Adolescência repartida - A Nova Democracia


Author: Vera Junho
Categories: Nova Cultura
Description: Os franceses chamam a adolescência de “l’âge bête”, a idade besta. E alguns, em nosso país, de ‘aborrescência’. Comentamos sobre isto, minha amiga e eu,
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Published Time: 2024-11-21T05:23:00+08:00
Sections: Nova Cultura
Tags: crônica
Type: article
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Os franceses chamam a adolescência de “l’âge bête”, a idade besta. E alguns, em nosso país, de ‘aborrescência’. Comentamos sobre isto, minha amiga e eu, naquele dia no metrô, indo para o trabalho, quando um senhor idoso entra e dois meninos, sentados, não se levantam para lhe dar lugar. Nós o fazemos, mas o senhor não aceita com um aceno, afirmando que iria saltar logo. Criticamos em voz alta a atitude dos garotos que respondem caçoando: “Ele ainda está forte”, “Firme, vovô!”.

Logo em seguida, uma senhora grávida mereceria o mesmo tratamento não fosse a atitude de um casal que lhe cede lugar. Ela brinca: “Estou mesmo precisando de dois lugares, já estou no oitavo mês”. Os dois garotos saem rindo, fazendo piada com o que dissera a senhora. Minha amiga, mãe de um casal de adolescentes, se questiona em voz baixa: “Será que meus filhos fazem isto e eu nem sei?”

Na estação seguinte uma jovem entra carregando embrulhos e, ao ver que não há lugar, senta-se no chão. Ostenta um celular que ela deixa em alto volume. Alguns reclamam e ela abaixa, amuada. “Paguei passagem e não tem lugar, não posso ouvir minha música, que trem é este?”

Próxima estação entra um garoto todo paramentado de fone de ouvido, celular em mãos, mochila, tênis, boné e mascando chicletes. Vai para o único lugar vazio, deixado por uma senhora, e fica cantarolando baixinho. Vagão cheio. Tensão no ar.

A garota se levanta e começa a discutir com ele que aquele lugar era dela. Quando a porta se abre ela sai derrubando os pacotes e dizendo que perdera tempo, tinha de ter saltado na estação anterior.

Próxima parada: um bando de colegiais com sua costumeira algaravia enche o carro. Alegria e barulho contagiosos. Além de nos brindar com suas risadas e desenvoltura jogam no chão papéis e invólucros Quando vão embora, um senhor comenta perto de nós: ‘antigamente, isso dava multa’. E conta que pedira a um rapaz para ajudá-lo a atravessar o sinal, tem fortes dores nos joelhos, e o moço respondera: “Problema seu, coroa!”

O garoto do chicletes se acomoda e o trem segue tranquilo. Digo para minha amiga que finalmente teremos um resto calmo de viagem, estamos chegando. Abre-se a porta e uma senhorinha típica da cidade, com belos cabelos brancos, óculos, bolsa preta e vestida de verde tropeça na entrada, quase cai. Minha amiga resmunga: “Hoje está acontecendo de tudo”.

Para espanto de nós todos, o menino do chicletes vai a seu encontro e socorro, pega sua bolsa caída e conduz a senhora com cuidado até o lugar que ocupara. Ela agradece timidamente, envergonhada, sorri e diz para ele se sentar, ele recusa e ela agradece de novo. Há um suspense, as pessoas assistindo ao grand finale . Não contávamos com a atitude do garoto. Como em uma ópera ou em uma peça de teatro todos batem palmas, encantados. A amiga e eu nos olhamos comovidas.

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