada de condições exógenas, de imposições do  imperialismo, o fenômeno do segmento de capitalismo monopolista  de Estado, inteiramente em defasagem com o desenvolvimento na tural e endógeno da economia do país. E começam as empresas  estatais a apresentar graves problemas de administração, que levam  a Companhia Siderúrgica Nacional à beira da falência, em 1989,  e comprometem profundamente o funcionamento da Petrobrás como  da Eletrobrás. Tratava-se de fornecer o Estado, com prejuízo, aço  e energia para que as multinacionais apresentassem grandes lucros.  Era um capitalismo monopolista de Estado estranho, que operava  em favor do imperialismo, pois. O subimperialismo, de um lado, e o funcionamento desses seg mentos de capitalismo monopolista de Estado, de outro, assinalam,  portanto, a presença dos investimentos estrangeiros no país e a  cobertura privilegiada que lhes era concedida pelo Estado nacio nal, estruturado este no modelo ditatorial e repressivo. Claro que  não foi esta a única forma de proteção fornecida pelo Estado, aqui,  à área multinacional da economia. Esta área, antiga no país, tomou  extraordinário desenvolvimento no período de governo Kubitschek  e, quando tal período terminou, depois de esgotar os seus serviços  às multinacionais, a implantação de uma forma autoritária e estrei ta de poder público repontou como solução intransferível. Esta  solução, entretanto, acabou por exaurir-se e a ditadura foi compe lida a largar o fardo, cabendo os ônus ao povo brasileiro. O que foi apresentado aqui de forma sucinta, insatisfatória  para a necessidade de análise de fenômenos de grande complexida-
 de, está ligado à dispersão e ao isolamento em que vivem os países  latino-americanos. Unidos, como sonhou Bolivar, seriam dotados  de condições para resistirem ao imperialismo e capazes de alcança rem a vigência de regime político de conteúdo democrático, com pre dominância das liberdades elementares. Teriam mais contatos cul turais e se conheceriam melhor. Dividir para bater e explorar foi  o princípio de que se serviram os dominadores, desde a fase colo nial. A América Latina, e não apenas o Brasil, vem conhecendo,  desde muito tempo, regimes de força impostos pela violência mi litar e repousando todos, ultimamente, na mesma doutrina, a cha mada “doutrina de segurança nacional”, que consiste em colocar o  Estado, em cada um, a serviço das multinacionais, sob o pretexto  de que o inimigo é o próprio povo de cada um desses países,  contra o qual deve ser acionado um aparelho repressor ricamente  dotado de meios para o uso da violência. Começaram a surgir, a partir de 1974, com a exaustão do mo delo, e com o agravamento da crise geral do capitalismo em dimen são internacional, sinais de que as classes oprimidas dos países  latino-americanos, mais mobilizadas em uns do que em outros, e  a burguesia, na conformidade com a sua capacidade em cada um,  retomam as lutas para o restabelecimento de novas condições de  vida política. As mudanças de que o Brasil vem sendo palco, de  alguns anos a esta parte, assinalam, realmente, a retomada, pela  burguesia brasileira, da defesa de seus interesses, e a consciência  de que não a poderá efetivar sem base política, isto é, sem o apoio  de outras classes. A sorte do subimperialismo, como dos segmentos  de capitalismo monopolista de Estado, como os rumos de uma  política mais rigorosa de composição com os demais países latino-  americanos, dependerá do processo em curso. Cujas perspectivas  se apresentam promissoras desde que, para romper o impasse ori ginal, seja alcançada uma frente comum de luta.
 POPULISMO Não tem sido puro acaso a difusão, entre nós, de conceitos  como populismo e totalitarismo, que ganharam espaço em estudos  acadêmicos e passaram à linguagem comum. Um dos aspectos mais  curiosos da luta ideológica, realmente, é aquele ligado à confusão conceituai. Ela faz passar como verdades indiscutíveis falsidades  transparentes, que não resistem à menor análise. A velha técnica  da repetição lhes dá consistência. A falta de clima para a dis cussão científica ou política, ainda em seus níveis preliminares,  permite duração a conceitos que carecem totalmente de sentido.  Eles são por vezes cultivados pela superficialidade de comentaris tas e pelo deliberado propósito ou por ambos, sendo difícil estabe lecer a distinção entre uns e outros. Em alguns casos, trata-se de  simples divergência semântica em ciências que, entre nós, não ga nharam ainda a maioridade. Nesses casos, denunciam apenas mais  uma das debilidades do conhecimento, mesmo no nível acadêmico,  e constituem uma das características mais evidentes da desestrutu-  ração da universidade aqui. Claro está que há sempre pessoas  válidas no meio acadêmico e tais mazelas não alcançam a totali dade de congregações cujo recrutamento é discutível mas a que  pertencem, como exceções, figuras dignas do maior respeito e até  de admiração. A ignorância e um de seus melhores disfarces, a  superficialidade, é que se pavoneiam; o saber é humilde e simples. Seria longo discutir aqui — e no sentido matemático, não  no sentido retórico — a série de conceitos que configuram mais  destacadamente a confusão conceituai que, estabelecida com arro gância acadêmica, participa da luta ideológica. Convém, pois, li mitar o campo. De passagem, o primeiro conceito a discutir seria  o de totalitarismo. Nas épocas de intensa repressão, como aquela  de que há pouco mal emergimos, uma posição ambígua foi muito  convenientemente adotada por criaturas em que não eram acen tuados nem o saber, nem a compreensão, nem a coragem. Essas  criaturas esconderam-se, habitualmente, atrás da confusão concei-
 tual e a ambigüidade lhes permitiu sempre apresentar disfarces  curiosos. Entre eles, e com destaque, em determinada fase, certa  virulência crítica que se marcava pela negação de valores até aí  aceitos. Outro disfarce foi aquele de apresentar uma posição mais  à esquerda do que a esquerda conhecida e identificada, para dar  duro combate a esta. Uma posição de ultra-esquerda foi o disfarce  mais comum que a reação assumiu, em certo tempo. Claro que,  ainda aqui, há que ressalvar aqueles que assim procediam por  honesto propósito, ainda que ingênuo, de fazer uma revolução ver bal onde não havia condições para uma revolução real. Uma das  ambigüidades conferidas por esse disfarce foi o de exorcizar o que  apelidaram de totalitarismo. O conceito, cuja confusão era adrede  explorada, escondia a verdade mas não escondia a ambigüidade.  Aquele que afirmava combater o totalitarismo tornava idênticos,  para os efeitos a que se propunha, o socialismo e o fascismo. Em  nível ainda inferior, e mais infeliz embora menos pretensioso, co locava-se aquele que, no aceso da luta ideológica, particularmente  face à repressão vesânica, dizia-se do centro, isto é, nem da es querda, nem da direita. Os confusos conceitos de esquerda e de direita correspondem a  uma espécie de sofisticação dos conceitos de Leste e Oeste, ou  Ocidente e Oriente, depois também marcados pelos de Norte e Sul.  Como é sabido, estabelecer uma divisão do mundo entre ocidental  e cristão e oriental e socialista — habitualmente se escreveria co munista — sem mencionar o hipotético meridiano que os limita  importava, além de tudo, em omitir que o marxismo é uma criação  ocidental e a sua execração surgia porque o socialismo soviético  estava, geograficamente, situado a Leste ou Oriente da Otan. A   divisão Norte-Sul, que apareceu depois, supunha o mundo reparti do pelo equador e não por um paralelo qualquer: ao Norte, esta riam os “ricos", ao Sul, os “pobres”, como se todos os países ao  Norte do equador fossem iguais. Seria muito mais prático e objeti vo definir — mas isso não convinha aos propósitos desse geogra-  fismo ideológico suspeitíssimo — que o mundo está simplesmente  dividido em explorados e exploradores. Claro, assim, que a divisão  Norte-Sul consiste em sonegar a divisão verdadeira, entre países  socialistas e países capitalistas ou submetidos aos países capita listas.
 O conceito de totalitarismo, muito usado nas análises políti cas e sociológicas que o saber acadêmico costuma praticar, na cá tedra, no livro, na imprensa, confunde, como sinônimos, socialismo  e fascismo, já se disse, e permite ao usuário afirmar-se distante de  um e de outro. Isso, que em linguagem comum de leigo pode pas sar por desconhecimento primário, desculpável, mostra a sua pro positada ambigüidade quando na linguagem acadêmica. Não há  pessoa medianamente informada que desconheça serem opostos,  visceralmente contrários, fascismo e socialismo. A divisão perten ceu sempre à luta ideológica e lhe forneceu suporte para toda a  sorte de falsidades e torpezas. Pois o ensaísmo político brasileiro,  mesmo antes do estabelecimento da ditadura e da repressão e do  terror cultural, usou e abusou do conceito de totalitarismo, escudan-  do-se na propositada confusão que ele estabelecia ou ajudava a  manter. A afirmação de que as ditaduras fascistas ou parafascistas  que o imperialismo estabeleceu ou ajudou a estabelecer, particular mente na América Latina, eram em tudo formas de totalitarismo  como as que o fascismo, o nazismo e o militarismo vinham estabe lecendo no mundo, em sua área desenvolvida e fora dela, e que  todas elas correspondiam ao “totalitarismo” estabelecido nas áreas  socialistas, marcou época e acabou por se firmar como conceito  estabelecido e incontestável. Não há que perder mais tempo na discussão do conceito de  totalitarismo. Ele nos desajudaria, pelo dispêndio de espaço ainda,  na discussão do motivo principal desta análise, do conceito de po-  pulismo, mais importante para aprofundamento do problema polí tico brasileiro contemporâneo. Porque esse conceito, realmente,  ocupa hoje amplo espaço na bibliografia política, histórica e so ciológica brasileira. Pertence, além do mais e principalmente, à  discussão partidária, servindo de escudo para argumentações di versas, no nível polêmico. Nos acirrados debates, iniciados pratica mente há mais de meio século, em 1930, com o avanço da burgue sia, ocupando crescente espaço na área do poder aqui, o conceito  de populismo foi uma poderosa arma, usada como demolidor e  desmoralizante tacape para deter o avanço no Brasil das forças  populares. Convém frisar, a esta altura, que a categoria povo  —  desfigurada solertemente nas polêmicas e até infamada de maneira  torpe — é aqui utilizada no sentido que definimos em livro há
 alguns anos.1  Não tem sentido genérico, pois. Mas foi na signifi cação genérica, que a desfigura e falseia, que a palavra povo foi  colocada para se desdobrar naquilo que a sociologia e a chamada  ciência política denominaram populismo. Entra agora a necessidade de retirar a discussão do clima ne buloso em que ela se processa nos últimos decênios, quando o  populismo aparece como injúria, para lhe reconstituir as origens  históricas. Sem essa pesquisa histórica, a discussão perderia senti do. E a pesquisa, para justa colocação do processo, deve ir até as  origens e ao avanço das relações capitalistas no Brasil e ao con-  seqüente avanço, em relação dialética com aquelas, de uma classe  social, a burguesia, ascendendo na estrutura social brasileira. Em bora alguns confusionistas admitam e até afirmam que o capitalis mo, aqui, data da fase colonial — para eles, foi implantado por  Cabral —, a verdade é que as relações capitalistas brasileiras co meçaram a crescer a partir de 1850. A independência foi uma  empresa da classe dominante de senhores, senhores de terras, se nhores de escravos, senhores de servos. Já em 1844, Alves Branco  faria a reforma tarifária, tributando gêneros importados que os  acordos de 1810 e de 1824 haviam isentado de dirèitos de entrada.  É também a época, em 1850, da suspensão do tráfico negreiro, com  a correspondente transferência de investimentos da área do tráfico  para a da agricultura cafeeira em expansão e para o primeiro  impulso de industrialização que o Brasil conheceu. É a época,  realmente, da construção ferroviária, da construção naval, do trans porte urbano, dos serviços públicos, do telégrafo, do cabo subma rino, de empreendimentos como o do estaleiro da Ponta d’ Areia  e empresas que deram destaque ao nome de Mauá, o primeiro  grande capitalista nacional, o primeiro grande burguês. Como a  classe senhorial, que moldara o império à sua imagem e seme lhança, era absoluta em sua dominação, a burguesia em início era  dela dependente e, portanto, ainda débil. Foi essa debilidade da  burguesia que comprometeu Mauá: ele faliu pelo desamparo em  que o Estado o deixou e suas empresas passaram às mãos de ingle- 1  “Em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos  sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do désenvolvimento  progressista e revolucionário na área em que vive” (Nélson Werneck Sodré,  Introdução à revolução brasileira  (4.a edição, São Paulo, 1978)).
 ses e norte-americanos, principalmente os primeiros. Eram empre sas que, no conjunto, montavam a centenas de milhares de libras  esterlinas, um valor considerável para a época. Nos fins do século XIX, no entanto, assentando em causas  que seria longo enumerar, as relações capitalistas já mostravam  acentuado avanço e a burguesia daria, com as reformas dos anos  oitenta — há um século, portanto —, um passo à frente. Um passo  de certa importância. Era um avanço conservador, no entanto,  porque a criação do mercado de trabalho era recente. Embora o  desenvolvimento brasileiro, na época, se tenha operado segundo  uma vertente conservadora — obedecendo à correlação de forças  reinantes —, é fora de dúvida que ãs reformas do fim do século —  abolição e república destacadamente — marcaram o modesto avan ço de relações capitalistas inseridas no amplo quadro do desen volvimento agrícola. A ^ . república oligárquica, na verdade, foi a  sucessora do latifúndio escravista, o Brasil arcaico constituía a pai sagem dominante. Mas aquele avanço, ainda que modesto, significou  o avanço também modesto da burguesia, já disputando espaço. É  a época de formação do mercado de trabalho livre, formação que  atendeu aos interesses da classe dominante, importando na liqui dação do escravismo e no advento da imigração sistemática, sub sidiada pelo Estado. Tanto num caso como no outro, no caso da abolição e no  caso da imigração, essa intervenção do Estado no processo do  desenvolvimento econômico era um fato novo e singular. Foi essa  intervenção, obedecendo a uma estratégia solerte, que permitiu a  liquidação do escravismo — definido nas leis do Ventre Livre e  dos sexagenários mais do que no ato final da abolição — e a  criação do mercado de trabalho, com o trabalho livre, em que os  assalariados ganham espaço. Estava, pois, acabado o lento e tortuo so processo que foi no Brasil o aparecimento de certo montante  de riqueza — pelo surto cafeeiro e crescente valor na exportação —  que passou a ser capital, de um lado, e, de outro lado, o apareci mento e crescimento de numerosa massa de trabalhadores sem  meios de subsistência, unicamente detentores de força de trabalho.  Essas duas premissas, de que se gera o capitalismo, delinearam-se  nitidamente nos fins do século XIX, com as origens na metade do  século. Mas o poder, o controle do Estado, na época, era detido
 pela classe senhorial. A burguesia gravitava em torno dessa classe  antiga e lhe acompanhava os valores. Como sabemos de história vulgar, a ascensão burguesa nos  modelos clássicos — Holanda, Inglaterra, França —, repousou no  apoio da plebe, isto é, das classes e camadas inferiores, que forne ciam o trabalho, no campo e na cidade, naquele principalmente. O  modelo clássico de revolução burguesa, realmente, operada a revo lução no Ocidente europeu, apresenta como premissa necessária  a aliança da burguesia e da plebe, para vencer a nobreza e, depois,  estruturar o Estado à feição de seus interesses. Nessa segunda fase.  de aproveitamento do êxito, a luta de classes se definirá pela con tradição entre a burguesia, agora classe dominante, e o proletaria do e o campesinato. Mas na fase inicial a aliança entre elas é que  cria as condições necessárias à revolução. A essa aliança, gerada  no processo histórico, os acadêmicos da época batizariam de po-  pulismo, com sentido positivo. O fato é que a luta ideológica do  tempo não exigiu o aparecimento desse conceito. A aliança da  burguesia com o povo era natural e bem entendida e aceita por  todos, menos aqueles que perderam com ela. Mas os que perde ram, então, se nada queriam com a burguesia, menos ainda com  o povo, a que detestavam. Para crescer e para disputar o poder, no Brasil, a burguesia  necessitou sempre, permanentemente, do apoio das classes e  camadas inferiores. Ao longo do tempo, aqui, no século XIX, em  suas décadas iniciais, o poder foi dominado e moldado pela classe  senhorial de proprietários de terras. Foi o que se conheceu como  república oligárquica: o país era repartido em estados federados  em que o poder era detido pelas oligarquias, isto é, por número  reduzido de famílias que detinham a propriedade da terra. Com  isso, controlavam o poder, revezando-se nele os seus elementos.  Todos os abalos, na época, desvendavam o esforço da burguesia,  crescente economicamente, para ascender politicamente. Esforço  que exigia dela buscar o apoio popular, isto é, das classes e cama das que forneciam o trabalho. Esforço que colocou, realmente, no  centro dos acontecimentos, a questão do poder e que motivou su cessivos e intervalados abalos, sempre girando em torno do poder.  Foi por isso que, na república oligárquica, as crises ocorriam quan do da sucessão presidencial, em âmbito nacional, e das sucessões  estaduais, em âmbito provincial. Essas crises rompiam, momenta-
 nea ou transitoriamente, o monolitismo aparente da classe domi nante. Eram crises em que a burguesia, em papel secundário,  buscava espaço. Eram brechas pelas quais se infiltravam represen tantes mais aguerridos dela. A grande ruptura ocorreu com o movimento armado de 1930,  abalo político que correspondeu ao abalo econômico da crise de  1929. As relações capitalistas vinham em avanço, com impulso  singular quando da 1* Guerra Mundial, em que investimentos in dustriais cresceram para suprir o mercado interno privado das  importações. A crise de 1929, a maior que o capitalismo em escala  mundial conheceu, deu novo impulso às relações capitalistas aqui  e o quadro se completou com a derrocada da economia agrícola  exportadora. Era uma fase, pois, de ascensão burguesa e de declí nio da classe senhorial fundada na propriedade da terra. Agora, a  burguesia tinha condições para disputar o poder e, realmente, com  o movimento armado de 1930 e com o governo provisório, ela  opera a sua hegemonia no processo, buscando remodelar o Estado  à sua feição, à feição dos seus interesses. Para isso, contou com o  apoio popular indispensável. Ao contrário de seus antecedentes  históricos, de rebeliões regionais e provinciais, o movimento de  1930 revestiu-se de caráter nacional. Essa dimensão nacional de fine a hegemonia burguesa no processo. Mas essa hegemonia  não teria sido possível sem o apoio e a tácita aliança das classes  trabalhadoras. Elas não participam da luta senão com parcelas urba nas mais ativas, mas tornam clara a sua afinidade e simpatia com  a burguesia agora hegemônica. Com o movimento armado de 1930,  realmente, as relações capitalistas provam a sua dimensão, no con junto da economia nacional, e a burguesia passa a classe dominan-  le, na sua revolução inacabada, operada por lances sucessivos.  Revolução que teria sido impossível sem apoio popular. Como é sabido, o Brasil conheceu curtos períodos de liber dade separados por longos períodos de arbítrio. Entre 1930 e 1935  ocorreu um desses excepcionais períodos de liberdade. O pensa mento retrógrado costuma batizar de agitação tudo o que acontece  em tais períodos, porque neles tudo é posto em questão, debatido,  controvertido, contestado. A fecundidade desses períodos provém  justamente dessa fisionomia tormentosa, em que as contradições da  sociedade afloram, tornam-se agudas e manifestam-se de muitas  maneiras, algumas assumindo mesmo forma ameaçadora e inquie-
 tante. No poder, a burguesia deseja, agora, tranqüilidade. E as  circunstâncias históricas — que não são acidentais — vão lhe  proporcionar uma solução para a busca da tranqüilidade. Por força  da lei do desenvolvimento desigual, a ascensão burguesa no Brasil  coincidiu com a crise geral do capitalismo em escala mundial. A  crise de 1929, culminando a seriação das crises cíclicas do capita lismo na fase imperialista, abala profundamente as estruturas na cionais. O Brasil, no entanto, com as relações capitalistas em ascen são, tem condições, ajudadas pela pausa na pressão imperialista  aqui, para emergir muito cedo da crise e realizar significativas mu danças na estrutura do poder. A crise mundial, entretanto, culmi nando com a ascensão política das formas repressivas do poder  configuradas no fascismo, no nazismo e no militarismo, influem  poderosamente por toda parte. Essa face é a máscara política  de que é a face oculta a crise econômica. A repercussão desse mo vimento alastrado e ascensional da violência de Estado chega ao  Brasil e acarreta aqui singular inflexão no processo de ascensão  burguesa. Para a conquista do poder, em 1930, a burguesia, seguindo  a ordem natural da composição política, não só se voltou para a  classe trabalhadora, particularmente o proletariado, como se com prometeu na concessão de espaço e de direitos àquela classe. O  curto período de liberdade, até 1935, com o afloramento das con tradições da sociedade brasileira, assiste justamente a luta de clas ses em torno desse espaço e desses direitos. A circunstância exter na, na heterocronia do processo histórico global, entretanto, cria  condições para a inflexão antes referida. Para a qual concorreram,  naturalmente, condições internas, que se somaram às externas:  a luta interna levou a burguesia a recompor-se com as forças tra dicionais das quais se havia distanciado e a que havia combatido.  Em escala menor e factual: é a derrota do reformismo, de que o  tenentismo havia sido vanguardeiro, ante as forças políticas con servadoras, vencidas pelo movimento de 1930 e levantando agora  a bandeira de um constitucionalismo de conveniência. É com elas  que a burguesia se comporá para enfrentar as classes trabalhado ras. Como estas estavam em fase de aguerrido avanço, quebrado  com a “intentona” de novembro, há que enfrentá-las buscando um  figurino externo. Daí a ditadura conhecida como Estado Novo.  Como o nome queria fazer crer, a intenção era de dar ao Estado
 uma estrutura que permitisse à burguesia efetivar, sem participa ção do proletariado, as reformas que a consolidariam no poder. Quem se desligar da visão comum com que o Estado Novo se  apresenta — violenta e policial ditadura repressiva — e examinar  mais a fundo o que ele representou, vai verificar como, atrás dessa  face exterior, ele permitiu à burguesia operar, sem contar ou ne cessitar de apoio das classes trabalhadoras, as reformas indispen sáveis para consolidar as suas conquistas. Com o traço, que define  realmente aquela ditadura, de conciliar com o latifúndio e com o  imperialismo, numa etapa em que a coexistência com eles era pos sível e necessária mesmo, dado que a burguesia era recente e  débil. Grande parte daquilo que é específico da revolução burgue sa — menos o que afetou latifúndio e imperialismo — foi realiza do na época: a legislação se reveste de nítido sentido nacionalista,  o aparelho de Estado passa por acentuada reforma, surge o traba-  lhismo. Com o domínio total do poder e agora passando as forças  dos senhores de terras a subordinadas, a burguesia, para realizar  as suas tarefas, necessita do apoio dos trabalhadores urbanos, par ticularmente proletários. Volta a sua atenção para eles e, de cima  para baixo, de forma tutelar, estabelece a legislação trabalhista  calcada na fascista Carta dei Lavoro. Mas é impossível negar essa aliança, por pior que tenha sido  a ditadura do Estado Novo. Conquanto uma de suas características,  como a de todas as ditaduras, tenha se vinculado à propaganda,  nem só esta, entretanto, foi responsável pelo movimento de massas  que ocorreu então. Atos públicos, como os que se realizaram nas  comemorações do l.° de maio e outros, relacionados quase sempre  com decisões relativas ao trabalho, mostram que Getúlio Vargas,  personagem central da época, desfrutou de prestígio popular inco-  mum em ditadores. E tanto assim foi que, liquidado o Estado  Novo, e justamente pelos que dele haviam mais usufruído, e apea do do poder, o voto popular o fez senador por dois estados e depu tado por cinco para, adiante, levá-lo à presidência da repúbli ca como candidato de oposição. Nas raízes desse prestígio popu lar, o maior, sem dúvida, que um dirigente político alcançou no  Brasil, é fácil encontrar a sagacidade na busca da aliança da bur guesia, de que foi típico representante, com as classes trabalhado ras. Era retomar o fio da história, que assinalou sempre essa aliança  como traço da ascensão burguesa. A burguesia, para cumprir, ainda
 que parcialmente, as tarefas específicas de sua revolução, não po dia dispensar essa aliança. Note-se: não se faz aqui o julgamento  dela, não se entra no mérito. Esta é outra história. O grande malogro da extraordinária trajetória política de Ge-  túlio Vargas — personagem central da história brasileira em um  quarto de século — foi não ter sido vitorioso na consolidação dessa  aliança. Realmente, enquanto as forças de esquerda se opunham,  na medida de suas possibilidades, a essa operação, cujo conteúdo  distinguiam bem, as forças retrógradas a ela se opunham com  singular virulência. Vargas foi deposto da chefia do governo justa mente quando, com o fim da guerra e derrota do nazi-fascismo,  anunciava-se aqui a possibilidade de, incluindo agora o apoio das  forças de esquerda, consolidar-se aquela aliança. Tal possibilidade  e, portanto, de acabamento do que é específico da revolução bur guesa, alarmou profundamente as forças internas do atraso e as  externas ligadas ao imperialismo. Foi então que surgiu e começou  a se vulgarizar, pela repetição polêmica, o conceito de populismo.  Surgiu para estigmatizar a referida aliança, para vê-la como espú ria manobra a que não faltaria, nessa fúria verbal, a componente  subversiva. Embargar o andamento dessa manobra, torná-la inefec-  tiva, evitar a sua consumação foi a tarefa a que se dedicaram  afincadamente aqui as forças retrógradas, sempre resistentes ao  avanço, ao progresso, ao novo, aferradas ao statu quo.  O conceito  foi a injúria babujada na violenta propaganda política que impor tou em irremissível condenação do processo histórico. Na verdade,  Vargas era, na eventualidade, um instrumento da história, como  dirigente mais esclarecido que a burguesia brasileira conheceu. Se o movimento de 1930 não resultou, com a hegemonia bur guesa na composição do Estado e no comando das ações políticas,  no cumprimento das tarefas próprias da revolução social de que  seria uma das etapas mais destacadas, ele pelo menos efetivou  reformas que importavam em significativo avanço. A  maior dessas  reformas foi provavelmente aquela que passou despercebida: a de finição do mercado interno. Realmente, no grande arquipélago eco nômico brasileiro, com as ilhas distantes umas das outras e às vezes  fechadas, o que a república oligárquica operou foi o aprofunda mento das divisões regionais, uma das piores heranças das fases  colonial e imperial, esta como simples prolongamento daquela.  Esse divisionismo. que a grandeza geográfica ampliava, traduzia.
 na realidade, o resquício feudal da nossa formação. Os estados  federados assemelhavam-se, como as antigas províncias e as anti gas capitanias, a grandes zonas feudais, fragmentadas internamen te na teia de feudos menores, marcados pelos latifúndios mantidos  Pelas famílias mais importantes e tradicionais. A chamada república velha, aquela em que as oligarquias  regionais reinavam, levou os estados a estabelecerem tributações  por vezes pesadas para a circulação de mercadorias. Essa captação  úe recursos tributários fracionou o mercado e gerou uma guerra  tarifária interna. Era como se, na imensidade geográfica, países  diversos subsistissem. Ora, o movimento de 1930, de início, mas  particularmente depois da instauração do Estado Novo, quebrou  essas barreiras que freavam a circulação de mercadorias, e criou  o mercado interno. A política dos governadores, que o governo  retrógrado de Campos Sales 2  oficializou, correspondia à consagra ção desse fracionismo feudal. Essa estrutura política, montada adre de para preservar o atraso, refletia os resquícios de um feudalismo  anacrônico. De tal sorte, assim como resultou da fragmentação das  zonas produtoras, importava em singular fragmentação do poder.  Tal fragmentação ficaria demonstrada, escandalosamente, com o  fato de funcionarem nos estados federados organizações militares  que iam das polícias militares, assemelhando-se a exércitos esta duais, às forças irregulares que o latifúndio mantinha abertamen te. Assim, as duas faces estavam definidas: a da velha república  °hgárquica feudalizada e a que surgiu com o movimento de 1930  e o avanço de burguesia, criando o mercado interno, alavanca do  nosso desenvolvimento capitalista. " £ espantoso que a historiografia brasileira, naquela área em que viceja o  que denominamos história vulgar, tenha, na sua escala de valor, estabe lecido Campos Sales como um grande presidente, símbolo mesmo da  gestão exata da coisa pública. Na verdade, o período Campos Sales foi  um dos mais caracterizadamente retrógrados da história brasileira. Suas  concepções políticas, fáceis de verificação nos discursos parlamentares,  entrevistas e relatórios, são rudimentares. E isso não derivou de deficiên cias individuais, da pessoa, mas das condições de classe e da correlação  de forças em que a sua classe tinha para oferecer, definindo as suas  posições, os conceitos que se encontram em tais documentos. Campos  Sales caracteriza precisamente a república oligárquica, isto é, aquela polí-  tica em que a presença dos traços feudais era evidente.
 O Brasil foi palco, de 1930 a 1945, de uma luta extrema en tre o velho e o novo. Velhas foram, sob todos os aspectos, as rela ções feudais que aqui sempre importaram em fragmentação e  privilégio; novas eram as reformas que, avançando aceleradamen te às vezes, estagnando outras vezes, procuravam vencer os obs táculos ao desenvolvimento nacional. Ora, o mercado interno, a  unificação do poder político, o rompimento de barreiras impostas  à circulação da produção traduziam o novo. Essa luta que refletia,  no fundo e por vezes claramente, as grandes contradições históri cas que figuravam no cenário, assinala a crescente participação  das forças populares nas campanhas políticas e, no fim de contas,  correspondia ao confronto entre as que buscavam a aliança entre  burguesia e proletariado para fins específicos e as que se opunham  violentamente a esse processo, o único que, na época, permitiria  ao país a tarefa das reformas que importavam na liquidação dos  entraves ao nosso desenvolvimento. A  volta de Getúlio Vargas ao poder, em 1950, após o desas troso período de Dutra — exata encarnação do que o Estado Novo  tivera de hediondo —, que foi o maior esforço do atraso em manter  o comando político aqui, mostrava quanto a sua política, no go verno provisório, na ditadura, na presidência, no Senado obedecia,  nos seus meandros aparentes, a uma diretriz que, firmada em 1930,  iria até o seu trágico fim. Em circunstâncias extremamente desfa voráveis a essa política, ele insistiu no prosseguimento dos rumos  a que se propusera e enfrentou obstáculos consideráveis. O quadro  já era muito diferente daquele que existira na quarta e na quinta  década do século. Emergindo de uma guerra em que a destruição  fora gigantesca, mas que os deixara imunes a seus efeitos e ex traordinariamente enriquecidos, os Estados Unidos assumiram o  comando das ações internacionais, orientando o conjunto de deci sões que constituíram a chamada “guerra fria”. O seu aparecimen to no cenário internacional, como superpotência detentora de ri queza imensa e de imenso poder militar, com o monopólio das  armas atômicas, colocou todo o mundo sob terrível ameaça e,  quanto à América Latina, sob condições de extrema dependência.  Ora, esse recrudescimento do imperialismo, agora centralizado, se  contrapunha justamente à questão básica para países como o Bra sil: a questão nacional.
 O que caracterizou sempre o papel da burguesia foi a prio ridade, entre as duas questões fundamentais, a democrática e a  nacional, que deu a esta. Getúlio Vargas, enquanto personagem  histórico, grande dirigente do avanço da burguesia brasileira, ex pressou, em sua larga e tormentosa trajetória política, justamente  essa prioridade. Se a tarefa da burguesia, universal e historica mente, foi a de fazer avançar a questão nacional — o conceito de  nação nasce com a revolução burguesa, em termos universais —,  no Brasil ela se apresentava com uma diferença profunda, que se  tornaria específica: aqui, a opção pelo nacional se operava na fase  de virulenta expansão imperialista. Para alcançar sucesso em uma  política que fizesse da questão nacional tese destacada havia, pois,  que enfrentar o imperialismo em sua expressão mais aguda. Daí,  conseqüentemente, a necessidade ainda mais forte da busca de  apoio popular, com insistência máxima, com todo empenho. Sem  esse apoio, não seria possível avançar em uma política de desen volvimento nacional. Getúlio Vargas que denunciara em três dis cursos no Senado, antes de seu retiro para o Sul, o desastre da  orientação econômica do governo Dutra, buscou afanosamente re tomar e ampliar o apoio popular que granjeara e sem o qual nada  poderia construir. A fúria com que a reação se lançou à luta para impedir que  Getúlio Vargas realizasse a sua política foi o traço denunciador  da singular importância que lhe emprestava. Em sua campanha  presidencial, o candidato assumiu compromissos ligados às tarefas  peculiares à questão nacional e continuou a articular o apoio po pular que o levaria novamente ao poder. O fato de, depois, no  poder, não ter tido condições para dar andamento a tais compro missos não invalida a sua postura. Ao prestar contas ao povo,  em janeiro de 1954, das dificuldades que enfrentava e o relato que  então fez das variadas e sistemáticas ações da exploração imperia lista, mencionando cifras espantosas da retirada de lucros de ca pitais aqui investidos apenas nas áreas decisivas da estrutura da  produção, violentamente majorados com os recursos captados no  mercado interno de capitais — ao dizer a verdade, estava cavando  a sua sepultura. E a virulência da reação conservadora e retrógra da, em que o passado oligárquico e a herança feudal que o gerara  estavam espelhados, mostra como a contradição se aprofundara.
 Foi quando o qso do conceito de populismo se divulgou, pela  intensa repetição e assumiu o nível injurioso que acabou por lhe  denunciar o sentido e o conteúdo. Que significava o conceito,  assim empregado? Um daqueles que, anos depois, apenas o repetiu,  mostrando como, ao longo do tempo, ele se gravou na memória dos  ingênuos, assim o definiu: “Um outro tema que exige discussão é  a questão populista. [. . .] Em todo caso, se quisermos uma defi nição sucinta, o populismo implica em conexão direta entre um  povo mitificado e uma liderança carismático-messiânica num discur so que dilui a realidade das classes sociais. Um mito de povo, en carado como entidade homogênea, é o ponto central da ideologia  populista.” 3  Esta definição, embora com a parcela de verdade que  encerra, foi colocada em outros termos, por outro político, na mes ma época: “Tristemente, o país já testemunhou na sua história  recente o abismo a que foi conduzido pelo populismo inconse-  qüente [. .  . ] Este comportamento nos dá credibilidade, que será  exposta às claras, democraticamente, não só nas eleições munici pais como na eleição maior — a presidencial. Para enfrentar a  demagogia populista que ameaça voltar a vicejar.” 4  Não cabe aqui  distinguir, para clareza das intenções desses dois exemplos, as cir cunstâncias motivadoras de tal análise e de tal qualificação. Im porta, tão-somente para discutir o conceito, mostrar como a sua  divulgação abrangeu até aqueles que se empenham pela presença  efetiva do povo nas decisões políticas. 3 Este exemplo, como o que se segue, tirado, apenas para mostrar a genera lização do conceito e de sua confusão, contém uma parcela de verdade,  quando se refere à diluição da realidade da sociedade dividida em classes  na generalidade do conceito. Mas nisso reside, precisamente, a confusão  que tal conceito estabelece: a confusão pela sonegação da divisão e da  luta de classes. Sua finalidade fundamental, aliás. 4  Quando colocado no índex político por representantes da chamada esquer da, ou por simples liberais, o conceito prova a sua penetração, passando  a uso comum e simples pejorativo. A sua carga reacionária passa desper cebida e elementos de cuja intenção não é possível duvidar, conferem,  honesta mas equivocadamente, passe livre a uma impostura vulgar, [á  quando usado na linguagem acadêmica o problema se apresenta de ma neira diferente. Trata-se, no caso, de mais uma demonstração da superfi cialidade mais característica, embora disfarçada, por vezes, por uma in tenção supostamente revolucionária. Nada há de mais reacionário, na  verdade, do que um revolucionarismo equivocado ou malévolo. Problemas  de ambiguidade, sem dúvida.
 0  populismo varguista, na verdade, colocou alguns proble mas nacionais no palco e mobilizou o povo para a solução deles.  Claro que não era a política do proletariado mas a da burguesia.  O drama brasileiro consiste na terrível resistência das forças do  atraso, que representam o passado feudal, às reformas que perten cem historicamente à revolução burguesa. E que elas, por isso  mesmo, denunciam como socialistas. E por isso é que, em suas  campanhas, aquelas forças levantam sempre, desde 1930 e com  virulência desde 1935, o anticomunismo como bandeira única. O  anticomunismo foi no Brasil, de meio século a esta parte, a tônica  singular das campanhas liberticidas e retrógradas. O conceito de  populismo acabou por se incorporar ao vocabulário delas. Refletia  e reflete o horror que desperta a aproximação e a composição en tre a burguesia e os trabalhadores, particularmente os operários.  Por contraste, a carta testamento de Vargas, na hora amarga da  verdade, constituiria o mais sério libelo já levantado aqui contra  o imperialismo. Nada denuncia, por outro lado, quanto a campa nha contra a política de Vargas se valeu de um conceito falso.  Vargas morreu só, o Brasil acordou apenas no dia de sua morte:  só então vislumbrou a verdade. Esse conceito voltou a integrar o arsenal da reação, aqui,  quando da deposição de João Goulart. A campanha contra Jango,  desencadeada e mantida com a mesma incontinência de linguagem  que ferira Vargas, cresceu em intensidade quando foram colocadas  no palco as chamadas “reformas de base . Jango se distinguia  politicamente pela sua aproximação com o movimento sindical.  Essa aproximação correspondia, na época, à composição da bur guesia com o proletariado. Significava, do lado da burguesia, con-  solidá-la no poder e estabelecer condições para moldar o Estado  à feição de seus interesses — correspondia, no fim de contas, a  ultimar a sua revolução, que se vinha processando a prestações,  por lances às vezes distanciados, no tempo, uns dos outros. Do  lado dos trabalhadores e particularmente do proletariado, corres pondia à conquista de direitos elementares e à consolidação de  outros. No fim de contas, correspondia ao ingresso do proletariado  no cenário político, o que só poderia ser alcançado, naquela fase,  pela composição de alianças. O incipiente proletariado do Ociden te europeu — como o campesinato, a plebe em suma —, apoiou
 decididamente a revolução burguesa, ciente de que ela beneficiava  a burguesia. Sabia que beneficiaria também a plebe, porque con tinha o germe de outra revolução, a proletária. Na história, as  etapas contêm em germe as etapas futuras. No Brasil do século  XX, havia, da parte do povo, pelas suas parcelas mais conscientes  ou organizadas, o sentimento de que as reformas correspondiam ao  acabamento da revolução burguesa mas continham as premissas da  revolução socialista. O coro vesânico das forças reacionárias, na época, com o es tribilho do populismo e o fantasma do anticomunismo, visava tor nar inviáveis as chamadas “reformas de base”. Recorde quem  quiser o que elas eram e o que pretendiam e constatará que con sistiam em fazer avançar alguns passos uma revolução burguesa  inacabada, a nossa. A acusação de comunistas aos que as defendiam  e de socializante ao conteúdo delas era uma farsa a que só a repeti ção constante conferia a veiculação e a aparência de coisa séria.  Como, entre nós, os meios de comunicação, pelo controle que o  imperialismo exerce sobre eles através da publicidade e do domí nio da informação transformada em notícia, comportam-se sempre  como instrumentos de pressão na luta ideológica, o coro alcançava  ressonância no constante falseamento das coisas. Gerava-se o clima  de cruzada, que é artificialmente criado, de quando em quando,  para infundir temor e impor como verdade o interesse mais espúrio.  É um clima que resulta da conjugação de todos os meios de co municação — jornal, rádio e TV principalmente — batendo diaria mente na mesma tecla e compondo o coro. Assim ocorreu quando da campanha contra o monopólio esta tal do petróleo, contra o jornal Última Hora,  contra Vargas em  agosto de 1954, culminando com o suicídio dele, contra João Gou lart, em março de 1964, culminando com o golpe, a sua deposição  e o estabelecimento de uma ditadura justamente destinada a impe dir as reformas de base, destruir as organizações sindicais operá rias e liquidar os combatentes nacionalistas e democratas mais  ativos. O populismo compôs p refrão e o anticomunismo estabele ceu a música. Em 1954, em um mês, entre 5 e 24 de agosto, a  cruzada ferozmente desencadeada liquidou o governo Vargas e o  que ele representava, especificado na carta testamento. Em março  de 1964, em um mês, entre 8 e 31, a cruzada, outra vez acirrada  e com os mesmos elementos, liquidou o governo Goulart e o que
 ele representava, isto é, as reformas de base e a composição entre  a burguesia e o proletariado para ampliar o processo nacional. O pano de fundo desses episódios de destacada importância  em nosso desenvolvimento histórico, particularmente no acabamen to da revolução burguesa, foi, sem dúvida, a imobilidade e o si lêncio do campo, cuja situação esteve sempre vinculada ao mono pólio da terra. Em 1964, esse secular silêncio começava a ser  rompido e a reação feudal estava profundamente assustada com  essa perspectiva. O alastramento das relações capitalistas no cam po — seguindo o Brasil a via prussiana —, realmente, com todas  as deformações provocadas pelo desenvolvimentismo aqui inaugu rado com o período Kubitschek e sofisticado com o chamado “mo delo brasileiro”, começa a colocar na arena política o trabalhador  agrícola e completa o quadro em que a revolução burguesa neces sita com urgência ultimar o seu processo já tão retardado. Para  isso, necessita mais do que nunca de compor-se com o povo —  sempre visado injuriosamente no conceito do populismo — para  alcançar sucesso. A época de coexistência possível entre burguesia  e latifúndio terminou ou está próxima do fim. Mas a época, agora,  apresenta o imperialismo como o inimigo intransigente e poderoso. O regime instaurado em 1964 e completado em 1968, resultan te de uma composição de forças que isolou e derrotou politicamente  as forças populares, para só depois impor-se pelo uso das armas e  da violência policial repressiva, articulou o controle do poder pela  absoluta submissão ao imperialismo. Esse regime levou às últimas  conseqüências a orientação estabelecida no período Kubitschek, re cebendo a maciça entrada de capitais estrangeiros e a saída maciça  de seus lucros, como a cessão das riquezas minerais mais impor tantes e o crescimento acelerado do endividamento externo, para  dar a essas deformações dimensões historicamente inéditas. Na ver dade, assustada com as ameaças esquerdistas, levantadas pela cam panha publicitária de 1964, a burguesia aceitou compor-se com o  golpe que liquidou o regime democrático aqui. No quarto de século  em que sua associação ao imperialismo levou-a a distanciar-se dos  trabalhadores, aprendeu a ficar com a parcela menor dos lucros,  dividindo-os fraternalmente com as multinacionais. Esse curso in tensivo de aprendizagem política parece que lhe permitiu ver mais  claro o seu caminho. Os dias que correm, quando elaborou uma  constituição nova, parecem indicar esse sentido.
 Às forças populares, agora, abrem-se perspectivas novas de  avanço, com formas de organização mais sólidas e uma consciên cia política mais clara. Elas estão interessadas, como beneficiárias,  nas reformas que permitirão o acabamento da revolução burguesa  aqui. Tais reformas criam condições para que a passagem ao so cialismo se processe com mais facilidade e a custos sociais meno res. Não é preciso ter ilusões com a burguesia. Mas não é possível  desprezar as tarefas da revolução burguesa porque são dessa classe.  A composição entre a burguesia e os trabalhadores cria condições  para enfrentar o imperialismo e para liquidar de vez com o la tifúndio. Na realidade, a ditadura imposta em 1964, em sua larga  vigência, abriu uma nova etapa na vida brasileira, com a sua li quidação. As lições que esse período negro trouxe não podem e  não devem ser esquecidas. Na luta ideológica necessária para o  avanço, a confusão conceituai — de que o populismo foi exemplo  frisante — desserve porque estabelece a ambigüidade onde a cla reza é indispensável. As classes dominantes sempre se serviram da  confusão conceituai para alcançar os seus propósitos. O uso do  “economês” esconde a exploração econômica. A linguagem esoté rica visa sempre reservar o saber a poucos, os iniciados, os servi dores, os instrumentos. O longo uso de conceitos como populismo  e quejandos é exemplo preciso a respeito das formas como, na  luta ideológica, atrás do conceito está a quem ele serve. Que esse  uso seja repetido pelos leigos é possível levar à conta da ingenui dade de repetidores despreparados. Mas que seja objeto, como foi  até aqui, de larga bibliografia acadêmica é mais uma demonstra ção do quanto a universidade, nc Brasil, afundou na ampla crise  da cultura brasileira agravada em termos inéditos com o quarto  de século da ditadura obscurantista de que herdamos, infelizmen te, alguns remanescentes. Populismo é, pois, um conceito a arqui var. Já prestou ao que o criaram benefícios e vantagens suficientes  para desmistificá-lo. É um instrumento da reação.
 A ÉPOCA DE VARGAS Os argentinos, na necessidade didática de dividir a história  em períodos, com limites marcados por acontecimentos de relevo,  convencionaram conhecer como Época de Rosas  a fase do desen volvimento histórico do país sulino em que a figura destacada do  cenário foi a de Don Juan Manuel de Rosas, em torno da qual  as controvérsias, ainda hoje, giram, e com vigor extraordinário.  Um pouco fundado nesse exemplo, um pouco por força da impo sição da realidade de nosso próprio país, decidi batizar como Época   de Vargas  o período da nossa história iniciado com o movimento  de 1930 e encerrado, a meu ver, com o suicídio de Getúlio Vargas,  em 1954. Período importante, entre outros motivos, por ter sido  uma das etapas mais características do avanço de relações capita listas, no Brasil, e de ascensão da burguesia como classe. Classe de  que Vargas foi o excepcional dirigente. Quando me inclinei, ao ensinar a nossa história, pela aceita ção de uma categoria nova — a de revolução brasileira — para  configurar o tormentoso processo em cujo curso estamos ainda,  alguns professores, aferrados ao passado e infensos a mudanças,  tentaram, e inutilmente, resistir ao proposto, impugnando o con ceito. Hoje, ele é aceito sem resistência, porque corresponde à  realidade histórica, isto é, a um período de aceleradas transforma ções, de ritmo intenso, de que emergirá, sem a menor dúvida, um  Brasil inteiramente diverso daquele que estamos sofrendo. Assim  tem sido com o conceito de Época de Vargas.  A recusa à aceitação  deste conceito resulta das paixões que, ainda hoje, o nome de Var gas desperta. O fato de ter despertado paixões tão intensas, entre tanto, como que justifica o batismo, o conceito. Não voltaremos,  aqui, a discutí-lo. Consideremos, preliminarmente, a conveniência  em aceitá-lo. Na análise que ora tentamos, entretanto, não nos preocupará  todo o período, que convencionamos como repartido em duas fa ses: a primeira, de 1930 a 1945; a segunda, de 1945 a 1954. A  primeira fase compreende três lustros e foi pontilhada de aconte
 cimentos muito importantes: o próprio movimento de 1930, que  a iniciou; o governo provisório, com o declínio do tenentismo; a  primeira constituição, a de 1934, buscando configurar a fase em  novos termos; a radicalização política, com os movimentos arma dos de 1935 e de 1938, de esquerda o primeiro, de direita o segun do; a ditadura do Estado Novo, encerrada com o fim da 2.a  Guerra  Mundial, de que participamos, e, com o golpe de 29 de outubro,  a deposição de Vargas. A segunda tem início, justamente, com  Vargas em seu recolhimento, na Fazenda Itu, no Rio Grande do  Sul: compreende a campanha eleitoral para a presidência e o seu  período presidencial, culminando e tendo fim no dramático episó dio de seu suicídio, em 24 de agosto de 1954; compreende um  decênio. É desse decênio que nos ocuparemos aqui, isto é, apenas da  segunda e última fase da Época de Vargas,  aquela que começa com  o seu exílio, deposto por um golpe militar, em 1945, que assinala  o seu apogeu, com a consagração popular como candidato de opo sição vitorioso no pleito presidencial de 1950, e que marca o seu  declínio, com o conturbado período presidencial, que culmina e  se encerra com a terrível tragédia de 24 de agosto de 1954. Comecemos, pois, pelo princípio. Isto é, pela deposição de  Vargas, em 29 de outubro de 1945, por um golpe militar branco.  Para os que não viveram aqueles dias e não conhecem o episódio,  convém recordá-lo, em breves traços. O Brasil vivia sob um regime  autoritário, uma ditadura, gerada pela ascensão nazi-fascista no  mundo e por condições internas peculiares; a ditadura gerara-se  de um golpe militar, que encontrara, a encabeçá-lo, entretanto,  Getúlio Vargas, no poder desde a vitória do movimento de 1930.  Com a derrota da Alemanha nazista, da Itália fascista e do Japão  militarista, em 1945, havia que liquidar, aqui, o regime autoritá rio, já em desgaste interno profundo. Em dimensões mundiais, tra tava-se de uma fase de ascensão democrática, pois, e a liquidação  da ditadura brasileira deveria cingir-se às condições internacionais  dominantes, quando a União Soviética emergia como grande po tência de uma guerra que a debilitara, enquanto os Estados Unidos,  com o seu território poupado e o enriquecimento proveniente de  ter sido o arsenal dos aliados contra o eixo nazi-fascista, dava  início ao que se conheceu como “guerra fria”, com o lançamento
 das duas bombas atômicas, em Hiroxima e em Nagasaqui, adver tência clara e rude à União Soviética. A chamada redemocratização do Brasil, pois, situa-se como  episódio da “guerra fria”, nela inserido e dela dependente. Inter-  namente, quanto ao problema da redemocratização, surgem duas  correntes: a primeira, encabeçada por Vargas, pretende tirar provei to dos ensinamentos da guerra contra o nazi-fascismo, abrindo  perspectivas para a estruturação de um regime não apenas formal  em suas franquias democráticas, mas fundado em condições mate riais que alicerçariam a democracia, isto é, na liquidação das estru turas arcaicas, ainda dominantes entre nós; a segunda, comandada  do exterior e encontrando aliados no interior, preocupada em co mandar o processo de redemocratização de sorte que ele não exce desse os limites formais, mantendo, portanto, as velhas estruturas.  Essas duas correntes haviam convergido e se somado, para o esta belecimento, em 1937, da ditadura do Estado Novo; divergiam,  agora, quando ele chegava ao fim. Do ponto de vista mais significativo, o fundamental da diver gência fica evidenciado quando Vargas, pelo seu ministro Agame-  non Magalhães, elabora o projeto de lei que limita a formação de  trustes e monopólios — logo incriminado, em virulenta campanha  de oposição, como lei malaia.  A ameaça aos interesses de trustes e  monopólios, pois, estabelece um divisor que, imediatamente, atra vés de bem articulada campanha de imprensa e de rádio, culmina  em apaixonada controvérsia. Do ponto de vista econômico, e fun damental, a divergência gira, pois, em torno de um projeto de  grande alcance, que poderia ferir profundamente as estruturas tra dicionais em que se apoiava o Estado brasileiro, e particularmente  sua forma eventual e ditatorial, o Estado Novo. Do ponto de vista  político, a divergência situa-se no que se refere à forma: as corren tes conservadoras e reacionárias opinavam que a liquidação do  Estado Novo deveria ter início com a substituição do governante;  as correntes democrática e progressistas opinavam que a passagem  ao novo regime deveria ser iniciada com uma constituinte, que  elaboraria as normas a que tal regime obedeceria, importando pou co que, enquanto isso, permanecesse Vargas no poder. Ora, os mais rancorosos adversários de Vargas, agora, eram  precisamente aqueles que o haviam levado à ditadura, pois o Esta do Novo não passou, no fim de contas, de uma ditadura militar
 exercida por um civil, uma vez que o poder residia nas Forças  Armadas, em que se destacavam, como figuras eminentes, o gene ral Eurico Gaspar Dutra e o brigadeiro Eduardo Gomes, que vi riam a ser os candidatos à sucessão de Vargas, após terem sido  personagens destacados do Estado Novo. O pretexto para a depo sição de Vargas — realizada por um golpe militar branco que uniu  aqueles dois candidatos, ambos e cada um certos de sua escolha  no pleito presidencial, e de que foi executante, quanto à intimação  a Vargas, o general Oswaldo Cordeiro de Farias, portador da pala vra de ordem dos chefes militares, exigindo a renúncia do presi dente — foi a nomeação do novo secretário de Segurança. Aí  temos, pois, fatos ligados aos planos em que operou o processo  de mudança: no plano essencial e econômico, a intenção de con trolar os monopólios e limitar os lucros; no plano político, o dese jo de impedir a democratização real pela constituinte, colocando  no poder alguém decididamente comprometido com as forças ex ternas; no plano factual, e menor, sem dúvida, a nomeação de  Benjamim Vargas para secretário de Segurança, mero pretexto, em  suma. Com a deposição de Vargas, a 29 de outubro de 1945, ficava  decididamente comprometido o processo de redemocratização; o  que se seguiria não iria passar de uma ditadura com aspectos for mais democráticos, eleições, Congresso, divisão de poderes etc.  Tudo sob as condições da “guerra fria” e do monopólio da bomba  atômica pelos Estados Unidos. Vargas retirou-se para a sua Fazen da Itu, na fronteira com a Argentina; as eleições, que não pude ram ser evitadas, denunciaram o seu enorme prestígio popular. O  país assistiria ao curioso espetáculo de um ditador, apeado há pou co do poder, que era eleito deputado por vários estados e senador  por dois estados. Vargas acabou por optar pela senatoria pelo seu  estado natal, o Rio Grande do Sul. Compareceu ao Senado apenas para pronunciar três discursos  que assinalaram a sua visão profética dos acontecimentos. De que  se tratava, na realidade? Tratava-se de que os Estados Unidos,  dando consequências práticas à “guerra fria”, que para isso fora  articulada, elaboraram a doutrina maniqueísta dos dois hemisfé rios — o ocidental e cristão e o oriental e comunista — cujo  choque militar era inevitável e que, portanto, deveria ser prepara do. Isto posto, para os satélites, tratava-se de comprar, o mais
 depressa possível, aquilo que, com a guerra às portas, não poderia  ser importado. Para o Brasil, que acumulara, durante a guerra,  enormes saldos em divisas, por força da redução compulsória das  importações, tratava-se de comprar as quinquilharias, os supérfluos  e toda a sorte de mercadorias, em que nosáas reservas foram per-  dulariamente dilapidadas. Vargas escalpelou, nos três discursos referidos, essa política  vesânica de satélite, que proporcionou aos trustes norte-americanos  lucros extraordinários e nos impediu de reaparelhar o nosso par que industrial obsoleto. Nesse quadro, um dos episódios mais ca racterísticos foi o da compra do ferro velho da ferrovia Leopoldina:  possuíamos, na Inglaterra, vultoso crédito, que ela não estava em  condições de nos pagar de imediato, propondo-nos, como forma  de liquidá-lo, a entrega daquela ferrovia, deficitária há muitos anos.  Os acionistas ingleses receberam, pelas suas ações, o valor nomi nal, quando tais ações estavam muito abaixo dele; e ficamos com  mais um trambolho ferroviário. Esse “negócio” — cujos detalhes  permitiriam desvendar a forma de ação característica da época, em  relação ao Brasil — demandaria, por si só, todo um volume para  ser convenientemente contado. Fora os referidos discursos, que despertaram grande interesse  na época — e cujo conhecimento, hoje, seria importante —, Vargas  nada mais fez, em termos políticos. Recolhido em Itu, esperou pelo  tempo. O período presidencial de Dutra — quando UDN e PSD,  os dois partidos maiores, antes antagônicos, se uniram — ficou  assinalado — apesar de que, hoje, ainda é comum ler-se referên cias encomiásticas ao seu conteúdo “democrático’  — pela crise  econômica e financeira, que teve como um de seus episodios mais  grotescos a carta do ministro da Fazenda, Correia e Castro, ao seu  confrade norte-americano, explicando que os Estados Unidos deve riam nos emprestar grande importância, sob pena de “nos carregar  às costas”. Esse descalabro impopularizou, naturalmente, o gover no, de tal sorte que, aproximando-se do fim o período presiden cial, era fácil verificar que ou surgiria novo golpe de força, encer rando o curto período de vigência de uma constituição — não se  pode dizer que houve vigência de regime democrático — ou o  governo não teria condições de ver vitorioso o seu candidato ao  pleito sucessório.
 Foi, realmente, o que aconteceu. Como a derrota do nazi-  fascismo era ainda recente, as condições para liquidar, outra vez,  o regime formalmente democrático não eram propícias. Daí ter o  governo de enfrentar um pleito sucessório em circunstâncias difí ceis. O candidato escolhido foi Cristiano Machado, vítima infeliz  daquilo de que não era culpado. As forças políticas que viam mais  longe marcharam, clara ou escondidamente, para Vargas. O Brasil  assistiu, e pela primeira vez, em 1950, essa singularidade: um di tador que voltava ao poder pelo sufrágio popular, derrotando o  candidato oficial. Daí a expressão “cristianizar”, que passou a ca racterizar a fuga de forças políticas ou partidárias a comandos  pretensamente efetivos, na verdade ineptos. Vargas encontraria, para tomar posse, após consagradora vi tória eleitoral, aqueles tropeços que já se haviam tornado rotina,  na vida republicana, desde que o poder começara a perder o con trole dos pleitos eleitorais, permanecendo ameaçado até a última  hora. As condições, entretanto, não eram favoráveis ao golpe, mera  repetição daquele que o despojara do poder, cinco anos antes. As  forças que formavam ao seu lado eram, agora, poderosas, não ape nas as forças políticas e econômicas, que viam nele a salvação,  depois do desastre do período de Dutra, como a componente mili tar que dissentira do golpe de 1945, cuja subitaneidade impedira  qualquer reação. Vargas tinha, agora, para preservar o seu direito, conquistado  nas urnas, um conjunto de forças articulado e forjado no quadro  novo que o Brasil apresentava, quando começavam a ficar claras,  para as consciências mais lúcidas, as condições geradas pela “guer ra fria”, em detrimento dos interesses nacionais, colocados em pau ta alguns dos grandes problemas que o país teria de enfrentar e  resolver. Realmente, no ano das eleições, e antes, desenvolvera-se,  por exemplo, a campanha pelo monopólio estatal do petróleo, a  mais ampla mobilização já conhecida no Brasil, cobrindo todas as  classes sociais e a extensão territorial brasileira. Não é aqui o  lugar para reconstituir a grandeza dessa mobilização e situar as  forças que movimentou e articulou. Foi o maior exemplo de frente  comum que a vida política brasileira conheceu, sem que houvesse  um comando ostensivo, uma forma institucionalizada, um limite  para definir-lhe o campo e a composição. Foi, efetivamente, a  maior mobilização nacional de opinião a que o país jamais assis
 tiu. E, convém destacar, contando com a resistência, quando não  a aberta oposição, da chamada “grande imprensa”, isto é, aquela  alimentada pela publicidade distribuída pelos trustes e monopó lios estrangeiros. Vargas e o nacionalismo militar A campanha pelo monopólio estatal do petróleo teve início  quando ocupava a presidência da república o general Eurico Gas par Dutra. Foi fácil — particularmente para aqueles que haviam  articulado a ditadura do Estado Novo, na fase de ascensão nazi-  fascista no mundo, à base do anticomunismo — à propaganda li gada às forças antinacionais inquinar de comunistas os partidários  da solução do monopólio estatal para a exploração petrolífera. Foi  fácil, conseqüentemente, lançar contra aqueles a violenta repres são policial que, realmente, marcou o período do governo de Dutra  como a continuação natural da ditadura do Estado Novo, de que  fora o condestável. A verdade é que os comunistas, com a sua  organização, a sua devoção e a sua pertinácia, participavam da  campanha pelo monopólio estatal — foram mesmo o seu motor —  mas ela não lhes pertencia. Muito ao contrário, abarcava componentes heterogêneas, an tagônicas em relação a outros problemas, tacitamente conjugadas  apenas em relação ao problema do petróleo. A técnica publicitá ria gerada e alimentada pelo imperialismo, porém, sabia que o  anticomunismo anestesia as consciências e disfarça a essência dos  problemas, desviando as atenções para o secundário, quando não  atemoriza incautos, que se distanciam de ideais e até de interes ses, por medo de incorrer nas iras dos poderosos, inclusive aqueles  detentores da força, que a utilizam sempre que os seus objetivos  são postos em dúvida. Foi o anticomunismo, por isso mesmo —  embalado pelo ambiente correspondente à “guerra fria” — , larga mente utilizado para intimidar todos quantos se inclinavam à  aceitação da tese do monopólio estatal para a exploração petrolí fera em nosso país. Como se sabe, o anticomunismo tem dado dividendos, ao  longo do tempo, a empresas que — desde aquelas que especulam  com riquezas nacionais de vulto e com as limitadas chantagens e negociatas —, vistas à luz do debate, seriam inviáveis. Esse elixir  estonteador visava, em particular, os militares, de vez que a refe rida tese havia conquistado larga faixa de opinião no meio deles e  o Clube Militar se tornara o centro de gravidade da campanha do  petróleo. Assim, à medida que se desenvolvia a luta pela sucessão  presidencial, desenvolvia-se a luta pela tese nacionalista quanto  ao petróleo, e esta repousava — além, naturalmente, de repousar  na opinião popular — na opinião dos militares. Paralelamente, pois, as forças reacionárias, na área econômica  como na área política, atacavam, simultaneamente, os militares na cionalistas e a diretoria do Clube Militar que comandava a cam panha do petróleo, e a candidatura Vargas e as forças que o apoia vam, aberta ou discretamente. As lutas paralelas continuaram a  se desenvolver, após o pleito presidencial, em que o governo fica ria fragorosamente derrotado, consagrado Vargas como preferido:  agora, pela destruição da diretoria do Clube Militar, vítima, às  vésperas da posse do novo governo, de inaudito ato de interven ção; e pelo impedimento à posse de Vargas, sob as conhecidas  alegações, que a chicana repete sempre, de ter recebido apoio co munista, de não ter maioria absoluta etc. etc. — com a costumei ra ausência de originalidade com que a reação se apresenta. Tal como acontecia em relação à tese do monopólio estatal  do petróleo, a candidatura Vargas à sucessão de Dutra represen tava a composição heterogênea de forças impulsionadas para ela  pelas condições da circunstância histórica. Para o candidato, isto  representava sério problema, pois dificultava a colocação, em seus  discursos, dos pontos que estimava defender e dos objetivos a que  se propunha quando no poder. De natural cauto, Vargas se habi tuara, desde a vitória do movimento de 1930 — a que se sucedeu  tormentoso período político —, a pautar pela prudência e até pela  ambigüidade os seus pronunciamentos e essa ambigüidade não de rivava apenas de traços biográficos, configurando um perfil que o  anedotário recolheu, mas, e principalmente, de consumada habili dade política e de deliberado propósito, calcado, objetivamente,  nas condições reais do país. Ora, um ambiente assim contraditório, navegando em mar  cheio de escolhos, exigia do candidato, que havia sido deposto por  golpe militar menos de um lustro antes e que enfrentava um go verno presidido por militar, mais habilidade ainda do que em qual-
 quer outro período de sua extensa e conturbada carreira. Mas, por  outro lado, o momento estava a exigir do candidato opções in transferíveis e decisões incisivas. Entre os dois extremos, Vargas  teria de manobrar. Ora, se, em relação a outros problemas, os seus  pronunciamentos foram incertos, ambíguos, deixando-os em aberto,  em relação ao petróleo eles foram claros. Jamais — e basta recorrer à coleção de seus discursos —  seria tão definido, jamais se colocaria com tanta nitidez. É inte ressante, a propósito, recordar o depoimento de um de seus  auxiliares mais chegados. Luiz Vergara conta, em seu livro Fui  secretário de Getúlio Vargas,  como o candidato se comportou, des de o início, em relação ao petróleo: A campanha deveria iniciar-se pelos estados do Norte. )á havia  organizado quase todo o material, quando o presidente me  disse que pretendia fazer o primeiro comício na Bahia e o  assunto a tratar teria de ser o petróleo. Recomendou-me que  examinasse o esboço do discurso que alguém lhe havia ofere cido. Não o lera, mas talvez fosse aproveitável. Verifiquei  logo que a orientação do trabalho estava em contradição  flagrante com os rumos que o presidente vinha dando de  longa data à política petrolífera. Pedi à Alzira para chamá-lo  e mostrei-lhe que o esboço não me parecia aproveitável. Repre sentava uma verdadeira “virada" nos rumos por ele apresen tados e obedecia a uma linha claramente “entreguista”. Per guntei se poderíamos identificar o autor da “encomenda”.  Respondeu negativamente. Não se lembrava como lhe viera  às mãos. Mas, acrescentou, não valia a pena perder tempo  com tais indagações. Era preciso elaborar logo o discurso. Eu devia redigi-lo  coerentemente, reafirmando os seus pontos de vista por mim  bem conhecidos. E nada de meias palavras. Declarar, sem  deixar dúvidas, que o petróleo e a sua exploração constitui riam monopólio estatal. Era uma poderosa fonte de energia  que devia ser inteiramente nacionalizada. Os discursos sobre o assunto, particularmente aquele pronun ciado na Bahia, foram, realmente, incisivos, sem dúvidas, sem am-  bigüidades. Contrastariam, aliás — e, aqui, estamos nos anteci pando — , com declarações e mesmo com decisões e orientações  posteriores, quando no poder, no encaminhamento do anteprojeto  do que viria a ser a Lei 2004. Luiz Vergara lembra outro momen to: Vargas, já com o seu período presidencial próximo do fim,
 atormentado pelas contradições que haviam dessorado o seu gover no e o haviam reduzido à solidão política, mostra-se desencantado  e amargurado. Havia algo que o impedia de apelar para o remé dio terrível da renúncia, e ele diria: “Há ainda uma coisa que  preciso ultimar e me julgo obrigado a fazer. É a Petrobrás. Tantos  anos de luta para defender o nosso petróleo contra a cobiça dos  trustes exigem a execução desse empreendimento, que é fundamen tal para o progresso e independência econômica do Brasil.” A campanha pelo monopólio estatal do petróleo, de que o  Clube Militar seria peça fundamental, projetara extraordinariamen te algumas figuras militares. Com o risco ingrato de omitir muitas,  convém recordar personalidades como os generais Estevão Leitão  de Carvalho e Artur Carnaúba, chefes de enorme prestígio dentro  e fora das Forças Armadas, o general Felicíssimo Cardoso, com  lugar de destaque invulgar na campanha, fundador do Centro de  Defesa do Petróleo, o general Júlio Caetano Horta Barbosa, cuja  ação na presidência do Conselho Nacional do Petróleo permitira  as primeiras descobertas e que, depois, se consagraria como pio neiro da tese da exploração por monopólio estatal, pessoa que  Vargas bem conhecia, e, finalmente, o general Newton Estillac  Leal, chefe da corrente nacionalista militar. Os pronunciamentos de Vargas na campanha eleitoral, como  o fato de se tornar, na medida em que sua vitória se delineava,  e depois que ela se concretizou, alvo da campanha das forças  reacionárias, bem conhecidas e intensamente mobilizadas, contri buíram para fazer confluir as forças que apoiavam Vargas e as  forças que apoiavam a solução nacionalista para a exploração do pe tróleo. Assim, Vargas contou, tanto na luta pela sua candidatura —  enquanto indivíduo, naturalmente —, como na sua luta pela posse,  com o apoio dos militares ligados à campanha do petróleo. Tendo  sido deposto por militares, em 1945, e, portanto, sem componente  militar em suas forças, achava-se, agora, apoiado por uma corrente  militar que vinha demonstrando seu vigor e ocupando espaço na  arena política do país. Colocava-se, paralelamente, com as mano bras golpistas contra a sua posse, um problema fundamental: o  do próprio regime. Como se delineava esse problema? É interessante lembrar,  porque tal problema se repetiria, depois, e pode repetir-se, ainda.
 A origem das candidaturas presidenciais, no Brasil, denuncia a  precariedade do regime democrático, entre nós, freqüentemente su jeito, e em particular após o início da "guerra fria”, a golpes que  interrompem a sua vigência. Manter o regime, pois, tornou-se pon to fundamental na definição política das forças democráticas. Con-  seqüentemente, sempre que um candidato, embora recrutado segun do os velhos processos e, por isso mesmo, despojado de conteúdo  democrático, se viu ameaçado em seus direitos, isto é, negado o  seu direito a tomar posse — o que significa, sempre, negar ao  povo o direito de escolha —, sua candidatura passou a revestir-se  de conteúdo novo, independente, inclusive, de sua vontade. Assim,  um candidato comum, desprovido de características pessoais de  atrativo popular, marcado por carreira comum e por posições re trógradas, pode assumir papel inteiramente diverso e positivo, des de que lhe ameacem os direitos forças ainda mais retrógradas,  voltadas, objetivamente, para solução retrógrada, isto é, a interrup ção do regime. Quando Vargas se vê ameaçado do esbulho ao direito de posse,  pois, assume novo conteúdo político e para ele confluem, em apoio,  aquelas forças cujo compromisso, acima de sua pessoa e até de  seu passado, são com a democracia, quaisquer que sejam suas im perfeições. Porque, sem a menor dúvida, vale mais uma democra cia precária e imperfeita do que qualquer ditadura. E disso o povo  brasileiro tem larguíssima experiência. De sorte que, em 1950, a  corrente nacionalista militar e a corrente política que apoiava Var gas se compuseram, tacitamente. Isso não ocorreu por conluio,  evidentemente, nem por acordo estabelecido. Ocorreu por força  das condições do momento e sem qualquer entendimento prévio ou  posterior. Assim, aliás, formam-se as frentes, e não, como alguns  ingênuos pensam, por força de entendimentos minuciosos e coman dos antecipadamente definidos. Em conseqüência da união entre forças assim heterogêneas,  Vargas tendo, por força dessa união, pela sua simples ação de  presença, vencido a luta pela posse, definiu-se pela escolha do  general Newton Estillac Leal para seu ministro da Guerra. Mas,  como as forças políticas que haviam apoiado a sua candidatura  eram ainda mais heterogêneas, minadas aliás por insanáveis con tradições, constituiu um ministério em que a maioria das figuras  se definia por um passado comprometido com a reação e por de-
 pendência ostensiva com os trustes e monopólios estrangeiros, in clusive aqueles que se opunham mais violentamente à solução do  monopólio estatal para a exploração petrolífera. O governo de Var gas, pois, surgia já visceralmente dilacerado, contendo os germes  de sua própria deterioração. Enquanto a componente militar nacionalista, profundamente  empenhada numa luta terrível, já com vítimas numerosas — a  repressão, ao tempo de Dutra, fora violentíssima —, apresentava-se  monolítica, até mesmo por exigências de sua preservação, a com ponente política do governo que Vargas começava a presidir apre sentava-se fragmentada e débil, minada por um câncer que a leva ria ao desastre. Mais do que isso: que dividiria as forças articula das, até aí, em torno da candidatura Vargas. A intervenção operada  no Clube Militar, no crepúsculo do período de Dutra, pela des tituição da diretoria presidida pelo general Newton Estillac Leal,  colocava-se, diante de Vargas, mal iniciando o seu período presi dencial, como exigindo decidida opção: mantê-la, e romper a alian ça com a corrente nacionalista militar, ou anulá-la e estabelecer,  agora, uma aliança muito mais sólida. Era, pois, uma conjuntura  extremamente difícil. Vargas jamais, inclusive por formação biográfica, por traço  de personalidade, fora inclinado a opções dessa natureza. Nem as  condições políticas, naquele momento, lhe permitiriam isso. Era  seu ministro da Guerra o presidente do Clube Militar, cuja direto ria, de que se licenciara para exercer suas altas funções no governo,  vinha de ser violentamente golpeada pela repressão e interven ção — ministro que definiria sua personalidade, para o conheci mento nacional, como líder de uma corrente nacionalista; seu mi nistro das Relações Exteriores era alto funcionário de um dos  maiores trustes petrolíferos mundiais, empenhadíssimo em obstar  a solução da questão do petróleo brasileiro pelo monopólio estatal:  seu ministro da Fazenda era conhecido e notório instrumento de  organizações financeiras estrangeiras, a cujo serviço se esmerara  até aí. Carregando uma contradição tão profunda, o governo de  Vargas começava muito fraco e, no processo da luta, como as  posições se acirraram, a componente nacionalista militar radicali zara suas posições, vendo com extrema desconfiança não só a  composição do governo como suas iniciativas em relação ao pró prio e candente problema do patróleo.
 A  “guerra fria" teria, então, um de seus episódios mais im portantes e característicos, que alinharia nova e enorme dificulda de para o governo de Vargas: a guerra da Coréia, onde a luta  entre norte-americanos e chineses colocaria o mundo muito próxi mo de novo conflito de proporções imprevisíveis. Se a “guerra  fria”,  até aí, contribuíra, politicamente, para desencadear o anti comunismo e, economicamente, para que consumíssemos nossas di visas, acumuladas durante a 2.a  Guerra Mundial, estocando bugi gangas e comprando ferro velho, a guerra da Coréia pressionaria  não apenas para fazer recrudescer o anticomunismo — tabuleta  que acoberta arbitrariedades e negócios — , mas para alcançar do  Brasil uma participação militar naquele conflito distante que, a  ser efetivada, acrescentaria muito, e negativamente, à subordinação  do Brasil à política externa dos Estados Unidos. Por tudo isso, não  é difícil constatar as grandes dificuldades com que defrontava o  presidente Vargas, mal iniciado o seu governo. Essas imensas dificuldades têm sido esquecidas pelos estudio sos desse período. Eles vêm insistindo em que, nesse tempo, pela  sua idade, Vargas já não dispunha de energias antes nele reconhe cidas, ou de habilidade, antes nele abundante. É um erro de apre ciação. Vargas era muito mais experiente, agora — em 1950. E  conservava a sua lucidez e as energias necessárias ao exercício de  suas funções. O que havia mudado não era ele — senão no sentido  positivo —, mas o quadro histórico. O quadro de 1950 já não era,  como o da primeira fase da carreira de Vargas no poder — en tre 1930 e 1945 — , compatível com manobras de simples habili dade, em que ele se tornara consumado mestre. As condições eram  inteiramente diferentes. Foram essas condições que o impediram  de transpor os obstáculos com a argúcia antiga. No fim de contas,  a política é a arte do possível. Não há político que consiga por atos de vontade superar as  condições que a realidade coloca. Hoje, tantos anos passados, é  possível reconhecer que Vargas era partidário de uma política na cionalista. No seu governo, entretanto, e naquele iniciado em 1950,  de que estamos tratando, o nacionalismo brasileiro sofreu grandes  derrotas. Para as quais contribuíram, inclusive, decisões por ele  esposadas. O paradoxo é, nesse sentido, apenas aparente; seria
 longo deslindá-lo. É preciso frisar, a tal respeito, que a realidade  política nem sempre se apresenta clara, nítida, com forças dispos tas simetricamente. Muito ao contrário, ela se apresenta quase sem pre conturbada, confusa, escondendo a essência dos problemas, os  fatos desmentindo as aparências. Em quadros complexos e confusos, como aquele que se apre sentou em 1950 — em que, inclusive, se desenvolvia intensa cam panha de intimidação da opinião, configurando como criminosa  qualquer posição de defesa dos interesses nacionais —, uma das  manobras típicas da reação consiste em compelir os detentores do  poder, quando seus adversários, a esposar uma orientação que os  impopularize. Essa manobra foi desenvolvida, em relação a Var gas, desde o momento de sua posse. Tratava-se de obrigá-lo a  descaracterizar-se, isto é, a realizar, no governo, o oposto daquilo  que se comprometera a realizar, quando candidato. Tratava-se de  pressionar aquele que fora consagrado pela escolha popular a ado tar uma política impopular, isto é. a desmoralizar-se pelos seus  próprios atos e decisões. Na medida em que, por atos e decisões  sucessivas, a manobra ia sendo desenvolvida, Vargas ia perdendo  a sua base política. Ora, ninguém pode governar — pelo menos  com personalidade — sem base política. Base política é o conjunto de forças — partidárias, institucio nais, organizadas — que permitem ao governante desenvolver a  orientação que reputa adequada. A  manobra de desmoralização  consiste em separar o governante de sua base política. No caso de  Vargas, separá-lo de suas bases populares. Para isso, era ne cessário, antes do mais, obrigá-lo a renegar as posições assumidas  enquanto candidato. Inclusive a de defensor do monopólio estatal  para os problemas do petróleo. As premissas, para alcançar as condi ções que permitissem desembocar com aquela manobra, consistiam  em separá-lo da corrente nacionalista militar que concorrera para  lhe assegurar a posse e lhe fornecera o ministro da Guerra. A  manobra — quem percorrer a imprensa da época poderá verifi car — foi desenvolvida com aquele rigor, aquele método, aquela  cadência a que o imperialismo obedecia, na época de apogeu de  sua dominação do “quintal”. Ela comportaria, de início, a concentração do fogo sobre o  Clube Militar. Resumia-se em repetir, todos os dias, muitas vezes  por dia, um refrão: são comunistas.  Na essência, consistia em fugir
 peremptoriamente à discussão dos problemas em questão, substi tuindo a discussão pelo refrão. Consistia em não entrar no mérito,  jamais. Em relação ao Clube Militar, entrar no mérito consistiria  em discutir se a solução do problema do petróleo deveria ser pelo  monopólio estatal ou pela entrega aos trustes estrangeiros, ou, em  outro caso, se deveríamos, os brasileiros, enviar tropas para a  Coréia ou se não deveríamos. Como seria impopular sustentar a  tese da entrega do petróleo ou de envio de tropas, a campanha  se resumiria no refrão. Todos os dias, várias vezes por dia, na  imprensa, no rádio — não existia televisão — o refrão aparecia:  são comunistas.  Um espirituoso poderia lembrar que os comunis tas, para admitir a preliminar, podem ter razão, nesta ou naquela  questão específica. Não se entrava, porém, nesse perigoso terreno.  A campanha consistia apenas nisso: são comunistas. A Vargas não caberia, sem a menor dúvida, proteger comu nistas; se acobertasse a corrente nacionalista militar, seria disso  acusado; se não a acobertasse, perderia o seu apoio. A campanha  contra o Clube Militar comportou, segundo verificação rigorosa,  mais de 200 artigos, sueltos, notas, comentários, por dia, todos re petindo o refrão. É hoje sumamente ridículo considerar sequer o  problema, para lembrar que Vargas não apenas não era comunista  como detestava o comunismo. Naquela fase, no entanto, criaturas  ingênuas, possuídas do furor anticomunista e habilmente manipu ladas pela campanha de imprensa e rádio, punham tal enormidade  em questão e acreditavam mesmo que Vargas era comunista. E  este, que conhecia de perto o alcance de campanhas desse tipo —  porque delas se valera para instituir o Estado Novo, por exem plo —, podia bem avaliar os seus riscos. De sorte que tomou a  decisão que lhe cabia, recuando e abandonando os militares nacio nalistas à sanha dos que pediam a cabeça deles. O general Newton Estillac Leal também não era comunista —  que se perdoe levar em consideração coisas dessa natureza —, mas  ficou em situação difícil e mais do que duvidosa. Estillac tinha  cabeça política. As lutas do tenentismo, de que fora figura impor tante — mas de que tirou poucos dividendos, ao contrário de  outros, que desses dividendos fizeram fortuna política —, lhe ha viam conferido experiência suficiente para saber onde o deseja vam levar. Entre Vargas, com o seu recuo, e os companheiros do  Clube Militar, com o seu avanço isolado e em ponta, ficou com
 aquele. A partir desse momento, começava a perder valia para o  próprio Vargas, porque nenhum presidente latino-americano pode  ter um ministro da Guerra fraco. Estillac jogou a sua cartada de  forma errônea e encerrou praticamente sua carreira política. A  militar, prosseguiu, sem grandes lances. O seu recuo separou-o de  suas bases, que eram justamente os nacionalistas militares. Pouco depois, deixava o Ministério da Guerra. Deixava-o por que já não lhe era possível recuar, uma vez que não poderia ser  o instrumento de perseguição àqueles companheiros. O novo mi nistro da Guerra de Vargas executou ou acobertou as numerosas  prisões então efetivadas, os processos e a liquidação da carreira  de muitos militares, cujo crime fora defender instituições demo cráticas e uma solução nacionalista para o problema do petróleo.  A destruição da corrente nacionalista militar “coincidia” com o  andamento do projeto da Petrobrás no Congresso. Em maio de  1952 — Vargas já com mais de ano no poder, em processo con tínuo de debilitamento político — a corrente militar nacionalista  era derrotada, nas eleições para a direção do Clube Militar. Fechava-  se a grande tribuna onde o monopólio estatal do petróleo fora co locado como exigência nacional. Completara-se o cerco militar a  Vargas. Era preciso, entretanto, desmoralizá-lo no que toca ao respeito  pelos dinheiros públicos. Como é mais do que sabido, Vargas não  era apenas homem de vida morigerada, modesta mesmo; sua pro bidade pessoal estava acima de qualquer insinuação. Pois bem,  como não era possível acusá-lo de tirar proveito direto da função  que exercia, foi necessário forjar uma questão escandalosa, em que  ficasse envolvido o seu nome, tisnada a sua conduta. Tratava-se  da acusação de favorecimento. Foi essa a base da campanha  montada com a mesma técnica, pela concentração de fogo e re petição do refrão — em torno de dinheiro emprestado pelo Banco  do Brasil a certo jornalista, para que este montasse um jornal de  apoio à política de Vargas. Os que viveram o referido período  lembram-se, certamente, do caso de Última Hora.  Empresas jorna lísticas e radiofônicas que viviam de chantagem, que não recolhiam  o que descontavam de seus trabalhadores, que sonegavam impos tos, que tomavam dinheiro emprestado aos cofres públicos em  condições mais do que fraudulentas, articularam-se para acusar  disso tudo a nova empresa, cujo crime consistira apenas em apoiar
 o governo que as forças reacionárias haviam decidido derrubar. O  cerco militar era, assim, completado pelo cerco da imprensa e do  rádio, isto é, da propaganda. Começava a ser montada a manobra  final. A solidão e o suicídio • A consulta aos documentos da época permite verificar como  as posições de Vargas em relação ao petróleo eram diferentes, ago ra, daquelas que havia esposado quando candidato, ao mesmo tem po que começava a surgir a perigosa ambigüidade de não se saber  bem qual a sua posição no que dizia respeito ao andamento do  projeto em curso no Congresso. De um lado, parlamentares com  papel decisivo, como Artur Bernardes e Euzébio Rocha — figuras  de vanguarda na defesa da solução do monopólio estatal —, afir mavam que o presidente pensava de determinada maneira; de outro  lado, seus assessores, como Rômulo de Almeida, indigitado autor  do anteprojeto oriundo do Catete, e sua liderança parlamentar,  aliás, lamentável, como ficaria claro quando da crise de agosto  de 1954, afirmavam o contrário. Maquiavelismo? Impossível e ina dequado. Em política, nos tempos modernos, não há maquiavelismo  possível. Nem Vargas era maquiavélico senão para os que lhe  imputavam defeitos para tisnar-lhe a imagem. Mas, também, já não havia condições para manobras, para  aquelas dilações, aquelas curvas a que ele se afeiçoara, na primei ra fase de seu poder. De sorte que o encaminhamento do antepro jeto ao Congresso, tendo “coincidido” com a campanha contra o  Clube Militar, a corrente nacionalista, que ali discutia o problema,  viria a combater violentamente tal anteprojeto. Colocava-se, assim,  contra Vargas, já extremamente debilitado. Somava forças, conse-  qüentemente, com os que tramavam a sua derrubada. Formava com  eles o que se conhece, em linguagem política, como frente,  embora  tácita. Era inequívoco erro político, sem a menor dúvida. Mas da  soma de erros dessa natureza e desse sentido se teceu a rede que  levaria Vargas ao momento final. A propósito dessa divisão entre os militares nacionalistas e  Vargas, tive oportunidade de escrever, em minhas Memórias de um   soldado:
 Assim, a corrente militar nacionalista procurava, tenazmente,  o seu próprio isolamento, reservava-se a pureza de ideais e  propósitos, julgava-se suficientemente forte para combater, ao  mesmo tempo, os partidários de Vargas e os adversários de  Vargas. Na proporção em que o processo político avançava,  aquela corrente, para provar a sua incontaminação ao “popu-  lismo varguista, acentuava a sua radicalização; não queria ser  confundida com os “oportunistas", os “demagogos"; buscava  afanosamente provar o seu esquerdismo. E, é claro, tudo isso  ajudava a reação. Não é aqui o lugar para recordar a tramitação do projeto crian do a Petrobrás no Congresso. Se é exato afirmar que a Lei 2004  foi uma criação do povo brasileiro, é ainda exato afirmar que ela  surgiu por força de uma ação patriótica do Congresso, que san cionou a opinião popular, que a havia consagrado. Os debates  parlamentares, entretanto, que foram longos e calorosos, não acres centaram nada de positivo ao prestígio de Vargas, já bastante com balido em 1953. O anteprojeto fora uma coisa; a lei era outra  coisa. Vargas sancionou a lei e escolheu, para dar início às ativi dades da empresa que ela previa, um homem que militara sempre  contra o monopólio estatal. Assim, distanciava-se mais da área  nacionalista e da área popular. Mas, por singularidade — singularidade apenas aparente, na  verdade —, assumia posições para as quais não tinha apoio organi zado. Parece que, na medida mesmo em que ia ficando isolado e  caminhava para o desastre — previsivelmente, na época, para nova  deposição —, buscava fixar a sua imagem. Mas fixá-la sem nenhum  apelo à popularidade, fixá-la acima das contingências políticas e  até das contingências humanas. A partir de 1953, já enfraquecido politicamente, ele, que chegara ao poder no auge de seu prestígio popular, parece que tece, pacientemente, a sua mortalha. Num ho mem tão cauto, tão seguro de seus passos e iniciativas, hábil no  recuo, na manobra, sensível às possibilidades, distante de todo e  qualquer aventureirismo, os pronunciamentos de Vargas, em 1953  e 1954, surpreendem pela audácia. Mais do que audácia, afoiteza.  Na proporção em que não pode, arrisca. Quem lê, hoje, tantos anos passados, os discursos que pronunciou — não em reuniões privadas ou limitadas, mas de público, no rádio — a respeito dos  investimentos estrangeiros em energia, a respeito da remessa de  lucros dos capitais estrangeiros, ou ditos estrangeiros (na verdade,
 captados na poupança nacional, estrangeiros apenas para fins de  remessa de lucros), fica espantado. Parecem de propagandista político de esquerda, de parlamen tar de oposição, de nacionalista rubro e extremado. São, entretan to, do presidente da república, e de um presidente em declínio  de força, sob ameaça séria, sob o fogo de seus adversários, de seus  inimigos mesmo. Tais pronunciamentos, dos mais veementes que  já se fez, no Brasil, contra o imperialismo, assinalam, ao que pare ce, o deliberado propósito de jogar uma cartada decisiva. Não se  trata de análises, de discussões, de fixação de posições. Trata-se  de verdadeiros e candentes libelos, de acusações frontais. Nesses  pronunciamentos, constata-se que alguém que conhece a fundo o  problema, porque preside os negócios públicos, denuncia fraudes  extraordinárias, sonegações enormes, furto organizado e sistemáti co, burla continuada das leis e dos dispositivos fiscais. Isso não é dito em arroubos eventuais, mas surge de discursos  meditados. Representa uma tomada de posição como nenhum ho mem público brasileiro, no nível a que ele estava alçado, fizera  jamais. Tais pronunciamentos, entretanto, calavam pouco, ficavam  quase sem acústica. Pela gravidade de seu conteúdo, pela violên cia, pela enormidade dos crimes denunciados, eram de abalar a  nação, de atear-lhe fogo, de despertar as mais recônditas energias  nacionais, de mobilizar o povo. E, no entanto, nada disso acontecia.  Vargas dizia verdades, as mais terríveis verdades. Mas ninguém  mais estava a ouví-lo; ninguém mais lhe prestava atenção; ninguém  mais se dispunha a secundá-lo. Ele estava só. A Lei 2004 é de outubro de 1953. Vargas não teria mais um  ano de poder e de vida. Em agosto de 1954, quando, a propósito  de crime comum, da alçada do delegado, articulou-se o golpe que  se destinava a puní-lo pelos seus pronunciamentos e pelos seus  atos, três semanas foram suficientes para liquidá-lo. Três semanas  em que se assistiu, novamente, a montagem e o desenvolvimento  do mesmo tipo de manobra, articulada à base dos meios de comu nicação de massa, sob controle das forças antinacionais. Buscava-  se, então, primeiro desmoralizá-lo pessoalmente — politicamente,  já haviam conseguido — e, em seguida, depô-lo. O que viria de pois? Algum dia se dirá. O propósito de não limitar a manobra à  desmoralização e à deposição — este fora o objetivo em 1945, agora  já não satisfazia —, mas o de aprofundá-la transparece de tudo o
 ■ que se conhece do episódio, apesar da turvação em que este foi  envolvido, desviada a atenção geral para outros aspectos, que o  crime envolvia, sem dúvida, mas não eram os políticos e essenciais. Vargas viveu aquelas três semanas, e particularmente as últi mas horas, praticamente só. A solidão assinala o sentido da tragé dia que se consumava. A solidão é sua dimensão extraordinária. O  episódio representaria, quando analisado desapaixonadamente, uma  das mais altas lições de política a que o nosso povo já assistiu.  Com a morte de Vargas, encerrou-se uma época da história brasi leira. Para tal encerramento, o seu gesto derradeiro contribuiu com  a nota de grandeza trágica, marcada pela denúncia flamejante da  carta que deixou e pela maneira como derrotou, sozinho e solitá rio, os que o haviam derrotado. Como o parta — Clemenceau  escreveu isso, a propósito das acusações de Foch — que, no galope  da fuga, atira ainda o último dardo ao inimigo, Vargas, passando à eternidade, marcou com indelével ferrete os que o procuravam  infamar. Pena que, para vítima de tal porte, fossem tão insignifi cantes os adversários.
 OBRAS DE NELSON WERNECK SODRÉ História da literatura brasileira,  1938 (8.a  edição, 1988) O que se deve ler para conhecer o Brasil,  1945 (8.a edição, 1988)  Introdução à revolução brasileira,  1958 (4.a edição, 1978) A ideologia do colonialismo,  1961 (3.a edição, 1984) Formação histórica do Brasil,  1962 (12.a edição, 1987) Introdução à geografia,  1976 (6.a  edição, 1987) História da burguesia brasileira,  1964 (4a edição, 1984) Evolução social e política do Brasil,  1964 (2a edição, 1989) O naturalismo no Brasil,  1965  Ofício de escritor,  1965 As razões da independência,  1965 (4.a edição, 1986) História militar do Brasil,  1965 (3.a edição, 1979) História da imprensa no Brasil,  1965 (3 a edição, 1983)  Fundamentos do materialismo histórico,  1968  Fundamentos do materialismo dialético,  1968  Fundamentos da estética marxista,  1968  Fundamentos da economia marxista,  1968  Memórias de um escritor,  1970 (2.a  edição, 1988) Memórias de um soldado,  1968 (2a edição, 1986) Síntese de história da cultura brasileira,  1970 (14.a edição, 1988)  Brasil, radiografia de um modelo,  1974 (7a edição, 1987) A coluna Prestes,  1978 (5a edição, 1986) Vida e morte da ditadura,  1984  Contribuição à história do PCB,  1985 História e materialismo histórico no Brasil,  1986 (2.a edição. 1987)  O tenentismo, 1985 História da história nova,  1986 (2.a edição. 1987) A  intentona comunista de 1935,  1987 O governo militar secreto,  1987 Literatura e história no Brasil contemporâneo,  1987 A marcha para o nazismo,  1989 A república,  1989 Capitalismo e revolução burguesa no Brasil,  1990
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 Paralelamente, desenvolve, tam bém, em longo ensaio, uma instigado ra análise em torno da “Época Var gas”, onde, além de mostrar a rele vância desta figura em nossa história,   —  “o quadro burguês mais completo”   gerado pela burguesia brasileira — ,   Nélson Wemeck Sodré desenvolve in teressantes considerações em relação   àquilo que denomina de “revolução   burguesa inconclusa”. Os trabalhos aqui reunidos são, de   fato, contribuições do mais alto valor   para o estudo da formação da socie-   da brasileira, oferecendo valiosas in dicações para que, hoje, possamos nos   situar em torno dos complexos e pro fundos problemas que marcam o de senvolvimento do capitalismo no Bra sil.
 Aqui estão reunidos dois estudos  que têm como ponto central a análise  do desenvolvimento histórico da for mação do capitalismo em nosso país  e, especialmente, da revolução bur guesa (ainda inconclusa) que conso lida este processo. Aponta-se um singular processo,  uma via específica, que marca a for mação social brasileira: com a auto nomia do país, há o surgimento de  uma incipiente burguesia, com seu  complemento, o trabalho assalariado  e, concomitantemente, a configuração  do mercado interno. A grande crise do capitalismo em  1929, externamente, a eclosão da “re volução de 1930”, internamente, são  eventos que caracterizam de forma  definitiva a solidificação do processo  da formação do capitalismo no Brasil. Complementarmente, a Época   Vargas  representa o momento, talvez,  em que esta revolução burguesa in conclusa atinge seu ponto mais alto,  mostrando a figura de Vargas como  o mais talentoso e importante quadro  burguês de toda nossa história. OFICINA DE LIVROS7 T BN 85-85170-24-7